Caíram aguaceiros em
vários locais. Trovões foram ouvidos para o lado sul. Valha-nos Stª Bárbara.
Foi Páscoa, recordo o Degebe, onde, dantes, tanta gente aportava na ânsia do
borrego, das águas límpidas, memórias sopradas aos meus ouvidos, coisas que
pensava esquecidas.
O céu é o mesmo, até as nuvens me parecem
iguais. Regatos formados mostravam pedras redondas, suaves seixos que trazia
para casa, coisas pequenas que me mudaram, que não me mudaram, nunca saberei. Os
penedos cobertos de musgo, que é feito do musgo? O musgo que os tornava em
simultâneo sedosos e agrestes já se foi, nem já nos presépios, nem já
presépios.
Combatia-se então o
tédio, como hoje, que coisa o tédio, que insuportável. Nem a lua é a mesma. Já
não vejo nela um velho carregando feixes de lenha, nem promessas... Nada, nem a
lua, me consola, nos consola. E compravam-se cordeiros no Rossio, rebanhos em
bardos, um pequeno preso a uma estaca. Sangue no chão, as peles amontoadas. O
sacrifício da morte como oferenda.
Névoa, chuva,
lágrimas, cansaço, espera, angústia, solidão, medo, pobreza, mágoa. Não
encontro já os cata-ventos da minha meninice, talvez daí não haver rumo,
fascínio, encanto, paixão. O mundo é um espanto. Sobra-nos melancolia, inércia,
impotência. Nunca mais desbravámos mares, ciências, ousadias, esperanças.
Inventam-se
esquecimentos, entreténs, e no entretanto não temos nada, e cada vez menos. São
uma violência os dias. Roubaram-nos o presente e o futuro. Podendo, destruía o
tempo, esse tempo que nos corrói e penetra, defenestrando-nos ante a vida. Nada
faz sentido, apenas a inconsequência se impõe, tudo o resto é vão. É falso o
tempo que nos vendem. Nem é novo, nem é digno.
Coisas simples,
marmelos, marmelada, doce de tomate, gostos e aromas que caíram no
esquecimento, o odor das laranjeiras, lenha ardendo na lareira, café em borras,
fervilhando.
Cantoneiros amando as
estradas, as máquinas.
Já não há amores ao
luar.
Não quero nem preciso
ser, sermos, trágicos.
Viver é isso, a vida
depara-se-nos como ficção.
O pior são os
discursos. Sorriem ainda os lábios, sem saberem porquê, sem terem de quê. Não
nos compreendo.
A cidade adormece,
então todos comungam o momento único. A cidade cai na noite, e finalmente a
empatia esconde a indiferença.
Uma a uma vão
despontando flores nos campos primaveris, jasmim, malmequeres, alecrim,
papoilas, lírios, rosmaninho, soubera eu chamá-las todas pelos nomes.
Quase não se ouvem outros murmúrios na cidade
que não chilreios. Uma andorinha passa álacre rente ao chão. Não há nada para
contar. Ah! As árvores enxamearam-se de folhas, e, de vez em quando, passam
autocarros ronronando. O silêncio. A cidade emudecida. Subterrânea, o tempo
sendo contado pelas horas que animam com ruído o deserto.
De dia, homens de
mãos nos bolsos seguram as arcadas regurgitando bolas e touradas em palavras
repetidas. De noite, esquecidas as salas de cinema, o convívio, esquece-se o
tempo e o silêncio veste-se então de vozes, álcool.
Relógios parados
inventam o ímpeto alentejano, buscando vencer as dúvidas eternas acoitadas em
nuvens indolentes. Procuramos com torpor os mistérios de ontem, hoje esperamos
um amanhã que parece não existir, e um sentido de abandono toma-nos no seu
regaço.
A palavra, as
palavras, são estórias, escritos longos, perdidas e eivadas de impaciente tédio
que não tolera a alegria dos que esperam, vegetando sorrindo, aspirando a
liberdade e um futuro cheirando a mofo e vazio, sem ao menos um desígnio.
Se pudesse, não teria
nascido.
A existência é
perversa e os anos não mais que saudade, esperança, tempo perdido e ansiedade.
Esta é a minha cidade, a minha terra, que nos idos de seiscentos inventou
quimeras, tinha sempre lindas moças às janelas, suspirando ais, e tecendo
elogios tais a ela mesma, sim, a si mesma, que não caberiam nesta escrita.
Coisa assim penso jamais ter sido dita.
Ouço os gatos miarem
nos telhados. Pardais levantam-me as telhas num alardo, os cães,
desassossegados, correm e ladram de lado para lado. A cidade tem vida, é
animada, tão animada quanto o pode ser uma feira num largo. Vêem-se jograis,
arlequins e saltimbancos e, espanto dos espantos, vê-se gente correndo e
enchendo as novas catedrais.
A pressa, sempre a
pressa, de chegar e partir levando cada vez mais. Sublimação de um vazio por
preencher, um querer mais, mais e sempre mais. Não somos nada, não temos nada,
não cremos em nada, queremos tudo sem saber o quê.
O sol espreita como
que brincando, e assim nos vamos entretendo. Uns dias mais, outros menos. O
vento é fraco, moderado, a temperatura amena, prevendo-se a sua continuação nos
próximos dias. Deixemo-nos ficar. Deixemos.
* Escrito em Évora a 9 de Maio de 2006 por Maria Luísa
Baião e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.