Vista da Praça de Sertório, assinalando à direita com um circulo o lugar do antigo stand Victor Ribeiro e à esquerda uma seta apontando o antigo stand de Raúl Cruz Ldª - Citroen Évora |
Eu ficara de me encontrar com o
Victor Ribeiro no stand dele ali à Travessa de Sertório, onde a dita se prepara
para desaguar na Rua Nova, por volta das dezanove horas. Ia ser pai, esperava um catraio ou
uma catraia e estava interessadíssimo numa nova e barata autocaravana, retoma que ele
recebera como compensação de um devedor relapso.
Estaríamos em 76 ou ainda em 75,
demasiado longe para me lembrar com maior certeza, portanto para além da hora e
do facto do dia começar a escurecer, no que a Cronos respeita é tudo que
se me oferece dizer. Quanto ao resto não havia meio de nos entendermos, pelo que
fomos deslizando para o carro dele com a mesma mansidão com que aproximando-se, a noite caía de mansinho.
Dentro do carro continuámos a
discussão até o lembrar de me levar a casa, pois se estava fazendo tarde para o
jantar e esperavam por mim.
- Calma amigo Baião, não podemos
abalar agora ou levantamos a lebre, quero dizer os pardais.
- Que pardais ? Respondi eu
simultaneamente confuso e curioso.
- Ali, veja bem ali, sumidos na
reentrância das portas do Raúl Cruz, tope a cena com atenção que isto da
liberdade e da tesão andam de mãos dadas como na revolução.
O saudoso Victor Ribeiro, cu velho, que teria uns
cinquenta anos na altura, ou mais, era um reaccionário declarada e desassombradamente inimigo do PREC, pelo que enquanto não divisei o que se passava a coberto das
portas do stand da Citroen, na nossa frente e a uns cinquenta metros ou nem tanto, não descansei.
Évora sempre foi uma cidade cheia de encantos e recantos. Foquei a atenção no
assunto mas não prendi como devia a surpresa, tendo-se esta soltado como se
soltam os cães numa corrida às lebres, o que me impediu de segurar um
- Foda-se amigo Victor aqueles três
estão mesmo destrambelhados, não há democracia que os segure, larguei eu rindo.
Entre os esconsos da entrada
consentida pelo nicho do portão/montra daquele stand fechado, acoitavam-se
afobadas três figuras cujo comportamento intempestivo mais fazia lembrar uma
cadela no cio assediada por dois mastins espumando da boca. Era fácil notar ser
a coisa consentida, mais desejada até que propriamente consentida, ou somente
ou simplesmente consentida. A pressa era muita e apenas quando o Ventura, mais
baixo, e o João Marrão, mais alto, a ladearam como uma escolta um à direita
outro à esquerda dela o ramalhete se compôs e o trio acalmou, se é que podemos
recorrer a tal expressão.
Pelo menos ativeram-se às posições
referidas tendo colocado ponto final à dança macabra em volta do totem, sim ela
parecia um totem, alta, bem esculpida, e verdade seja dita ávida da adoração
deles pelo que após os ter onde os queria, sorrindo e beijando à esquerda e à
direita, o 25 de Abril nem dois anos teria, abrindo os braços como uma santa,
introduziu as mãos no cós de cada um deles disposta a abrir quantas garrafas de
champanhe pudesse.
Surpreendidos nós dois, o Victor
Ribeiro e eu, mantivemo-nos quietinhos e caladinhos curiosos de observar até
onde chegaria a festa ou quando jorraria o champanhe já que, do modo
desajeitado mas empenhado como ela agitava a garrafas seria mais que certo dum
modo inesperado e explosivo vir a saltar- lhes a rolha. Concedo não ser fácil
agarrar uma garrafa pelo gargalo e agitá-la quanto mais duas, uma em cada mão,
as calças atrapalhando os movimentos, a descoordenação direita esquerda
travando a perfeição que só a sincronia permitiria, factores aos quais o
contorcionismo dos corpos, a falta de visão por mor dos olhos fechados, e o estremecimento derivado da
entrega e do abandono ao clímax em nada contribuiriam para a compostura mínima
que só ela lograva manter, qual matriarca metendo na ordem os meninos, mimando
e beijando ora um ora outro enquanto com o cotovelo os pressionava contra o
vidro da montra mantendo-os tão sossegados quão possível naquelas
circunstâncias e o suficiente e necessário ao mister, ela também imbuída do
mesmo entusiasmo sensual, lúbrico, jovem e desenfreado que ali os levara.
Foto da mui premiada eborense Helena Margarida de Sousa |
Talvez pressentindo nas mãos a pressão acumulando-se, talvez aliviando os dedos
sobre as rolhas, talvez desesperada e surpreendida por tanta agitação não ter ainda
feito saltar as tampas às garrafas, essa alegria festiva foi contudo finalmente celebrada, sendo fácil vê-la estampada nas suas carinhas risonhas, no alívio
experimentado e nas suas caras reflectido, idem na paragem cansada das mãos agora
mergulhando de modo concupiscente no champanhe derramado molhando as calças de
ambos até aos joelhos, ela sorrindo piamente, reclinando ternamente a cabeça
ora à esquerda ora à direita, colhendo e alimentando a satisfação dos dois,
ambos endoidados e cerrando os dentes p’lo desejo dela quando, sem qualquer
aviso as luzes do stand se acenderam automática e repentinamente, apanhando de surpresa e
banhando os três com a mesma luz que os assusta e denuncia, que os iluminou como
terá acontecido com Nossa Senhora e os três pastorinhos mas que ao invés de os
unir em solene devoção os espanta cada um para seu lado, amedrontados e
envergonhados decerto pela falta de fé pois era outra a fé que os movia, essa
outra fé que move montanhas, que não atrofia antes incita e empurra a mole humana.
Rimo-nos e finalmente partimos, é
evidente ter chegado atrasado para o jantar, peixe no forno se a curiosidade
vos tortura, e já agora para que não sofreis mais adianto não ter fechado o
negócio da autocaravana, comprei dois ou três anos depois uma caravana ao amigo
Branquinho director do IEFP.
O desorganizado João Marrão deambulou
mais uns anos por aqui, sempre ébrio, até ter morrido coitado, imagino o alívio
que terá sido para a viúva, o bem-aventurado Ventura, bom rapaz, sempre o foi,
vejo-o de vez em quando, assentou, casou, adora cães e é sempre bem-vindo à
minha beira. Com ela, a nossa senhora da
Praça de Sertório, de seu nome Imaculada da Consolação, cruzei-me quatro ou cinco
vezes nos últimos quarenta anos, sempre me pareceu uma linda e digna senhora,
umas vezes com os meninos pela mão, outras dando solenemente o braço ao marido que sempre reputei de bom rapaz se é que ainda me posso considerar também um
bom rapaz, ilustre funcionário da administração local e sempre de ar feliz, ela
aparentando igualmente o mesmo ar feliz do marido, segura de si,
pessoa de bom senso, mulher sossegada, equilibrada.
Um casal feliz, e até são do meu
partido.
Vista da Travessa de Sertório, assinalando à direita com uma seta o lugar do antigo stand Victor Ribeiro. |