Dois gatinhos costumam rondar a minha
casa, não fossem reais e diria que um é o negativo do outro. Um é branco, com
malhas pretas, o outro, preto com malhas brancas. Onde um é branco, o outro é
preto, e vice-versa, qualquer deles mais manso que uma máquina fotográfica. Além
de brincalhões são glutões, nunca regatearam a comida de cão que lhes atiro, e
pareço ser a única na rua que não temem, correm mesmo para mim quando me
vêem.
Até há algum tempo atrás andei
curiosa, sem que soubesse de quem eram pertença, vim a sabê-lo hoje mesmo, ao
mesmo tempo que percebi porque me não obedeciam, apesar de mostrarem por mim
uma simpatia fora do habitual. É que embora portugueses, falam moldavo, e os
seus nomes, numa tradução mais fonética que gráfica, significam Lindo, um, Bonito,
o outro.
O Lindo e o Bonito pertencem a um de
muitos imigrantes que “vivem” nas e das obras frente à minha casa. O dono, “Régéchiv”(?),
é um simpático homem de trinta anos, engenheiro químico de profissão, a quem o
destino trocou as voltas e as ferramentas, do que resultou um ser bizarro, de
modos educados e maneiras suaves, num corpo de Adónis onde brilham dois olhos
tão azuis que impressionam, como nos impressionam as suas mãos calejadas que
não escondem todavia o traço fino que as desenhou, fazendo com que mais estranho nos pareça o
estereótipo de servente de pedreiro que todas nós intuímos.
Lindo um, bonito o outro, são os
filhos, de nove e onze anos, cuja foto, amarrotada e amarelecida me mostrou, a
preto e branco, tirada numa terra onde as cores parecem não existir, a julgar
pelo que ele mesmo me contou. Na mesma carteira, ao lado do lindo e do bonito,
uma mulher loira daquelas a quem por cá se costuma assobiar, razão pela qual,
me segredou ele, a usa no bolso da camisa, bem junto ao coração.
Está entre nós há poucos meses, mas já
domina o português menos mal, coisa que lhe tem dado mais dificuldade que o
manejo de pás, martelos e picaretas, com que agora tem que haver-se sendo pau
para toda a obra. Do mal o menos, afirmou largando um sorriso feliz, que na sua
terra morria de fome, não porque não tivesse emprego, mas porque a fábrica, sem
encomendas, não tinha com que lhe pagar. Trabalha entre nós dez a doze horas
por dia, seis a sete dias por semana, e arrecada limpos cerca de trinta vezes o
que por lá conseguia no mesmo espaço de tempo. Manda para a família um quarto
desse valor, o restante amealha cá, para que quando os seus possam vir, terem
com que começar uma nova vida. No entretanto todos os quatro dias lhes
telefona, o que lhe sai caro mas não lamenta.
Adora Portugal. Porque não ficou na
Alemanha, ou na França, onde poderia ganhar mais ? Simples, aqui há falta de profissionais
especializados, e espera que esta situação seja passageira, até que o domínio
da língua e a oportunidade lhe permitam vir a trabalhar no seu ramo. De entre
os seus conterrâneos na mesma situação só os médicos não conseguem “cirurgiar”
por cá, me contou, não porque não sejam bons médicos, mas porque as
habilitações não são reconhecidas, o que irá suceder-lhe, mas se um cirurgião
não pode exercer, um engenheiro pode sempre fazê-lo, ainda que não como quadro
superior responsável.
Fiquei da nossa conversa com uma
solene impressão que na Moldávia conhecem melhor do que nós as lacunas dos
nossos recursos humanos e a nossa falta de formação e especialização em todas
as áreas, o que faz com que, a escolha do nosso país seja para eles mais
rentável a médio e longo prazo. Que aventuras terá este homem para contar ? que
sonhos loiros lhe povoarão a mente no negrume das noites passadas na barraca em
que se acoita ? que passeios percorrerá o seu imaginário de mãos dadas com o
bom e o bonito ? que amor se está forjando no tempo e na distância que lhe
coarctam a vida ? Que estranhas forças nos dá a mente e a vontade quando o
queremos ? Porque as não temos tantas (os) de nós, sempre esperando que
outros façam ? É por eles que esperamos
? Moldavos, romenos, ucranianos ?
Ou por D. Sebastião?
* Publicado in DIÁRIO DO SUL - Coluna “Kota
de Mulher” em 07-06-2002 by Maria Luísa Baião