segunda-feira, 7 de junho de 2021

709 - UTOPIA MALSÃ, ROTINA, ROTINAS FATAIS



Repartimos entre nós as mais pequenas tarefas na vã tentativa de quebrar a monotonia, o agastamento e a saturação mútua que insidiosamente se instalara e recordámos novos ou velhos episódios que tenham tido para nós algum significado por mais pequenos que tenham sido. Foi quando lhe contei que tempos recuados ela se cruzara comigo e não me vira. Passara rápida, como sempre fora, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para si mesma, sem tempo para os outros... Não a teria visto não tivesse sido o brilho radiante dos seus olhos, grandes, pestanudos, belos.

 

Lembras-te ? A séculos de distância dificilmente te lembrarás tanto mais que nem me viste. Mas dos olhos, lembras-te, quando brincava com a beleza deles, a que eu meigamente chamava as minhas contas de vidro não lembras ? Se calhar mais ninguém alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade. Recordo-te indiferente quando chamada à baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo ainda, inocente mesmo.

  


 

A máquina de lavar interrompeu a centrifugação, mas não parou, ficou rodando devagar, silenciosamente. Enquanto eu divago ela prepara dois cafés na Delta Q, olho-a sem a ver mas o seu movimento hipnotiza-me e recomeço divagando. Queria beber com ela cada café da minha vida, e tantos dias p’ra viver ainda, tantos cafés, tanta felicidade, e também esta bica ficou fria, vai sendo costume já, estou habituado, é bom. Nunca olhara uma chávena como agora, ou a lembrara numa bica e agora… Nem esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por me ver, e a ver no fundo de cada taça de café.

  

Sítio lindo visto desta janela. Igualmente linda e aprazível o desaguar do rio neste mar-lago agora florido e tépido, lindo o seu sorriso, beijos e carícias. Desejos que eram meus, dela, então o corpo jovem de ninfa, o olor a lismos, os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos, e eu, vendo-me nas profundezas do lago onde me levara o céu com que nos cobria o seu universo, embevecido com tanta ternura, com os seios cheios, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga, passei a temer desde há séculos a morte e a velhice. Lendas dizem que a cada um desses pensamentos corresponderá um dia a menos, não aceitarei por nada deste mundo perder aquela que de entre tantas logrou encantar-me. Temo verdadeiramente pensar na morte, sobretudo agora que se está tornando banal e, a ser verdade que com cada pensamento que tiver será um dia a menos até morrer, estará sendo quebrada a magia milenar, não saber quando ela chega é uma dádiva dos céus, chegará por certo, contentemo-nos com isso e não pensemos mais na coisa.

  


 

Por nada deste mundo quero desiludir-me, eu que a todo o momento e por todos os motivos me esforço por me e te encantar, por isso tantas vezes me apanhas hesitante e sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de humor e orgulho, momentâneas mas consequentes, te vás, airosa, atirando a asa da mala sobre o caindo sobre os ombros, a mão afastando o cabelo da testa, dos olhos, tu lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheio a tudo, a mim, a ti, ao doloroso desfecho encenado, para meia hora depois estares telefonando;

  

- Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?

  

Eu aparentando uma calma que não tenho, eu numa atitude meiga, terna, paternal quase, perdoando. Perdoando-a mas na realidade com uma vontade vera de a esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos. Agora inverteram-se os termos, fechados em casa por um inverno infernal que sobretudo e devido à idade nos molesta tudo desejo ver pelas costas. A brusca partida dela quebrara o encanto, e quebrado este que restaria ? Fragmentos. Fragmentos de uma imagem que reconstruía pedaço a pedaço, pacientemente e agora via como reflexos dispersos dum espelho partido cuja soma jamais fará um todo. Afinal não mais que um conjunto de discrepâncias forjadas numa dicotomia unívoca, resultante de uma visão diacrónica artificialmente criada cujo entendimento demorei a traduzir por o amor me ter cegado durante décadas.

