Escassos
meses após a eclosão do 25 de Abril tinha já fortemente inoculado, como devem
calcular, o vírus da liberdade que a todos (?) contagiou, e mesmo que assim não
tivesse sido decerto não teria resistido muito mais tempo ao contágio.
O golpe das
Caldas, poucos dias antes, dera-me para bons presságios, o livro “Portugal e o
Futuro”, do general Spínola, ainda que lido à pressa, só confirmara as minhas
impressões e agoiros, as conversas de sindicato, a tertúlia da época apesar da
situação condicionada em que se vivia, tinham feito germinar em mim alguma
sensibilidade política, e as leituras do Jornal do Comércio e do Jornal do
Funchal, menos corroídos pelo lápis da censura, permitiam-me elaborar sobre a
situação que se vivia um mosaico mais próximo da realidade. Como muitos
jovens de então habituara-me a ler nas entrelinhas dos jornais, lia muito, nada
escapava, revistas e livros permitidos, pois os proibidos, esses, eram
ávidamente procurados, trocados, emprestados, lidos, digeridos, comentados e
secretamente publicitados.
Melhor teriam
feito Salazar e Caetano se tivessem pura e simplesmente esquecido o “índex”, a
proibição de determinados autores e obras só as tornava mais apetecidas,
veja-se o contraste com os dias e em especial com os jovens de hoje, que com
toda a liberdade disponível, a que poderão somar todo o tempo do mundo, pura e
simplesmente não pegam em leitura nenhuma, de modo que não obstante as
condições de liberdade de que desfrutam, são no aspecto político, de longe
muito mais ignorantes que os da minha geração. (As estatísticas o confirmam, eu
somente me limito a lembra-lo).
Apesar da
minha oposição à guerra colonial que se travava nas três frentes de África, que
poderia, a exemplo de muitos amigos meus, ter-me tornado parte da comunidade
portuguesa em França, ou na Holanda, eram os “Fuzileiros” a força que
consciente ou inconscientemente alimentava os meus sonhos de jovem, daí que com
expressa autorização paterna tivesse ingressado na Marinha, onde assentei como
voluntário mal tinha acabado de fazer os meus dezoito anos.
Marinha
significava Lisboa, aventura, viagens, mundo, e por aqueles dias a capital era
um verdadeiro caldeirão borbulhante, um autêntico vulcão de movimentações
políticas, pelo que os meses que se seguiram ao 25 de Abril foram de intensa
actividade, manifestações, comícios, golpes e contra golpes, tendo eu passado por tudo isto enquanto militar, e participado mesmo em algumas acções como o 28 de Setembro, o 11 de Março, e
por centenas de " manif’s " a que perdi o conto, dezenas de reuniões
de soldados e marinheiros, e digerido em passo de corrida toda a cartilha da
esquerda à extrema-esquerda.
Uma vez
consegui mesmo mobilizar quatro ou cinco autocarros pejados de fuzileiros, que
se deslocaram a Évora, para apoiar não sei que manifestação de operários e
camponeses alentejanos, certamente vez única em que a esta cidade foram dados a
ver de uma vez só tantos “filhos da escola”, ou da “Briosa”. Diga-se em
abono da verdade que no café Arcada não coubemos todos à uma, pelo que tivemos
que aguardar vez, em fila, como já era hábito fazermos nos refeitórios das
unidades e das bases de onde viéramos. Nunca tantas gaivotas tinham sido vistas
em terra, ainda por cima tão longe do mar.
A injustiça
para com o Chile e Salvador Allende estava viva no espírito de todos, pelo que
havia que evitar em Portugal, idênticas manobras, o que significava que ao
menor alarme aí estavam os soldados e marinheiros, filhos do povo, disponíveis,
armados e gritando; “a reacção não passará”, “soldados unidos vencerão”, “o povo
unido jamais será vencido”, e tantas outras palavras de ordem que fizeram
escola e ficarão para sempre gravadas na memória de tantos de nós.
Nem sei como
tantas dessas manifestações e tantos dos controlos de pessoas e viaturas não
redundaram em mais mortes, foi puro milagre, já que o mínimo incidente era
suficiente para gritar; reaccionário ! E atirar a matar, pois as armas, essas,
na época andavam quase sempre connosco, à bandoleira. Mas o 25 de
Novembro só o entendi passadas mais de duas décadas, o que não obstou que
tivesse nesse dia, generosamente, disponibilizado a minha pessoa, e a minha
vida, para lutar pela revolução que nos tragava.
Eu, e tantos
outros como eu, creio sinceramente não termos percebido na altura qual o lado
correcto a defender. Confiava-se nas chefias, pronto, chefias essas que
manobravam nos bastidores os cordelinhos da política, que a dominavam,
ocupavam, que ditavam o percurso do poder, sempre ou mais que nunca ondulando
como as bandeirinhas, que mudavam com a mesma facilidade com que o vento muda
de sentido, e que dispunham de nós, a seu bel-prazer, quais peões num tabuleiro
de xadrez. Só mais tarde
percebi o verdadeiro significado da expressão “carne para canhão”, e muito mais
tarde ainda entendi porque não recrutam homens já feitos e maduros, antes
jovens, tão generosos quão ignorantes da verdadeira razão por que procurarão a
honra, serão patriotas ou darão as próprias vidas por causas quantas vezes a
léguas dos seus princípios.
Pelo que,
animado de tão justos propósitos, eu e mais cerca de cem camaradas de armas
oriundos de diversos aquartelamentos e companhias, passámos o dia fatal na
“Casa do Marinheiro”, ali para a Rua do Arsenal, armados até aos dentes, tudo
acompanhando pela rádio e Tv, e pelas comunicações vindas do nosso comando,
nervosos, fumantes, expectantes, na perspectiva de entrarmos em acção, em
combate, e só noite dentro, por ordens sensatas do comandante e Almirante Rosa
Coutinho, mais conhecido por “Almirante Vermelho”, desmobilizámos e regressámos
aos quartéis.
Pergunto-me
muitas vezes a mim mesmo que teria sido de mim e dos meus companheiros, se a
sensatez desse Almirante não tivesse prevalecido ? Há mesmo quem afirme ter
sido medo do confronto, já que na realidade era o poder que estava em causa, o
governo da nação, a viragem de rumo, a continuidade ou a morte da revolução e o
encarreirar nos trilhos da democracia.
Quantos de
nós teríamos tombado ? Quantos camaradas
teriam morrido ?
Porquê ? Que democracia interrogo-me agora.
Por que causa
ignorada ?
Sim, porque
no reboliço dessa época, saber se a nossa causa era a justa, era tão fácil como
hoje desvendar a chave do totoloto, estava-se com um lado ou com outro, como
calhava estar-se no passeio esquerdo ou direito de uma qualquer rua.
Por sorte ou
por mero acaso uns venceram, mas, tendo vivido a febre por dentro, ainda hoje
acredito que só por casualidade tal aconteceu, só por isso.
Ou por
medo...