- Mas a sua figura frágil de princesinha teria sido
boa publicidade pra ti amigo Alberto, “Irmão, ela não resolveu o teu problema mas
o mano Alberto resolve. Vem ter comigo quanto antes”. A gente tem que
puxar pelo cabeça ó Alberto.
Esta conversa teve lugar há poucos dias, talvez uns
dois meses, ele tomava a bica com o nosso amigo Lopes que por sua vez o levara
a ver a sua artística exposição fotográfica e eu, sentado e mordiscando à boca
cheia o meu suspiro topei-o pelo canto do olho, mas reconhecei-o logo.
Conhecera-o numa época em que pouco se pensava em
coxos, manetas, pernetas, manetas e noutros amputados e aleijados de variada
índole, tão poucos parecia haver. Alberto, encerrado num mal enjorcado cubículo
do hospital ia improvisando umas próteses com recurso a madeira, correias de
coro, rebites, ilhoses, pano felpudo, espuma densa, falando, acordando e
acertando pormenores com os médicos. Através de apreciações efectuadas a
olhómetro e experimentações, lá ia gizando milagres mercê de muitíssima
habilidade e ainda mais paciência e sensibilidade.
Eu viera de licença de férias, estaríamos aí por 76
e depois de uns bons dez minutos observando a arte, habilidade e imaginação com
que ele ia pondo coxos a andar e manetas capazes de fotografar, digo de ser
vistos e fotografados, luva disfarçando a prótese fixa, rígida, bonita mas não
tão prestável quão uma boa perna de pau ou um par de muletas em madeira
resistente mas leve. Tão absorto que às tantas larguei a minha sem sequer pensar;
- Ó amigo Alberto, em Angola é que você se iria
safar bem com este negócio amigo, há por lá coxos, pernetas, manetas e gente
sem fim para quem você seria Deus, para quem você seria um milagre.
Que não respondeu-me,
- Baião, chegaram-me os 24 meses que lá passei,
gosto disto, gosto de Évora, da pacatez alentejana, até deste nosso calor, tão
diferente daquele.
E deste modo ficámos conversados, não voltaríamos a
ver-nos até, salvo erro 82, data do meu regresso definitivo a estas planícies,
estava o amigo Alberto de malas aviadas e bilhete na mão, ia de abalada, a
evolução da técnica e o progresso do país tinham-lhe acabado com o improviso, a
imaginação, a habilidade e o emprego. Doravante próteses só biónicas ou
robóticas, assim o ditavam as regras da CEE, modernidade, recurso a técnicas e
materiais evoluídos, aparelhómetros e soluções com que ele nunca sonhara, a sua
arte ultrapassada, a habilidade desprezada, agora eram exigidas habilitações,
técnicas e conhecimentos que ele não dominava nem apresentava, não perdera o
emprego, o emprego, aquele emprego é que simplesmente se extinguira, agora mãos
robóticas seguravam ovos sem os partirem e pernas sintéticas dobravam o joelho
e davam a passada sem se lhes pedir, perna de pau agora, quero dizer então, só
um gelado que a Olá vendia, não sei se ainda vende.
Depois disto perdi-lhe o rasto por uma catrefa de
anos, para ser sincero esqueci-o completamente, o meu problema são pedras nos
rins, foram demasiados anos a beber água de charcos, riachos, ribeiros, rios,
lagoas e até de poças, pelo que nem o Alberto me poderia valer nem que se
prontificasse a fazer-me dois rins em marfim ou em pau-preto.
Não fora ele com a sua cara de pau encostado ao
balcão beberricando uma bica e jamais o teria lembrado ou reconhecido. Voltara,
o negócio correra-lhe bem mas a princesa rebentara com ele e, vendo a minha
cara de espanto,
Outro capitão pensei eu, recordando um oficial da
cavalaria do exército britânico James Hewitt* o militar que dera aulas de
equitação à princesa, querem ver que este Alberto também andou enrolado com a
princesa…
Coisa que ele, prontamente adivinhando os meus
pensamentos me esclareceu,
- Nada disso, ela não foi lá desminar coisa
nenhuma, foi incentivar e convidar a que outros desminassem… Levou com ela
agentes da poderosa indústria inglesa, farmacêutica, protésica, em especial a
de material ortótico, representantes da banca, uns promovendo os produtos, de
pacemakers nucleares a muletas de um alumínio brilhante que a pretalhada
adorou, outros abrindo linhas de crédito, oferecendo dinheiro para lhes
comprarem tudo o que vendem, achas que eu tinha hipóteses Baião ? Ainda falei com o gerente do Totta Aliança,
quem financiara o primeiro carro que tive e que me respondeu já estar reformado
e o banco ser agora do Santander e espanhol, o Banco do Alentejo foi-se, o
Banco Português do Atlântico foi-se, o de Fomento foi-se, o Totta Aliança foi-se, o Fonsecas &
Burnay, o Crédito Predial Português, o Pinto & Sotto Mayor, o Lisboa e Açores idem, isto está
tudo mudado e já nada é nosso amigo Baião, nem Angola é nossa nem Portugal é
nosso, olha, pretos nunca mais os quero ver na frente e brancos ainda menos.
Baião, como deves calcular voltei há pouco tempo mas
já deu para notar, isto por cá está bom é para quem não faça nada e é a isso
que me vou dedicar, vou auto reformar-me, já não tenho cabeça nem paciência
para estas merdas, nem p’ra estes merdas. Vou meter baixa, preencher uns
papéis, dizer que sou sírio, croata ou líbio, tunisino, libanês, tudo menos
português…