Muito se tem
falado ultimamente em ciganos e RSI, mas pouco se tem adiantado quer acerca de
um termo quer do outro, quando afinal e curiosamente esta coisa do RSI remonta
ao ano mil e à época das cruzadas, embora pouca gente lembre ou relacione tal.
O que comummente é lembrado é o pedido de ajuda de El-Rei D. Afonso Henriques
aos cruzados descendo a costa em direcção à Terra Santa, para o ajudarem a combater o infiel conquistando-lhe Lisboa, pois os mouros encontravam-se mesmo ali à mão de semear, ajuda que não negaram. Lisboa foi conquistada a 21 de Outubro de 1147, tinha o
reino de Portucale quatro aninhos.
Esta foi a
primeira cruzada da nossa história, mas não foi a primeira da Europa, cujos
senhores feudais arrebanharam os seus exércitos privados e os servos da gleba,
formando verdadeiros movimentos militares, quais hooligans de inspiração cristã partindo
rumo à Terra Santa e a Jerusalém com o fito de a conquistar, e naturalmente
saquear, ocupar, escravizar e sugar, mantendo-a sob domínio cristão enquanto
Deus na sua imensa omnisciência o permitisse.
As primeiras cruzadas
foram chamadas de "invasões francas" porque eram verdadeiras invasões,
e porque os cruzados provinham originalmente do Império Carolíngio e se
autodenominavam francos (do reino Franco, quase a actual França), numa época em que a Palestina estava sob controlo do rico
Sultanato de Rum, portanto um impenitente infiel. Nada nos deve em consciência
admirar que a Ordem de São João de Jerusalém (Hospitalários) e dos Cavaleiros
Templários tenham sido criadas durante as Cruzadas.
Estas ordens e cruzadas foram
inicialmente julgadas ligeira e acriticamente um movimento, uma guerra
religiosa ou mesmo uma ideia política ou moral, e para as descrever os poderes
instalados na Europa geralmente socorriam-se de expressões como
"peregrinação" e "guerra santa" pois Cruzadas eram também
peregrinação, forma de pagamento de promessas, forma de pedir a Deus alguma
graça, alguma indulgência, e os sacrifícios a que obrigavam poderiam no extremo ser considerados
uma penitência e trocados por favores celestiais após a morte.
No fundo tudo
isto não passava de esfarrapadas desculpas para o saque generalizado e
violência gratuita, mas Deus mandava e portanto Ele lá saberia, tendo-se
chegado ao cúmulo dos seus participantes serem e se considerarem soldados de
Cristo, sendo mesmo distinguidos pela cruz ostentada nas roupas.
Verdade
verdade é que as Cruzadas contribuíram muito para o comércio com o Oriente, e
quem diz comércio diz intercâmbio, e quem diz intercâmbio diz arte e cultura,
ciência, literatura, saberes, tradições, filosofias, sendo que nenhuma destas acções
se processa unilateralmente, para haver interacção como sabem são precisos pelo
menos dois, e porque em certas cousas um é pouco e três são demasiados,
aconteceu que aqueles dois ou estes dois coiso e tal e tal e coiso, e coisaram,
e para ser franco direi que alguns francos por lá ficaram, outros regressaram,
mas francamente não podendo passar sem as suas Xerazades acabaram por trazê-las,
a história não diz se pagaram franquia mas eram motivo de curiosidade em todas
as feiras francas em que surgiam.
Ora ainda a
propósito de cruzadas reza a história dessa época, caracterizada por fortíssimo
misticismo, que é o mesmo que dizer uma infalível crença na comunicação entre o
homem e a divindade, levando ao recolhimento e à vida contemplativa, a uma devoção
exagerada e mercê da ignorância geral a forte tendência para acreditar no
sobrenatural, factores que, aliados à crença corrente de que o fim dos tempos
estaria próximo, conduziu por volta do ano mil a um intempestivo movimento
popular, um acontecimento espontâneo que ficou conhecido como a Cruzada Popular,
despoletada numa Europa medieval, miserável, prenhe de desigualdades e
submissões, quase vivendo da escravatura, no mínimo no feudalismo, uma Europa
faminta.
