É
manhã de Natal, ter cagado o pé na merda de cão da vizinha ao descer as escadas
para a garagem deve dar-me sorte. Alegre que ia nem reparei, só posteriormente notei, no
carro, o cheiro acudindo-me às narinas e o pé escorregando no pedal do travão
como em manteiga.
É
sorte, depois limpo, por agora o que interessa é a bica, ou morro. A Bileta fechada, o Sr. Paulo idem, a padaria
aspas aspas, pois é, estarão na ressaca como eu se calhar, melhor nem me queixar
e buscar já outras paragens.
Natal,
brinquedos, crianças, e seguindo este raciocínio rumo ao Parque Infantil que
tem quiosque e esplanada. Ao passar nas Portas/ Rua de Raimundo reparo estarem
fechados os portões da Mata do Jardim mas não desvaneço e sigo confiante, na 1º
de Maio* o jardim está aberto, o quiosque funciona embora tenha a esplanada
vazia, talvez o parque também, mais duas centenas de metros e estarei lá.
Saio
do carro, no rebordo do lancil raspo a merda do sapato, entro e esfrego o pé na
relva molhada para tirar o restante, dirijo-me à fonte e ali, nas pedras que a
contêm e circundam raspo o que resta, imerjo o sapato ligeiramente na água do
lago para o lavar, olho então o quiosque, fechado, as cadeiras encavalitadas na
esplanada feita um viveiro de folhas de outono, varro o parque com o olhar, nem
um brinquedo, nem uma criança, nem um adulto, ninguém, somente o sol fazendo
evaporar da relva um nevoeiro ténue.
Agarro
um pequeno galho para com ele raspar a merda metida nos sulcos da sola do
sapato e procuro com o olhar varrendo o parque, um banco onde me sentar e népia,
nem um, num parque enorme nem um único banco, alguém na junta de freguesia
também cagou o pé todo, aliás na realidade e para ser franco há por ali dois ou
três blocos de mármore disformes querendo ser bancos, mas estão gelados e
molhados, caguei o pé e molhei o cu, há dias de sorte…
Está
visto que não me querem ali, avanço e faço o carro repetir a volta novamente até à praça
28 de Maio*. Estaciono, entro no jardim e sento-me na esplanada
solarenga, finalmente uma bica, estava desfalecer.
Também
aqui nem brinquedos nem crianças, nem adultos. Um bando de chineses ou
japoneses fotografando tudo passa rindo, rindo sempre, rindo de tudo, sorrindo
com cara de idiotas. Cisnes, patinhos, peixinhos. Pombinhos e um bando de
pardais esvoaçam por ali sem medo de mim, um pavão lindo abre o leque ao sol
olhando-me. Os pombos, como os pardais, ou com fome ou sem vergonha vêem comer
as migalhas quase a meus pés. Compro um queque e desfarelo-o, dou-lho e
tragam-no num ápice como um bando ávido, e por avidez lembro-me do Banif, do
BES, do BPP, do BPN, dos Swaps, do fisco, da TAP, da Carris do Metro da
Transtejo e deste país onde para engolir são todos como os pombos, nem
mastigam, ávidos dos tachos, das sinecuras, das nomeações, de boys.
É
dia de Natal, hoje a nossa comuna de café, a nossa tertúlia não reunirá em
volta de uma mesa quadrada, nem redonda, aliás para ser franco tem vindo a
reunir cada vez menos, noto neles um medo de falar como sentia há quarenta
anos. Primeiro o fio da conversa partindo-se ou desaparecendo, depois as
próprias conversas, soltam-se e, ao invés delas umas frases soltas, e mesmo a essas
banalidades a maioria teme responder calando-se, ou refugiando-se no pois, no é
a vida, no isto não tem melhoras, no isto não tem conserto, no são todos
iguais….
O
Teles masca as respostas temendo que o ouçam e ninguém ouve o que diz, a Ofélia
fala cada vez mais baixo e já ninguém lhe liga, aliás acho que se não fosse
pelas mamas que tem nem o lugar lhe guardariam em torno da mesa. Talvez por
isso já ninguém lhe liga, já nem perdem tempo a responder-lhe e também ela se
vai aos poucos calando. Com receio que o ouçam e metam no cu do chefe da
repartição o Grenho imita-a, o Gomes teme que sussurrem o que lhe ouçam aos
ouvidos do vereador e passou a falar entre dentes, a Andreia teme o general da
messe onde trabalha, o Barrenho o patrão, o Silva o sindicato, o Quintas o
partido, o José Fonseca a mulher, a Joana o senhorio com quem anda desaguisada,
o Marmelada nem aparece, a Justa apagou-se temendo serem vistos connosco e , um
a um todos se vão calando ou afastando, o mesmo noto no jornal da terra e que
costuma estar na mesa, meias noticias ou nem sequer noticias, que é como quem
diz só noticias de merda.
