quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

225 - VOZ FEROZ * por Maria Luísa Baião * ..............

                          

         De todo o lado me chega notícia de um bom aluno que hoje, impotente e com perícia, como um cábula mente e como gatuno que rábula inventou me irrita até à medula, me põe hirta me põe fula, já que por tudo e por nada nos surge no fim da lista. Este pequeno torrão que já foi primo inter pares é agora um aldrabão e no que concerne a azares, sempre sempre entre os primeiros.

Andava eu meditando que nada lhe vou achando em que não mostre uma nódoa, distinção em nada própria que, solene nele destoa, quando por causa da sida, coisa que ninguém precisa, p’ra me tornar menos crente tira nota de excelente. Isto não é já um país, nem aluno ou aprendiz, mas antes caso perdido onde vive um povo sofrido e em que cada um diz o que diz, nunca dizendo o que sabe, tão pouco sabendo o que diz.

Talvez por tão melindrada que a situação se torna e por ver malhar na bigorna tudo que é coisa acertada como quem malha em ferro frio, algo me veio aos ouvidos que me quebrou o fastio e me arrancou de pruridos. Não conheço o orador que, por uma vez sem pudor, teve o condão de gritar, não a medo ou sururu, a verdade tão à vista, de que afinal o rei vai nu. Fê-lo do alto de um monte, do púlpito de velha igreja, recriação de Xenofonte, Anacreonte ou arconte. Fê-lo fazendo dele grito, que saiu sem um atrito, não gerou qualquer conflito, nem foi causa de delito, antes discurso bonito e muito, muito bem dito, mas c’o ar de quem peleja sabendo de ciência certa quanta razão lhe sobeja.

E foi com uma voz feroz que atacou ali, sem peias, sob o olhar de Santiago e rodeado de ameias, a “Pobreza Contra a Qual se Luta”, como quem diz; “A Pobreza Contra a Qual Lutamos”, num discurso sem rebuço, como que erguendo bem alto um pano, estandarte ou bacamarte, lutando denodadamente p’ra tornar aquela gente crente da verdade incómoda que deixa qualquer pessoa, pensativa mas mais sóbria. Gastar dinheiro com a pobreza, segundo o articulista, deu-nos a única certeza que, de tal a bem ou a mal muita gente se alimenta e sem que dela padeça. E p’ra vos dar uma pista, direi haver quem se amamenta como se aqueça ao braseiro, inda sem que disso careça.

Programas comunitários, ou de outra fonte qualquer, são sacrário onde comer se tornou tão grande hábito, onde sem ser preciso apito há quem lobrigue o infinito, fazendo do bodo um gambito e aos pobres um manguito. Caudal de sobrevivência, catedral de bom emprego, a luta contra a pobreza é hoje a espinha dorsal de uma hierarquia estival da qual, para o bem ou para o mal só nos fica uma certeza; tem aumentado a pobreza na directa proporção do muito que lhe destinam, que é o mesmo que dizer que quanto mais pão lhes dão mais pobres estendem a mão.

Calhando, fazendo as contas, com o erário que foi gasto nas lutas contra a pobreza e baralhando os costumes, já tínhamos há muito feito de cada pobre um milionário, o que eles não negariam, pois por certo não viveriam com queixas ou azedumes. Não conheço o personagem, dono da voz tonitruante que apareceu em Monsaraz, qual Cavaleiro Andante pregando veras verdades sem companhia de pajem.

 Calhou chegar até mim o pregão de um homem seguro que, ao longo de várias idades parece ter tido o condão de irritar celebridades. Há quem diga ser um puro, outros chamam-lhe arrogante, sei por ter ouvido contar que é p’lo menos bom pensante. Parece que ao invés de muitos, o que tem para dizer, di-lo, não se constrange ou amedronta qualquer que seja a afronta e tem por nome Camilo.

Mor d’água vos deixarei durante algumas semanas, vou a banhos, vou de férias, aproveitar dar umas lérias, passear p’lo Al Andaluz, calar canseiras, enganos, ganhar coragem, decisão, pois na volta tenho à espera, de novo o cirurgião.

BOAS FÉRIAS. 

* Crónica publicada por Maria Luísa Baião em Diário do Sul - Kota de Mulher - s.e.o. em Março de 2003, a propósito de um discurso de Camilo Mortágua, proferido na igreja de Santiago, integrado numas jornadas referidas no texto, vivia-se a iniciativa "Monsaraz Museu Aberto" nesse dia sob o lema da pobreza do país, governava então Durão Barroso.