Essa cruzada popular, apelidada de Cruzada dos
Mendigos, iniciada antes da Primeira Cruzada oficial, contribuiu para aumentar imenso
o volume das peregrinações de cristãos rumo a Jerusalém e que, mercê da sua
génese classista e popular reuniu uma horda de guerreiros, havendo entre a turba mulheres,
velhos e crianças à frente de quem se encontrava o monge Pedro, o Eremita, que
a todos arrastava graças a pregações comoventes e promessas de infindas riquezas
e recursos financeiros.
Na longa viagem até à Palestina estes cruzados buscaram e violentaram dentro da Europa os ricos considerados infiéis, os judeus, em especial os judeus mais ricos, os da Renânia, e inspirados p'lo tal Pedro o
Eremita, liderando a trupe de maltrapilhos, matavam todos os judeus que se
recusassem a abraçar a fé cristã, tendo assassinado ainda na Europa mais de cem mil
judeus. O grupo prosseguiu atacando Worms, Judengasse, Colônia, Trier, Metz, Praga, Ratisbona,
Oedenburg (atual Sopron), Belgrado, onde essa horda de cruzados pilhou a área
rural e 150 deles morreram dessa vez num pequeno confronto com a população local.
Contudo o
sentimento anti-judeu espalhara-se entretanto pela França e Inglaterra e por todo o lado por
onde idênticos bandos seguiram esse levantamento popular, autodesignados peregrinos por Cristo, após atravessarem em arrastão a Alemanha, a Hungria e a Bulgária,
causando desordens e desacatos, acabando em parte aniquilados pelos
búlgaros.
Ao chegarem à cidade bizantina de Constantinopla
e apesar das péssimas condições dessa cruzada, a turba, que se encontrava mal
equipada e mal alimentada, não deixou todavia de a massacrar, pilhar e destruir,
tendo saqueado a cidade a 1 de Agosto de 1096.
Para afastar este "bando
turbulento" de sua capital o imperador bizantino logrou obrigá-los a alojar-se
fora de Constantinopla, perto da fronteira muçulmana, e incentivá-los a atacar
os infiéis. Tal como o imperador esperava foi um desastre, e um alívio para ele, pois a Cruzada dos Mendigos chegara
muito enfraquecida à Ásia Menor e foi arrasada pelos turcos.
Somente um
reduzido grupo desses perigosos indigentes conseguiu juntar-se posteriormente às
cruzadas dos cavaleiros, esclareço, dos senhores feudais. Essa turba foi o
primeiro exemplo histórico registado envolvendo desempregados, hooligans,
famintos, presidiários, excomungados, condenados, ladrões, sacristãos, facínoras,
indivíduos anti-sociais, desintegrados, adictos, delinquentes, refugiados, emigrados, pobreza
extrema, fome e todos os itens necessários a fazer da Europa o barril explosivo
em que ela durante bastante tempo esteve transformada.
Ora é fácil concluir
que toda aquela gente ambicionava as riquezas que o médio oriente lhe
prodigalizaria, ou melhor, talvez nem se tivessem arrastado até lá caso na
Europa, na sua terra, tivessem encontrado um mínimo que lhes tivesse permitido
enfrentar as adversidades com alguma solidariedade e capacidade. Aconteceu que
não e ficaram na história como o primeiro arrastão, e que arrastão… Imaginem se por cá o Padre Melícias se pusesse a pregar e a mobilizar o pessoal contra as riquezas da igreja e da democracia... Ou ele ou o padre Mário, da Lixa... ***
Mas os
séculos provaram contudo que ainda que caro esse embate que as cruzadas
permitiram ou forçaram, esse encontro ainda que violento de duas civilizações,
a europeia e a do islão, deu frutos. A longo tempo e a longo prazo constataram
os europeus quão atrasados cultural e civilizacionalmente estavam em relação
aos vencidos que pela força tinham subjugado.
Tal qual acontecera com os
Romanos em relação aos Gregos, viria a acontecer agora, os Europeus tomaram-se
de brios e não quiseram cultural e cientificamente ficar atrás da civilização
islâmica, que venceram mas com a qual muito aprenderam. Vai daí despoleta-se por todo o
continente europeu a vergonha pelo atraso a par da vontade de desenterrar os clássicos que a igreja ao longo
dos séculos mais enterrara que protegera.
