quinta-feira, 9 de junho de 2016

349 - É UMA LOJA MÁGICA, Maria Luísa Baião * ...

Pintura de Beatriz Lamas Oliveira

A minha resposta é; - Não sei. Não sei umas vezes, é-me difícil outras, aproveito por vezes restos de conversas, ou bocados das que escuto aqui e ali. Já o tenho confessado mais que uma vez, torna-se por vezes mais difícil em certas ocasiões arranjar tema para uma crónica que decidir que fazer para o almoço ou jantar do dia. Outras saem de jorro, a imaginação correndo apressada à frente da esferográfica, eu fazendo um esforço para não esquecer migalha. Crónicas há cuja inspiração me chegou em sonhos, que em sobressalto me acordaram e me sentaram à mesa, papel e lápis arrebanhados num ápice para não esquecer pitada.

A de hoje vai dedicada a um homem que não tem tempo para pensar, e me confessou o seu espanto pela minha semanal persistência e imaginação. Penso já lhe ter respondido com as palavras citadas, mas, nunca ele pensou, ter-me logo ali resolvido o problema desta semana, o tema ou mote para estas linhas.

Todas o conhecemos, vemo-lo a qualquer hora do dia, desdobrando-se em mirabolante ginástica por detrás do balcão da sua loja, loja recheada de toda uma panóplia de imprevistos e milagres, à volta dos quais a sua vida se vai desgastando. Enquanto pelos quatro cantos do planeta se apregoa o despertar do milénio, naquela loja as clientes parecem entrar em busca da redenção do mundo, e ainda que muitas vezes seja preciso esperar, é um tempo que se aproveita espiando o ir e vir das pessoas.

Não sei se aportou a Évora ou se sempre aqui viveu, sei isso sim que a sua presença transcende já o limite daquelas luxuriantes paredes, atapetadas que estão de toda a quinquilharia que possamos imaginar, mais parecendo soberbos expositores de topázios, esmeraldas, rubis e outras pérolas. Não me entendam mal, não estou a falar de pechisbeque, não estivesse aquele amontoado de milagres indizíveis esperando a sua vez de nos acudir, e que razão se encontraria para que a loja esteja sempre mais cheia que uma missa de meio dia ?

A evolução deste pequeno mundo que é Portugal parece não ser sentida ali, num quotidiano feito não sei quantas vezes de trivialidade, sem espavento, com a simplicidade e a autoridade de quem parece dirigir o destino. O senhor Coincas e a sua loja sobrevivem ao meu espanto, e na certa mais ainda às (aos) amantes das novas catedrais do consumo, os Hiper’s, há alguns anos instalados entre nós, e que parecem causar alguns aborrecimentos ao comércio tradicional.

Mas já que falamos de comércio tradicional, de que sou indefectível defensora, vale a pena recordar; onde ir comprar um nastro, um colchete, um jogo de botões, uma renda, uma peça para lençóis ou cortinados ? Imaginem, ou experimentem, procurar estas singelas necessidades nesses modernos templos sacudidos pelos áureos ventos do nosso novel modernismo saloio, os hiper’s, cujas relações se pautam pela extravagância, pelo impossível e às vezes, a maior parte delas registe-se, pelo desprezo completo pelo cliente, e, na melhor das hipóteses por uma arrogante insensibilidade.

Naquela loja as portas estão sempre abertas, sabemo-lo, para lá nos dirigimos imaginando tesouros que estão muito além da realidade. Mal entramos, de olhos ardentes perscrutamos a escuridão luminosa daquela “gruta”, onde o silêncio parece mais pesado e o tempo dilatar-se fazendo-nos esquecer as pressas. De imediato um cordial bom dia nos chega aos ouvidos, há sempre uma atenção especial para cada uma de nós, sem perder as outras de vista e de mesuras, parecendo sentir por todas um carinho especial, que sentimos vindo de uma figura angélica, intocada pela maldade. Cativa, porque cultiva um temperamento, uma sensibilidade que nos toca, que nos tolhe. Não me lembro de o ver como nunca andou, gravata frouxa, colarinho desabotoado. Por vezes pareceu-me ver uma aura nas suas mãos, enquanto a suavidade dos modos e a solenidade do trato me confortaram a alma, danada com os pecados da criação.

No entretanto o senhor Coincas flutua desafiando o balcão, multiplicando gestos e habilidades na procura do impossível, que, demorando embora mais algum tempo, também ali encontramos. Uma antiquada severidade para consigo próprio fá-lo parecer mais velho, mas na certa é um compromisso de amor para com o seu trabalho. O trabalho eleva o homem, é dos livros, mas não vale o esforço se não nos libertarmos da sua tirania, sob pena de nos enganarmos por despeito.

         Talvez tivesse esperado, sempre, que com os anos viesse a descobrir o veio que alimentasse um abundante filão. Não o imagino rico, mas que aquela loja tem magia, nisso acredito.

* Maria Luísa Baião, pub. no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher – Março de 2002