sábado, 10 de março de 2018

IMAGINEM, NEM OS ÓCULOS SE PARTIRAM …



Aproveitei o interesse de todos pelos óculos, em especial a curiosidade dele, por mim usada como manobra de distracção. A dissensão estava a subir de tom, e o orgulho não me permitia aturar-lhe as provocações sem as castigar, sem lhas fazer engolir. Medi-o bem, era deveras mais alto, entroncado e pesado que eu, a coisa pedia uma estratégia adequada e rápida, quanto mais tempo passasse mais riscos correria, mais enxovalhados ficaríamos, ele e eu, trocando impropérios e provocações como duas varinas. Eu sou mais de acção que de conversa e o interesse dele e de todos nos óculos deu resposta às minhas preces.

Eram uns Ray-Ban que trouxera de Durban, de onde chegara nem haveria meia dúzia de dias, uns Ray-Ban modelo aviador que, segundo me apercebi estariam na moda por todo o mundo. Já os vira na montra da Casa Havaneza, caríssimos, quase dez vezes mais do que me tinha custado por isso não me custou sacrificá-los, tirei-os da cara, não fosse alguém julgar estar a esconder-me cobardemente atrás deles para evitar a luta. Nem me lembro bem do motivo mas tornara-se claro que a luta era inevitável e só um cobarde viraria costas. 

           Eu estava na tropa, estava de licença, já era homem, ele seria da minha idade, quando muito haveria entre nós a mais ou a menos, dois a três anos de diferença, para mais velho ele talvez, e mais corpulento e alto, era bem mais alto que eu. Escrever esta história não é nada de que me orgulhe, eu estava na tropa, tinha boa preparação física, tinha chegado de Durban em férias, ele estava claramente a ofender a minha honra, de homem e de militar, tornara-se óbvio estar a pedi-las, e a luta inevitável, só um cobarde viraria costas. Embora também ele fosse militar, também ele soubesse tão bem quanto eu que devíamos evitar este tipo de confrontações, pois seriam as nossas armas a sair chamuscadas com este tipo de comportamento. Mais a mais as nossas especialidades no caso de sermos levados à barra da justiça só nos trariam agravantes. 

Bem mas voltando aos óculos, peguei-lhes nas hastes, rodei-os frente aos olhos de todos, por fim frente aos dele:

- Não são só bonitos, também são inquebráveis, reparem !

e mal acabara o reparem atirei com os óculos ao ar, bem alto, e eles lá foram subindo, rodopiando e subindo às cambalhotas, às voltas, o pessoal expectante, olhando-os, aguardando que a trajectória se invertesse , eles começassem a descer a descer até se estilhaçarem nas lajes de granito do passeio onde a maralha fizera roda.

Aproveitei esses segundos de expectativa e distração para lhe assentar um certeiro pontapé nos tomates e, ainda ele nem tivera tempo de se encolher enfiei-lhe dois ou três murros na cara, olhos e nariz, para o cegar e meter a sangrar abrindo-lhe uma torneira que o assustasse e desorientasse, a fim de o arrumar depressa e com pouco esforço. Tinha-o atirado ao chão com uma bateria de murros bem dados e melhor apontados e um simples pontapé, que porém me deixou a canela a doer como o caraças, tudo em menos de um minuto, sem estrilho, sem barulho e sem alarde.                                                                                                         
Depois baixei-me para o ajudar a levantar-se e foi aí que ele agiu, eu dera a luta por terminada e nisso fui parvo claro, a luta parara ? Já tocara o gongo ? Ou continuava ? Para ele continuava, eu dera-o por satisfeito com a pancada que levara e afinal não ficara, ele não ficara nada satisfeito, ficara envergonhado e agiu para tentar ganhar a luta e salvar a honra e, quando me baixei para o ajudar a levantar do chão agarrou-me pelas abas do blusão ergueu-se e deu-me uma tão inesperada quão valente cabeçada. Meteu-me os dentes para dentro. Rasgou a testa claro, verdade, sovei-o bem, levou-as, mas ele também me deu, nem nos podíamos ver quando brigámos, nem antes nem depois, como vos disse nem me lembro bem do motivo mas ele estava a pedi-las e não levei nada a mal, só fiquei sem dentes, nem os óculos se partiram, nada de que me orgulhe.

Naquelas alturas a gente age até sem pensar, não houve cobardia, ele levou e também quis dar, também deu, armámos uma cena à porta do Café Portugal, tudo cheio de gente, e ele tinha que salvar a honra porque a vergonha já ninguém lha tirava de cima. Meteu-me os dentes para dentro, salvou a honra, que caraças se não nos tivessem separado não sei como acabaria, ele também era rijo. Acabámos os dois metidos na mesma ambulância dos bombeiros que entretanto alguém chamara, ambos sabíamos, o melhor seria pirar dali, a bófia não demoraria a chegar, nenhum de nós tinha explicações a dar nem as quereria dar. Acabámos tendo que dá-las à má fila ao agente de serviço na urgência, mas dias mais tarde quando convocados a comparecer no posto já nenhum de nós estava em Évora, quer dizer eu estava mas alguém telefonou a dizer que voltara para a Africa do sul, ele era alfacinha e voltara a Lisboa, pelo menos assim me contaram posteriormente.

Foi a ele que surpreendido vi há dias estacionando nas cercanias do café que frequento, arrastando os pés, parecendo ter o dobro da minha idade, ambos nos olhámos e hesitámos, depois estendemos a mão um para o outro mas não chegámos a apertá-las, abraçámo-nos. Sempre era verdade, vive em lisboa, tem problemas renais e faz hemodiálise coitado, convidei-o, que não que não podia beber, ia ali à clinica dos bancários ter com um nefrologista de primeira para uma consulta, falámos um pouco, acompanhei-o, rimos com o acontecido há quase quarenta anos, que sim, mal saíra do hospital rumara a Lisboa para evitar chatices e dali para a Guiné, ele, eu ainda voltei para Durban durante dez meses, depois regressei definitivamente. 

          E os óculos Baião, não caíram no chão, alguém meteu o pé e os aparou, com a confusão nas urgências entregaram-mos a mim, fiz por eles, usei-os uma boa catrefa de anos até se partirem de velhos, obrigado, cá o amigo agradece.

Voltámos a rir-nos, abraçámo-nos de novo e despedimo-nos, mas trocámos contactos, não ficaremos outros trinta e muitos anos sem nos vermos.