Aqui e ali timidamente primeiro e depois de modo
generalizado assiste-se a um renascimento dos cânones clássicos greco-romanos e
cá estamos onde vos queria, precisamente no Renascimento, cujo ideário
renascentista, humanista e clássico o “homem vitruviano” do mestre Leonardo da
Vinci tão bem sintetiza“.
Ora
fora por esta época que tivera lugar a Quinta Cruzada, a última, 1217-1221,
toda ela cheia de peripécias pré e post, pelo que como vemos as Cruzadas e as
suas consequências e influências entraram pelo Renascimento como faca em
manteiga, ou, para adequarmos o linguajar a esses tempos, como se escorregassem
por toucinho barrando cuzinho de maometano.
O próprio
método que nos níveis inferiores do ensino usamos para estudar a história não
convida a relacionar nem interrelacionar acontecimentos nem influências mútuas,
focamo-nos no chamado estudo factual, na cronologia do lugar ou do espaço, o chamado
estudo diacrónico, das datas, dos acontecimentos, dos personagens, das
batalhas, das vitórias, dos sucessos, quase reduzindo à inextência os percalços
e descalabros, as derrotas e as perdas.
O aparecimento da “Nova Historia” em
1970, sob impulsão de Jacques Le Goff e Pierre Nora, académicos franceses, (tal
como acontecera em 1957-58 com a Nova Geografia)** trouxe uma nova visão da
história,* comparada ou sincrónica, isto é em sincronia, em simultaneidade,
comparando no mesmo momento o que se passava aqui e nos antípodas, sincronizado, é só meter a quinta e andar.
Surgiram novos
métodos e cuidadosos critérios para avaliar correlações e influências, novas
exigências, permitindo a recolha de informação a partir de novas fontes e o
avanço do conhecimento histórico, enfim, uma “Nova História” lançada na revista
“Annales d'histoire économique et sociale” trazendo então a grande novidade de incorporação
das Ciências Sociais na História. Os estudiosos contudo continuam terçando armas
quanto às variações, por vezes consideráveis, nas datas dos grandes movimentos e
tendências históricas, birrinhas de sábios, todavia nada com que a história se incomode ou a mude ...
Seja como
for, os períodos marcados privilegiam as divisões históricas ao facilitar a sua
demarcação e o seu estudo, diacrónico ou sincrónico, abrangendo as
transformações e interinfluências em muitas áreas da vida humana cujas
inter-relações acabam sendo estudadas profundamente. Ora só a história e nós
ganhamos com isso.
Outra divisão impossível de classificar com exactidão, até
por não se ter processado simultaneamente em toda a Europa é a transição do
feudalismo para o capitalismo, essa ruptura nas estruturas medievais, área por
excelência onde ou em que o termo é sobretudo empregado para assinalar especialmente os efeitos nas artes, na filosofia e nas ciências, sim nas ciências, pois
chegámos a outro entroncamento da nossa conversa e é tempo de derivar para o
aproveitamento feito da ciência recuperada aos clássicos, em especial de
Ptolomeu, o homem que os portugueses mais contrariaram, desmistificaram e desmentiram, mas
desmentiram com factos e não com teorias metafisicas ou abstractas.
Foram os
portugueses, mais que todo e qualquer outro povo, quem norteou as mudanças
históricas em direcção a um ideal humanista e naturalista. Johannes Gutenberg é
deste período, digo-o só para ajudar a que vos situeis no tempo cronológico. Portugal destacou-se
pelo seu experimentalismo, experienciava as cousas, vivia-as, estimulava-as ou
provocava-as com o intuito de conseguir um resultado. Aliás, sem essa iniciativa e experiência não teriam sido tão vastos os territórios descobertos e
cartografados por e para Portugal.