  


 

Físicos e químicos desvendaram os segredos do infinitamente pequeno e do desmesuradamente incomensurável. Métodos, processos, análises, deduções, induções, experimentações e o socorro de modernos scanners lograram ver o que era invisível aos seus olhos. Sou mais modesto, vejo o que me é dado ver, por vezes tarde e a más horas mas consigo ver. Outros processos me permitem contemplar o que aparentemente não será visível. Demoro é certo a perceber o que me é exposto, a juntar peça a peça os reflexos desse espelho quebrado. São jogo de imagens múltiplas num caleidoscópio, mas acabo conseguindo também eu e sem outro auxílio que a reflexão, ver o invisível.

 

 A personalidade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aqueles dois lagos onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar o jogo em que esses olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, indiferente a rua, reduzindo o meu mundo à contemplação deles, olhos, vogando no mar dos seus aveludados cabelos e eu marinheiro encantado pelo seu cântico. Mas não agora que por vezes me exaspera e a sua presença, me satura, tanto quanto a minha a aborrece.

 

 Há momentos de luz no meu cérebro e da luz o verbo que, alicerçado em pequenos mas reverberantes clarões, pormenores aparentemente insignificantes que me permitem todavia uma análise sincrónica das imagens reveladas por esses esparsos estilhaços dum espelho quebrado os quais, qual prisma poliédrico, em minha mente tomavam interrogativa forma, agora real, cerzida a partir dessas imagens dispersas e aleatoriamente captadas. Pudera eu então dizer que te vi, que te vi finalmente na tua verdade, na tua unicidade, na tua nudez e, lamento dizê-lo, não gostei do que me foi dado ver.

 


Tu aprimoraste-te, demoraste-te e esforçaste-te arranjando numa jarra os pés de flores que no campo arrebanháramos, fazias por te ocupares, meteste na jarra tiraste-as da jarra, meteste nela pedrinhas, tiraste pedrinhas e eu, que bebo bica atrás de bica e já nem perco tempo a desligar a maquineta da Delta Q, observo-te no teu rame-rame gastador de tempo porque enquanto te ocupas não pensas e o pior é pensar, dizia um poeta qualquer do qual não sou capaz de me lembrar agora.

 

 Tanto esforço despendido compondo um jogo floral evita que nos confrontemos devido a qualquer coisa banal, o tempo e as rotinas põem-nos à prova, confrontam-nos ao instilarem-se no ambiente fechado da casa, agora uma prisão onde vivemos encalhando um no outro, ainda que o espaço seja largo o bastante para durante tanto tempo nunca dele termos reclamado.

  


Esse arranjo de estevas, dessas lindas flores campestres que o tempo cedo se encarregou de mostrar já não viçoso, veio demonstrar que também elas não toleram o passar do tempo por mais fofinho que seja, haverá portanto mais coisas para além do bem-estar o qual, se imposto torna-se insuportável e quer nós quer flores e floristas já não parecemos tão belos, ou tão belas como à primeira vista.

 

Uma observação cuidada e concluiremos que metidos debaixo deste imponderável com que o tempo nos cobre parecemos outros, tornamo-nos outros, somos outros, e a dimensão e visão ou descoberta pelo outro das nossas mais recônditas peculiaridades desarma-nos, rebaixa-nos aos nossos próprios olhares e torna visível a mancha ou uma qualquer nódoa que ao longe mais parecesse um ornato, um ornato ou um sinal que idolatrássemos. Razão tem o povo com a história do sinalzinho que com o tempo virou horrível verruga, é o tempo que nos e se altera, acelerando contra a nossa vontade, fazendo- me recordar Einstein e a sua Teoria da Relatividade Geral em que tudo é, ou se torna relativo, circunstancial.

 

E neste cenário confinado ao Outeiro, ao Telheiro, a Monsaraz, ao grande lago e ao Monte da Pêga levamos já quarenta e nove anos, quarenta e nove anos em que brincámos, rimos, amámos, embirrámos e chorámos até ao insuportável, digo no fio do insuportável, no fio da navalha. E enquanto eu medito ela pavoneia-se num trejeito consciente e irritantemente pujante de mulher feita, no auge da maturidade e beleza e, diria eu, de uma perfeição e paciência sem iguais que simultaneamente adoro e detesto, num conflito interior a que me mostro incapaz de dar solução.

  

Eu, homem feito e de maturidade assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provoca, e ela isso mesmo, o imprevisto, toda ela mau grado tanta perfeição e beleza, inconstante, um pocinho de inconsequência e ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro. Contendo-me. 


