sábado, 10 de março de 2018

O URSO POLAR, SMALL STORY, SHORT STORIES


Não era fingida, era mesmo assim, um pouco “aérea” ou talvez não, mas bastas vezes a vi caminhando absorta, mergulhada nos seus próprios pensamentos, talvez numa introspecção purificadora, ou numa meditação criadora, criativa, um verso agora, a seguir outro, uma rima, uma quadra, um soneto, passo a passo, alinhavando estrofe a estrofe, e, achada a palavra certa, ponto final.

O olhar vivo e um sorriso.

Outras vezes o fácies carregado, o olhar baço, ponto - traço - ponto, neurónios telegrafando sinapses, axónios em polvorosa e nada, por vezes nada, o queixo descaído, os ombros incapazes de segurar a alça da mala, olhar mortiço, o temperamento e a disposição sem tempero nem solução, dias e dias áspera, irritadiça, como se a TPM tivesse inda ocasião, oportunidade, vez. 

Era esse o seu mantra, uns dias com a aura exuberante, outros sem ela, um dia os chacras em cima, outros em baixo, o karma num carrossel ou numa montanha russa, sobe e desce, sobe e desce, um dia toda sorrisos no outro sorrisos para ninguém antes indiferença, desdém, certo dia precurei-lhe a meio de uma conversa:

- Tenho que lhe perguntar, a Jacinta é bipolar ?

- Não ! Que ideia ! Por que pergunta ?

Expliquei-lhe com calma e ponderação a minha razão, o facto de detestar fazer perguntas a outros que não ao próprio, a delicadeza da questão, ao que ela, como já sabem me respondeu não, não era, era sim a vida a culpada, os dias, uns melhores outros piores, tantas vezes como uma montanha russa respondeu-me sorrindo.

- Ou como um carrossel, contrapus eu.

- Sim, ou isso.

A coisa foi esquecida, ultrapassada e esquecida, esqueci até a sua inconstância, o seu caracter volúvel, instável, a alegria feliz versus a meditação e recolhimento intimistas, e passaram-se dias, dois, três, quatro, já nem sei.

Repentinamente dei por ela furtando-se, evitando-me, fingindo não me ver, depois e casualmente reparei no corte de amizade provocado numa rede social que partilhávamos. Ignoro o que pensou durante aqueles dias, com quem falou, com quem se aconselhou, estranhei isso tanto quanto estranhara a sua resposta, tão natural me parecera, demasiado rápida e natural para um caracter incerto, movediço, volátil, inseguro. Devagarinho e lentamente o meu diagnóstico confirmava-se da inconstância à instabilidade, dali à bipolaridade não distaria muito. O passinho dum pardalinho talvez.

Dias depois ao entrar na pastelaria onde calhava encontrarmo-nos muitas vezes mas casualmente já ela ocupava uma mesa, educadamente solicitei permissão para me sentar e indaguei se desejava que passasse a fingir que a não via ou se lhe deveria dar só os bons dias e continuar;

- O Humberto faça como achar melhor, como entender.

Entendi.

Que ganhei ou perdi com tudo isto ? Nada. Então por que será que me senti como um urso polar ? Se é que sei como se sentirão os ursos polares na triste imensidão gelada do árctico...

Se o urso polar
Quisesse pular
Caía na neve
De patas para o ar !

Autor do poema, Mário Castrim