Foi grandemente valorizada no Renascimento a
experiência, e os inventos de Leonardo da Vinci são prova disso mesmo, pois a experiência
e a observação foram o método da arte de marear, método estendido a todas as artes. A contínua observação e
comparação dos astros e de fenómenos naturais apuraram toda a ciência, dando origem
aos diversos tratados e, curiosamente, a uma frase correndo nos meios intelectuais
europeus, ou seja no mundo, exigindo que toda e qualquer coisa fosse provada à maneira
portuguesa, isto é que se fizesse como faziam os portugueses, se provasse sem
sombra de dúvida o que era afirmado.
Como a experiência
era a madre das coisas, e foi essa experimentação que induziu ao aparecimento
do método científico nas ciências, segundo Duarte Pacheco Pereira iam os
navegadores testando as teorias criadas e anotando as variações e
especificidades verificadas. Este período em que as trevas deram lugar à luz e a
ignorância lugar ao saber despertou como iluminismo ou Século das Luzes, e
procurou fazer valer o poder da razão, a fim de reformar a sociedade e o
conhecimento escolástico herdado da tradição medieval.
O iluminismo floresceu
até cerca de 1790-1800. Não por acaso foi a época de Jean-Jacques Rousseau 1712-1778,
o tal do Contrato Social, que, parecendo que não tem muito a ver com os ciganos
e o RSI aqui abordados.
E chegamos ao
Entroncamento sendo tempo de nos lembrarmos dos ciganos, pois em relação a eles
haverá muito a dizer inda que eu vos diga somente duas cousas, a primeira é que
se há gente pouco enganada ao longo da vida têm sido eles, há muitos anos
voltados para a contemplação, coisa que os nossos filósofos, políticos e
governantes nos prometem há séculos e da qual estamos cada vez mais longe.
Nacionalismo, patriotismo, são para muitos de nós e em especial para os ciganos
as tretas com que nos dão a volta ao miolo, daí eles serem apátridas, e nada
disso me admira porque, uma pátria como a minha que me suga até ao tutano em benefício
de bem poucos, pouco ou nada nos dando, e que pudendo sacudiria das costas
não é pátria que se ame.
Segunda asserção, a última aldrabice que nos está
sendo vendida é a da robotização, pois ouvi de um cigano que não, não haverá
mais fartura para todos, nem mais descanso ou mais felicidade para todos, ou
mais tempo para a contemplação ou para viajar, haverá sim mais desemprego, mais
fome e mais infelicidade para todos, e ninguém terá dinheiro para comprar um simples
bilhete de autocarro quanto mais de avião, porém estará garantida muito mais riqueza
para quem já seja rico.
Quanto a eles ciganos, já contemplam e hão-de continuar
comtemplando a nossa alienada sociedade, fugindo em especial do materialismo
que nos subjuga, em troca duma liberdade que pagam cara mas que não se importam
de pagar. Contudo digamos em sua defesa que nunca roubaram ou sequer mandaram
abaixo um banco, para bom entendedor meia palavra bastará, estou convencido
disso.
E pronto, chegámos ao fim e batemos com o nariz no RSI, que é, recordai a cruzada dos Mendigos à frente de quem se encontrava o monge Pedro, o Eremita, que a todos arrastava graças a pregações comoventes e promessas de infindas riquezas e recursos financeiros, tendo espalhado o terror por toda a Europa e feito milhares e milhares de vítimas mortais, em especial entre os ricos cuja riqueza e bem-estar os pobres e famintos cobiçavam.
Pois bem meu artolas, falo
directamente para ti que pagas o RSI com os teus impostos, o RSI, o Subsídio de
Desemprego e tantos outros para que possas viver ou vegetar, produzir, pagar
impostos, passear, gozar a vida, ter carrinho, e barco, e mota, e bicicleta e
papagaio, mas ter sobretudo uma vida minimamente aceitável, minimamente segura,
que valha minimamente ser vivida, numa sociedade minimamente civilizada, organizada e solidária.
Uma sociedade assim não o seria sem a criação destes mecanismos sociais. Olha
só quantos séculos passaram, quanta violência, quantas privações, quantos
mortos, quanta falta de solidariedade, quanto martírio e quantos mártires, mas
se me perguntares porque demorámos tanto tempo a saber a aprender isto responder-te-ei,
porque nunca quisemos falar com ciganos, eles sabem isto tudo há bué da time,
há milénios…