Ainda recordo o flash radiante dos seus olhos sempre que eu, hesitante, me demoro na busca da resposta mais aconselhada ao momento, todavia confesso nem todos os momentos serão de confronto ou atrapalhação, tanto que, embora não sendo vulgar o plasma vagamente ligado para que o quarto não fique demasiado escuro, de vez em quando é para isso mesmo que serve, para manter uma meia-luz coada iluminando-nos enquanto na AR, um reportagem antiga mostra homens engravatados sucedendo-se discursando entre jarras e jarrões pejados de cravos vermelhos. Festejava-se Abril.

 

 O clube dos ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda hoje me atrapalho com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não me tremem, e neste momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete, louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e odoríferas névoas exaladas daquela pele e olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos une e nos irmana na fruição desses contudo não tão raros momentos partilhados, fruídos, gozados.

 

 E por falar em Abril lembrei a data de 25 e essa noite em que, contra meu hábito, mal dormira. Noite em que pesadelos e sombras pressagiaram então o que eu não entendi nem nos dias, nem nas semanas, meses ou anos seguintes. Porém recordo ter acordado muito cedo nesse dia fantástico, não tanto devido às insónias sonhadas mas antes devido ao alarde que desde madrugada se fizera sentir na quintarola que o meu pai trazia primorosamente tratada. Como por artes mágicas tudo naquela manhã se conjugara para que jamais a esquecesse, se bem que nessa minha modesta idade não me tivesse sido permitido entender os prodígios a que assistira e impossíveis de, em minha mente, terem sido de imediato transformados em augúrios felizes de dias vindouros. Nessa manhã de sol a quinta parecera ter ficado entregue à bicharada e eu, sozinho, reinando ignorado no meio dela.

 

Galos haviam abandonado o galinheiro escavando com unhas poderosas os locais mais inconcebíveis da quinta, modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de diversas espécies, onde o sol avivara a clorofila e onde rebentos de variadíssimas flores matizavam de cores diversas o espaço a perder de vista. Poedeiras pedreses viraram sobranceiras as costas ao cativeiro e depuseram os ovos nos lugares mais díspares que vez alguma tinham pisado, mostrando-se arrogantes, tomando então soberbas poses que a vida inteira lhes tinham sido interditas.

 


 Que me lembre nesse dia nem caseiro nem quaisquer outros dos trabalhadores da quinta apareceram e, aflitas, as vacas mugiam impacientes, amojos cheios que nem balões de festa majestosa, sem viv'alma que lhes acudisse. Cães corriam ladrando de lado para lado enlouquecidos pela festa e seria absurdo não entender os seus latidos como advertência e agoiro de milagres futuros que teriam, certamente eles e eu a felicidade de vivermos, mas que não tivemos a sorte de ver cumpridos.

 

 Tal foi a minha alegria e a de todos quantos na quinta nesse dia nela não estavam que nem dei pelo sol ter transposto o zénite e, absorto, aguardando, tendo visto passar filas e filas de gentes entusiasmadas, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem que hoje entendo como traídas no tempo, pois esse dia apenas me assustou e mostrou eventos cujo significado só entendi muitos e muitos anos mais tarde.

 

Então, como hoje, todos falaram, como hoje falam de novo, num tempo em vão, no tempo perdido, numa utopia malsã. Todos falavam mas ninguém ouvia, tal como hoje não ouvem. Cresci portanto no meio de gentes meio surdas que prolongaram no tempo, embalando-me e iludindo-me, histórias de felicidade inventada, prometida e futura, que ainda hoje estou à espera de ver e viver e, desse dia mágico, ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo militante que, uma vida inteira vivida, finalmente lograram acomodar no sótão das ilusões em que guardei os pesadelos premonitórios, os sonhos prodigiosos e todas as recordações deslumbrantes dos indecifráveis presságios que nesse dia vivi.


Desses tempos, intocáveis, puros, impecáveis, resto eu e ela, restamos nós e este amor sem fim que durante décadas nos embalou, nos cegou, nos ludibriou não nos deixando ver o lamaçal em que a quinta e o país todo se transformaram. Mau grado isso sabemos ambos o que é o amor e a felicidade, vivemo-los enquanto à nossa volta tudo se afundava…..