Também eu sou testemunha… pesa-me a
memória com tanto testemunho. Mais um oráculo…
Fui criada desde menina entre
tabernas, à rua de Machede a do Xico Fofa, das favas e batatas fritas, que
adorava e cujos pacotes em papel pardo ostentava com orgulho desafiando a
inveja das amigas. Do outro lado do quarteirão, à Mendo Estevens, a do velho
Patrício, acerca de quem, só crescida soube ser o apelido que lhe coubera em
sorte, porquanto pensava para com os meus botões ser ele patrício de todos
quantos se lhe encostavam ao balcão. Em cima desse balcão me punha meu pai,
qual boneca, dançando ao ritmo das vozes e lamentos que os homens soltavam.
Ali, no Farrobo, onde passei a meninice,
já então existiam oráculos, um deles de tal ordem, que por inconveniente toda a
gente evitava mudando de passeio. Dava pelo nome de Perna-de-pau, e nem me
lembro dele lúcido nem falho das razões que então os homens escondiam, de que
só falavam em surdina e que somente o poeta ousou gritar, lá de longe, de Argel.
Também o Perna-de-pau muitas vezes exigia a decifração dos seus ditos, não que
fosse menos que António Aleixo, não lhe apanhara fora o jeito de emparelhar as
palavras. E havia sempre gatos pretos nas janelas.
Então sucedia descer a Mendo Estevens
ruminando os significados do que ele dissera, acabando a rua destrinçando os
nós de cada uma das suas homílias, para quedar-me muda e surda, vendo os homens
que na espartaria do senhor Gaudêncio atavam os nós das redes/camas, sem que
nunca tivessem logrado desatar os das suas vidas. Ainda hoje o senhor
Gaudêncio, apesar de metade de nós não fazerem já a mínima ideia do que seja
uma espartaria, ostenta com um orgulho que lhe louva as origens, encimando o
estabelecimento junto à Praça do Geraldo, “Espartaria e Cordoaria Gaudêncio”,
para mim o homem que consubstanciou o primeiro e mais notável choque
tecnológico a que assisti, quando substituiu, com visão e engenho, o esparto, o
linho e o sisal pelo nylon.
O Farrobo era um mundo à parte. A
história estuda da urbe a judiaria e a mouraria, a sociologia devia estudar o
Farrobo, onde conviviam lado a lado, subsistência e alegria. E lembro-me tão
bem de gatos brancos nas janelas. Ali vida era sobrevivência tecida em filigrana. Pouco
mais avançámos desde a chegada dessa tecnologia aos mouros da cordoaria. Em
miúda decifrava eu os odores se calhava passar à taberna do Carranca, e
entretinha-me, adivinhando e ordenando por intensidades, as ervas com que
compunha os ramalhetes que lhe garantiam casa cheia, rememorando tudo quanto
minha avó Joaquina me ensinara.
Fui um destes dias à igreja, saí dela
lembrando as revistas de encher o olho da papelaria do senhor Manuel, Papelaria
Angola, capas de revistas e vitrais, não vi a diferença. Gatos pretos, gatos
brancos, são iguais. Bom homem o senhor Manuel, Deus lhe tenha a alma em descanso. Uma vida
dedicada a vender sonhos, da Crónica Feminina ao Corin Tellado, depois da Maria
e do Século Ilustrado. Encheu de sonhos as raparigas da Pró-têxtil, depois
Melka, que nunca vestiram uma camisa digna desse nome nem encheram a barriga.
Mas emprenharam de sonhos, o melhor para quem vê recusada a vida. O soalho da igreja,
o mesmo cheiro a lavado na relojoaria do senhor Cabral, ali à Porta Nova.
Sempre remendando as horas sem nunca ter tido uma de sorte para si. Sempre
amável, sorridente, sempre com um olho proeminente virado para os mecanismos,
outro para os ciganos. Sempre pobre e sempre contente. De vez em quando
caía-lhe o olho de ver e fazia que nos não via. Pausa, algumas palavras
simpáticas para nós, e o soalho sempre lavado, sempre exalando aquele odor a
madeira molhada de que ainda hoje gosto. Talvez por ter sido simpático, talvez
pelos despertadores ciosos dos momentos programados, talvez pelas campainhas e
caixas reluzentes de alguns que também vendia fiados. O tempo a prestações,
hoje nem o tempo a estações. Nem vai havendo gatos, nem pretos nem brancos.
E a Drogaria Bacharel? Que o saudoso
senhor Silva deixou ao empregado mais fiel? Tão fiel que está hoje como sempre. Ah ! Falta-lhe agora a máquina de dar
pontos nas meias de vidro, falta, pois não faltara, ele mesmo tivera o cuidado
de pegar nessa senhora, nessa colega, p’ra juntos remendarem as próprias vidas,
casaram e foram muito felizes, ainda são. Meias que ninguém hoje remenda,
remenda-se a vida quando e se ela tiver remendo. Mas nesses tempos os jardins
tinham peixinhos, livros, por vezes música e orquestras no coreto, a data nos
canteiros, cerzida a flores e amor de jardineiros. Tudo eram testemunhos,
oráculos, nem uns nem outros os tempos hoje consentem. As gentes já não sentem
como dantes. Éramos um país de marinheiros, hoje nem de navegantes. Os
primeiros porque verão o seu testemunho sempre adiado pelas circunstâncias, os
outros porque as errâncias se viraram de novo para as Franças, as Espanhas, e
nós, apesar de tudo, com tanto mar.
Mas como a ele voltar se não há ir?
* Publicado in DIÁRIO DO SUL - Coluna “Kota de
Mulher” Outubro de 2005 by Luísa Baião - ESTA VERSÃO É A ORIGINAL, SEM CORTES.