Pintura de Beatriz Lamas Oliveira
A
minha resposta é; - Não sei. Não sei umas vezes, é-me difícil outras, aproveito
por vezes restos de conversas, ou bocados das que escuto aqui e ali. Já o tenho
confessado mais que uma vez, torna-se por vezes mais difícil em certas ocasiões
arranjar tema para uma crónica que decidir que fazer para o almoço ou jantar do
dia. Outras saem de jorro, a imaginação correndo apressada à frente da
esferográfica, eu fazendo um esforço para não esquecer migalha. Crónicas há
cuja inspiração me chegou em sonhos, que em sobressalto me acordaram e me
sentaram à mesa, papel e lápis arrebanhados num ápice para não esquecer pitada.
A de
hoje vai dedicada a um homem que não tem tempo para pensar, e me confessou o
seu espanto pela minha semanal persistência e imaginação. Penso já lhe ter
respondido com as palavras citadas, mas, nunca ele pensou, ter-me logo ali
resolvido o problema desta semana, o tema ou mote para estas linhas.
Todas
o conhecemos, vemo-lo a qualquer hora do dia, desdobrando-se em mirabolante
ginástica por detrás do balcão da sua loja, loja recheada de toda uma panóplia
de imprevistos e milagres, à volta dos quais a sua vida se vai desgastando.
Enquanto pelos quatro cantos do planeta se apregoa o despertar do milénio,
naquela loja as clientes parecem entrar em busca da redenção do mundo, e ainda
que muitas vezes seja preciso esperar, é um tempo que se aproveita espiando o
ir e vir das pessoas.
Não
sei se aportou a Évora ou se sempre aqui viveu, sei isso sim que a sua presença
transcende já o limite daquelas luxuriantes paredes, atapetadas que estão de
toda a quinquilharia que possamos imaginar, mais parecendo soberbos expositores
de topázios, esmeraldas, rubis e outras pérolas. Não me entendam mal, não estou
a falar de pechisbeque, não estivesse aquele amontoado de milagres indizíveis
esperando a sua vez de nos acudir, e que razão se encontraria para que a loja
esteja sempre mais cheia que uma missa de meio dia ?
A
evolução deste pequeno mundo que é Portugal parece não ser sentida ali, num
quotidiano feito não sei quantas vezes de trivialidade, sem espavento, com a
simplicidade e a autoridade de quem parece dirigir o destino. O senhor Coincas
e a sua loja sobrevivem ao meu espanto, e na certa mais ainda às (aos) amantes
das novas catedrais do consumo, os Hiper’s, há alguns anos instalados entre
nós, e que parecem causar alguns aborrecimentos ao comércio tradicional.
Mas já
que falamos de comércio tradicional, de que sou indefectível defensora, vale a
pena recordar; onde ir comprar um nastro, um colchete, um jogo de botões, uma
renda, uma peça para lençóis ou cortinados ? Imaginem, ou experimentem,
procurar estas singelas necessidades nesses modernos templos sacudidos pelos
áureos ventos do nosso novel modernismo saloio, os hiper’s, cujas relações se
pautam pela extravagância, pelo impossível e às vezes, a maior parte delas
registe-se, pelo desprezo completo pelo cliente, e, na melhor das hipóteses por
uma arrogante insensibilidade.
Naquela
loja as portas estão sempre abertas, sabemo-lo, para lá nos dirigimos
imaginando tesouros que estão muito além da realidade. Mal entramos, de olhos
ardentes perscrutamos a escuridão luminosa daquela “gruta”, onde o silêncio
parece mais pesado e o tempo dilatar-se fazendo-nos esquecer as pressas. De
imediato um cordial bom dia nos chega aos ouvidos, há sempre uma atenção
especial para cada uma de nós, sem perder as outras de vista e de mesuras,
parecendo sentir por todas um carinho especial, que sentimos vindo de uma
figura angélica, intocada pela maldade. Cativa, porque cultiva um temperamento,
uma sensibilidade que nos toca, que nos tolhe. Não me lembro de o ver como
nunca andou, gravata frouxa, colarinho desabotoado. Por vezes pareceu-me ver
uma aura nas suas mãos, enquanto a suavidade dos modos e a solenidade do trato
me confortaram a alma, danada com os pecados da criação.
No
entretanto o senhor Coincas flutua desafiando o balcão, multiplicando gestos e
habilidades na procura do impossível, que, demorando embora mais algum tempo,
também ali encontramos. Uma antiquada severidade para consigo próprio fá-lo
parecer mais velho, mas na certa é um compromisso de amor para com o seu
trabalho. O trabalho eleva o homem, é dos livros, mas não vale o esforço se não
nos libertarmos da sua tirania, sob pena de nos enganarmos por despeito.
Talvez tivesse esperado, sempre, que com os anos viesse a descobrir o veio que alimentasse um abundante filão. Não o imagino rico, mas que aquela loja tem magia, nisso acredito.
Talvez tivesse esperado, sempre, que com os anos viesse a descobrir o veio que alimentasse um abundante filão. Não o imagino rico, mas que aquela loja tem magia, nisso acredito.
* Maria Luísa Baião, pub. no Diário do Sul,
coluna Kota de Mulher – Março de 2002