Os
dos partidos de direita pasmam com as asneiradas que os seus próprios partidos
cometem, os dos partidos de esquerda também, e todos pasmam com a situação de
miséria a que chegámos, com tanto expert mandando postas de pescada e mesmo
assim nos atolámos, tanto sábio, tanta sabedoria e toma lá que é para
aprenderes a culpa é toda da Maçonaria diz o Maia, a Ofélia teria dado conta do
recado cem vezes melhor gargalha o Cesário em defesa dela (andam enrolados) e
logo um outro:
- E
com aqueles atributos a camarada contentaria mais que uma tendência…
-
Tendência ou classe, atira um outro, cada facção sua sentença e cada sentença
sua cabeça e cada cabeça uma cagada debita um outro rindo-se enquanto fala.
- Lá
classe tem ela, rosna o Cesário baixinho rindo-se sarcástico.
-
Dezanove milhões estourados em ajudas a bancos falidos e queriam vocês melhor
jorna, melhores pensões e ordenado mínimo, pois sim pois sim tá bem, isto não
me lembra senão o tempo do Carmona, do Sidónio Pais, só já falta um Salazar
para o filme se repetir aventa irritado o professor Macário ajeitando o saco
e a algália pois é incontinente, e incontinente verbal também, já o conhecemos
e bem.
E
assim vamos, os dos partidos de direita pasmam com as asneiradas dos partidos
de esquerda e estes com as que os partidos de direita cometem, no entretanto
cada um define-se cada vez menos e hoje quem de fora nos observe não será capaz
de dizer quem é quem, quem é de direita ou de esquerda, e nem cada um deles
mesmos já sabe, tal as arestas que a si próprios têm limado, a tal ponto que,
os únicos a manter a coerência são precisamente os que desde a primeira hora nunca
a tiveram e que continuam tal e qual, os gelatinosos bandeirinhas que tanto
trabalho davam a afastar da mesa.
Mas
enfim, é a vida, e é Natal, e como alguém disse; “vai dar banho ao cão, toda a
gente quer ficar em casa no Natal”, acrescentando que se eu não fosse galdério
ter-me-ia certamente poupado a algumas chatices como cagar o pé todo em merda
do dito cujo, todavia, mas porém, outros dizem contudo ser sinal de sorte pelo
que amanhã irei jogar logo de manhãzinha no Euro milhões ! !
Cést la vie, cada um é para o que nasce, saí
da esplanada e procurei, ávido, a casita de banho por baixo da arcada do
palácio mas só havia para senhoras, no problem, desandei por ali abaixo em
direcção à capoeira dos pavões, encostei-me bem à sebe, olhei em redor, deparei
nas minhas costas com as ruínas fingidas e os portões de ferro que dali davam
acesso à mata fechados, mirei em frente o imponente Palácio de El-Rei D. Manuel,
em especial as janelas cimeiras e então e só então, e enquanto pensava que a
cidade já viveu melhores dias, pena que tenham sido há perto de quinhentos
anos, aliviei-me com desembaraço e desenvoltura pois embora não seja
incontinente tenho problemas de bexiga e rins pelo que me soube mesmo bem
aquele desabafo visto estar mesmo apertadinho e a junta de freguesia por vistos
nem dessas coisas se lembrar.
E assim
acabou a minha manhã de Natal, rumei ainda ao Palácio do Barrocal onde pensava
procurar uma lente de contacto perdida mas quer o Palácio quer a Exposição
Duplos X 2 Sandra / José da Fonseca* estavam fechados pelo que lá fui andando,
ou desandando em direcção a casa e ao almoço como Camões, vesgo de um olho mas
já sem o pé cagado.
Quanto
à mesa dos ma·cam·bú·zi·os, expressivo adjectivo e/ou substantivo masculino
significando quem não mostre alegria ou tenha tendência para se isolar, ou seres
sorumbáticos, taciturnos, tristes, tristonhos, meditabundos, está para durar,
ou agravar-se-lhe o mal que é como quem diz estará para acabar. Bom Natal e
vejam onde metem as patas.