Chutou-lhe
a areia para cima deliberadamente, ela acabara de espalhar o bronzeador e a
areia colou-se-lhe à pele enfurecendo-a. Era um velho hábito dele, hábito velho
e detestável, era isso e o abominável "lontra" com que a mimava sempre que a via
estendida na toalha. Ano após ano e invariavelmente, miminhos como esse e banhos
de areia sucediam - -se mal principiavam as férias e até ao fim destas, por vezes
até muito depois, até o bronze desaparecer e os dias de praia serem esquecidos.
Os
inspectores e investigadores isolaram a zona encostada à arriba e marcaram,
assinalaram, numeraram e fotografaram cada pormenor encontrado nesse fatídico
lugar, areia ensopada foi recolhida e guardada em sacos à prova de contaminação,
e a algumas pegadas encontradas no lugar foram tirados moldes numa massa que
mais parecia gesso. Outros indagaram ou interrogaram pescadores tardios que
ainda por ali cirandavam, talvez presos à curiosidade mórbida que sempre anima
os pobres de espirito e os mais simples.
Dizer
que lhe custava aturá-lo seria mentir, ele aborrecia-a é certo, mas não a
demovia de se sentir bem consigo mesma, sentia-se bonita, sabia-se bonita, e
saber-se vista, olhada, admirada e apreciada era um prazer que guardava só para
si, ser e sentir-se desejada ou cobiçada era o seu supra sumo, o seu segredo
máximo, sabia perfeitamente nunca ter tido um corpo tão esbelto, apesar das
gémeas, considerava-se mesmo no apogeu e aproveitava o que vivia como sendo o
auge, o culminar de uma ambição que alimentava desde jovem.
Magotes
de curiosos foram gentil e friamente afastados pelos inspectores, e quando estes não
conseguiram dar conta do recado veio um contingente da GNR estabelecer a ordem.
A zona protegida, isolada, era uma área considerável, e só a ausência de provas
permitia ou forçava a admitir tal não se dever à participação de animais na
ocorrência. Era o costume, javalis, gatos e cães vadios deambularem esfomeados por
ali, mas a cena apontava para um ritual de sadismo espontâneo cuja acção se divisava, ou adivinhava, mas da qual só o resultado era visível. As diversas
partes do corpo foram colocadas uma a uma respeitosa e criteriosamente em sacos
individuais e igualmente classificadas, tendo sido anotado em cada uma delas com
pormenor e num mapa detalhado do local, o sítio onde fora encontrada.
Indubitavelmente
fora usado um objecto afiado e cortante, ouvira alguém a um dos inspectores, ao mesmo que
desabafara;
-
Quem fez isto sabia o que fazia, sabia onde cortar.
Algumas
vezes se haviam zangado por ela se expôr assim aos olhares alheios, ela
argumentando não ser a única e ser dona do seu corpo, ele que olhasse em volta e
reparasse, mais de metade das mulheres naquele recanto da praia faziam topless,
que aliás era bom para a saúde. Ele ripostava entre dentes, contrariado ou
ciumento, chutando-lhe areia para cima mal via a lontrinha estendida na
toalha, seminua e oferecida aos olhos de toda a gente. Nunca passaram daí, mas
já por várias vezes ambos tinham terminado as férias antes do tempo
devido ao amargo da coisa…
O
golpe começara nitidamente na púbis e só a resistência do externo travara a lâmina.
O tronco estava aberto como o de um porco, ou duma rã, daquelas que dissecávamos nas aulas de
ciências naturais quando éramos gaiatos e às quais cortávamos a cabeça, os
braços e as pernas pois a malta gramava vê-las mexer apesar de decepadas.
Naquele momento lembrei a professora Georgete Marcão inspeccionando,
explicando, cabelo arranjado, unhas tratadas, bata branca desabotoada na
frente, o fio de ouro pendendo repousado sobre os seios, hirtos, espetados,
duros, volumosos q.b. e, contrastando, a cintura adelgaçada por um cinto
larguíssimo e uma fivela ainda maior.
Os
seios foram os primeiros a ser guardados, grandes mas apesar de tudo ainda gelatinosos,
cheios de areia, meticulosamente cortados e atirados cada um para seu lado.
Agora flácidos mais pareciam duas próteses de silicone. As pernas inteirinhas
dos pés à anca, bonitas ainda, cada uma com a respectiva nádega, o modo como
estavam cortadas indiciava que quem o fizera sabia o que fazia, o inspector
tinha razão, o meliante sabia o que fazia e onde cortar, e fê-lo com calma, com tempo,
circunstância ou detalhe que conduz a outra não menos despicienda dedução, a
vitima não estrebuchara, não dera luta, portanto o pescoço terá sido o primeiro
a ser cortado, cerce, com um golpe limpo, terá sido um golpe único, porém fica
a dúvida.
Mesmo
de longe consegui observar que a vitima usava o cabelo curto, curtinho,
curtíssimo, onde e como lhe teria ele pegado, agarrado, ele ou ela, digo o
homicida, como terá subjugado a vitima para aplicar o golpe sabendo-se-lhe a testa
oleada e escorregadia devido ao bronzeador ?
Há
mistérios que, por mais que a gente pense, por mais que a gente os reconstrua
ou tente reconstruir a cena jamais lograremos esclarecer. A uns cinquenta
passos e onde a verdura já se mantinha estava montado uma espécie de altar
improvisado, maçãs, símbolo do pecado, flores, velas, terá sido um qualquer
rito a ditar a sorte da desgraçada ? Espalhadas um pouco aleatoriamente meia
dúzia de embalagens ou saquetas de Durex acusavam nitidamente a tentativa de
terem pretendido ser abertas, poderia residir nelas a chave do mistério e
guardarem as impressões digitais do assassino, decerto que a ter havido sexo
não fora consentido, teria havido estupro, a vítima fora violada e somente a
autopsia diria se fora esventrada ainda viva ou depois de morta.
A
proximidade a que me encontrava facilitou-me a apreensão do ocorrido, mas mexeu
muito comigo, à noitinha tentei fazer a minha gelatina preferida que contudo não
me saiu como sempre, mas mesmo com isto na cabeça, isto a cena de praia macabra,
e fazendo as limpezas em simultâneo, acabei de descobrir porque me saíra mal a
gelatina… é que entre uma coisa e outra vou fazendo outras e depois meto os pés
pelas mãos, mas afinal sabem porquê, porque me falhou desta vez a gelatina ?
Sabei
então porque me saiu mal a gelatina, porque liguei o forno no máximo e ele só
pode estar a 160º !
Ele
há coisas...