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quinta-feira, 19 de abril de 2018

498 - VENTURA, DESVENTURA E MARRETADA...

Vista da Praça de Sertório, assinalando à direita com um circulo o lugar do antigo stand Victor Ribeiro e à esquerda uma seta apontando o antigo stand de Raúl Cruz Ldª - Citroen Évora
  
Eu ficara de me encontrar com o Victor Ribeiro no stand dele ali à Travessa de Sertório, onde a dita se prepara para desaguar na Rua Nova, por volta das dezanove horas. Ia ser pai, esperava um catraio ou uma catraia e estava interessadíssimo numa nova e barata autocaravana, retoma que ele recebera como compensação de um devedor relapso.

Estaríamos em 76 ou ainda em 75, demasiado longe para me lembrar com maior certeza, portanto para além da hora e do facto do dia começar a escurecer, no que a Cronos respeita é tudo que se me oferece dizer. Quanto ao resto não havia meio de nos entendermos, pelo que fomos deslizando para o carro dele com a mesma mansidão com que aproximando-se, a noite caía de mansinho.

Dentro do carro continuámos a discussão até o lembrar de me levar a casa, pois se estava fazendo tarde para o jantar e esperavam por mim.

- Calma amigo Baião, não podemos abalar agora ou levantamos a lebre, quero dizer os pardais.

- Que pardais ? Respondi eu simultaneamente confuso e curioso.

- Ali, veja bem ali, sumidos na reentrância das portas do Raúl Cruz, tope a cena com atenção que isto da liberdade e da tesão andam de mãos dadas como na revolução.  
 Trabalho do artista eborense Nuno Rolo

O saudoso Victor Ribeiro, cu velho, que teria uns cinquenta anos na altura, ou mais, era um reaccionário declarada e desassombradamente inimigo do PREC, pelo que enquanto não divisei o que se passava a coberto das portas do stand da Citroen, na nossa frente e a uns cinquenta metros ou nem tanto, não descansei. Évora sempre foi uma cidade cheia de encantos e recantos. Foquei a atenção no assunto mas não prendi como devia a surpresa, tendo-se esta soltado como se soltam os cães numa corrida às lebres, o que me impediu de segurar um

- Foda-se amigo Victor aqueles três estão mesmo destrambelhados, não há democracia que os segure, larguei eu rindo.

Entre os esconsos da entrada consentida pelo nicho do portão/montra daquele stand fechado, acoitavam-se afobadas três figuras cujo comportamento intempestivo mais fazia lembrar uma cadela no cio assediada por dois mastins espumando da boca. Era fácil notar ser a coisa consentida, mais desejada até que propriamente consentida, ou somente ou simplesmente consentida. A pressa era muita e apenas quando o Ventura, mais baixo, e o João Marrão, mais alto, a ladearam como uma escolta um à direita outro à esquerda dela o ramalhete se compôs e o trio acalmou, se é que podemos recorrer a tal expressão. 
Trabalho do artista eborense José da Fonseca
Pelo menos ativeram-se às posições referidas tendo colocado ponto final à dança macabra em volta do totem, sim ela parecia um totem, alta, bem esculpida, e verdade seja dita ávida da adoração deles pelo que após os ter onde os queria, sorrindo e beijando à esquerda e à direita, o 25 de Abril nem dois anos teria, abrindo os braços como uma santa, introduziu as mãos no cós de cada um deles disposta a abrir quantas garrafas de champanhe pudesse.

Surpreendidos nós dois, o Victor Ribeiro e eu, mantivemo-nos quietinhos e caladinhos curiosos de observar até onde chegaria a festa ou quando jorraria o champanhe já que, do modo desajeitado mas empenhado como ela agitava a garrafas seria mais que certo dum modo inesperado e explosivo vir a saltar- lhes a rolha. Concedo não ser fácil agarrar uma garrafa pelo gargalo e agitá-la quanto mais duas, uma em cada mão, as calças atrapalhando os movimentos, a descoordenação direita esquerda travando a perfeição que só a sincronia permitiria, factores aos quais o contorcionismo dos corpos, a falta de visão por mor dos olhos fechados, e o estremecimento derivado da entrega e do abandono ao clímax em nada contribuiriam para a compostura mínima que só ela lograva manter, qual matriarca metendo na ordem os meninos, mimando e beijando ora um ora outro enquanto com o cotovelo os pressionava contra o vidro da montra mantendo-os tão sossegados quão possível naquelas circunstâncias e o suficiente e necessário ao mister, ela também imbuída do mesmo entusiasmo sensual, lúbrico, jovem e desenfreado que ali os levara. 
 Foto da mui premiada eborense Helena Margarida de Sousa
Talvez pressentindo nas mãos a pressão acumulando-se, talvez aliviando os dedos sobre as rolhas, talvez desesperada e surpreendida por tanta agitação não ter ainda feito saltar as tampas às garrafas, essa alegria festiva foi contudo finalmente celebrada, sendo fácil vê-la estampada nas suas carinhas risonhas, no alívio experimentado e nas suas caras reflectido, idem na paragem cansada das mãos agora mergulhando de modo concupiscente no champanhe derramado molhando as calças de ambos até aos joelhos, ela sorrindo piamente, reclinando ternamente a cabeça ora à esquerda ora à direita, colhendo e alimentando a satisfação dos dois, ambos endoidados e cerrando os dentes p’lo desejo dela quando, sem qualquer aviso as luzes do stand se acenderam automática e repentinamente, apanhando de surpresa e banhando os três com a mesma luz que os assusta e denuncia, que os iluminou como terá acontecido com Nossa Senhora e os três pastorinhos mas que ao invés de os unir em solene devoção os espanta cada um para seu lado, amedrontados e envergonhados decerto pela falta de fé pois era outra a fé que os movia, essa outra fé que move montanhas, que não atrofia antes incita e empurra a mole humana.

Rimo-nos e finalmente partimos, é evidente ter chegado atrasado para o jantar, peixe no forno se a curiosidade vos tortura, e já agora para que não sofreis mais adianto não ter fechado o negócio da autocaravana, comprei dois ou três anos depois uma caravana ao amigo Branquinho director do IEFP. 
 Trabalho do artista eborense João Concha
O desorganizado João Marrão deambulou mais uns anos por aqui, sempre ébrio, até ter morrido coitado, imagino o alívio que terá sido para a viúva, o bem-aventurado Ventura, bom rapaz, sempre o foi, vejo-o de vez em quando, assentou, casou, adora cães e é sempre bem-vindo à minha beira. Com ela, a nossa senhora da Praça de Sertório, de seu nome Imaculada da Consolação, cruzei-me quatro ou cinco vezes nos últimos quarenta anos, sempre me pareceu uma linda e digna senhora, umas vezes com os meninos pela mão, outras dando solenemente o braço ao marido que sempre reputei de bom rapaz se é que ainda me posso considerar também um bom rapaz, ilustre funcionário da administração local e sempre de ar feliz, ela aparentando igualmente o mesmo ar feliz do marido, segura de si, pessoa de bom senso, mulher sossegada, equilibrada.

Um casal feliz, e até são do meu partido. 

Vista da Travessa de Sertório, assinalando à direita com  uma seta o lugar do antigo stand Victor Ribeiro.
NOTA: Sendo esta história mais uma das poucas mas verídicas lembranças que aqui exponho para a posteridade, aceitarão óbviamente a omissão dos apelidos dos três reais personagens.