Olhei
com atenção aquele quadro famoso “O Grito” pois tinha motivos para tal, estourara-me
nos ouvidos, e agora impressionava-me a vista, que grande artista, um
expressionista a impressionar-me, quem diria. Cores chocantes, um cenário
apocalíptico, uma ponte entre margens que suponho afastarem-se e não
juntarem-se, não se fundirem, ele ou ela de mãos na cabeça horrorizado (a) com
o que viu, a boca num esgar, será medo, será repulsa ? Não, não me parece, atendendo
à espuma dos dias antes a vejo como uma boquinha de broche, como a boca
daquelas bonecas de plástico ou de borracha, de insuflar, para deleite de quem
não se importa com as margens nem com o apocalipse ou o horror, apenas consigo
mesmo e que a boneca não grite porque um grito na ocasião, qualquer grito,
seria comprometedor, condenaria à exclusão, ali no segredo do quarto gritos só
ele;
oooooooooooooooooooooohhhhhhhhhhhhhhh
! ! !
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhh
! ! !
e toca a dobrá-la com cuidado
para se não romper, e a guardá-la na caixa, debaixo da cama ou no roupeiro,
p’ra não se ver, não envergonhar, não comprometer. O grito, a boca, o esgar, o
chupar, o meter, o aliviar, o limpar e guardar até uma próxima ocasião, e nada
de atrasos que tem aulas às nove e a gaiatagem não se ensaia nada para se meter
a fugir mal se ouve o toque de feriado.
Crianças,
gaiatos e gaiatas, Lolitas, boquitas, gritinhos, quantos deles enveredarão por
belas artes ? Ou pelo cinema, p’la literatura, pelo teatro, pela pornografia ? Vá lá
saber-se, dependerá de tantos factores, tantas variáveis, internas, externas,
endógenas, exógenas, fulcrais ou insuficientes, dependerá da fortuna (ou não)
dos pais de cada um, da religião e da moral, é isso, da moralidade, sobretudo
da moralidade, o bibelot dos nossos dias, elástica e ecléctica como a pintam os
políticos, falo da ética, a ética não passa duma prédica, não passa disso
mesmo, e ninguém grita.
Já não se ouvem gritos como antigamente, agora distribuem-se pelas escolas e alarvemente, do básico ao secundário, gratuitamente, camisinhas de vénus. É foder a rego cheio garotada, quem é que, no seu perfeito juizo, se vai lembrar de belas artes, ou ao menos de gritar, quanto mais de pintar…
Já não se ouvem gritos como antigamente, agora distribuem-se pelas escolas e alarvemente, do básico ao secundário, gratuitamente, camisinhas de vénus. É foder a rego cheio garotada, quem é que, no seu perfeito juizo, se vai lembrar de belas artes, ou ao menos de gritar, quanto mais de pintar…
Isto
é liberdade a mais, é libertinagem, é castrar as crianças, capar-lhes a beleza
da descoberta, da imaginação, da criatividade, é uma moral de aberração com o
aval do ministério da educação. E quando as Lolitas começarem a aparecer
prenhas nas escolas ? Expulsá-las-ão ? A sina está traçada, lavar escadas,
pedir sopa nos quartéis ou recolher a um dos muitos bordéis clandestinos ou
legais que há por essa Europa fora e gritar, quero dizer chupar, e gramar,
aguentar, crer, acreditar, ter fé e rezar.
-
Berto, quando vieres para dentro traz dois raminhos de hortelã se faz favor
amor, tens os olhos vermelhos, lacrimosos, alergia ?
Os
bastardos ? Ponham de novo a Roda dos Expostos ou dos Enjeitados a funcionar,
em asilos e conventos, restaurem a tradição, fazei workshops, convénios,
conferências e outros eventos, candidatem a tradição a Património Imaterial da
Humanidade junto da ONU, com o Guterres não deve ser difícil, só não sei se
imaterial se material, com tanto testemunho, tanta prova… Verdade que a
tradição já nem é o que era, nem a tradição nem a erudição, não nos serviram
para nada elites e vanguardas, o charco alarga-se e já nos dá a água p’las
canelas, daqui a pouco pelos joelhos, beijando os calções, e quando chegar …
chegou onde sabemos, então o grito, raios, coriscos e trovões !
-
Não, não é alergia nenhuma querida, antes fosse.
Não
é o degelo que nos ameaça, é o desnatar, o desnatar de um certo orgulho e
preconceito que se vai perdendo, vogando ao Deus dará num juízo de valor sem
qualquer fundamento, é nisso que nos estamos a tornar, num inautêntico
tormento.
-
Então foi da gritaria querido, ouviste há pouco o grito ?
Mas
o grito ouvido, este, tremi quando o ouvi, era aterrador, durou apenas umas
décimas de segundo mas deu para notar quanta angústia encerrava, o sangue
gelou-se-me nas veias e pousei o regador tentando descortinar por sobre a sebe
de piricanta de onde soara aquele grito de desespero que tudo gelara pois no
bairro nada se mexia. Recolhi a casa, era sol-posto, arrefecera, chutei as
luvas da monda e as ferramentas de jardineiro para onde ninguém as pisasse e
porventura se aleijasse e fui direito à salinha onde tenho por mero acaso uma
pequena reprodução do “Grito” de Munch, talvez 20X12, uma pequena pagela de
altíssima qualidade, oferta, há uns anos atrás, duma parelha de
Testemunhas de Jeová a quem eu não abrira a porta. Cortara-lhes a fé pela raiz
e à pagela o palavreado da base, uma tira para aí com um dedo de largura sem
pés nem cabeça, depois mandara amoldurá-la, à pagela claro.
-
Não amor, não foi do grito, foi da poesia …
Pela
primeira vez na vida olhei tentando ver para além dele, do grito, tentando
alcançar a razão pela qual uma pintura expressionista, talvez a mais valiosa do
mundo, tanto nos impressiona, agora que também eu me arrepiara com o grito lancinante
que acabara de ouvir e tentei perceber esse grito que me estourara aos ouvidos.
Pousei o regador, abandonei os lírios e as tão mimadas Dálias, Coroas Imperiais
e Gladíolos à sua sorte e meti-me a ajuizar onde estariam agora os vasos da
salsa, do poejo e da hortelã. As mulheres gerem-nos em parceria, e mudam-nos de
sítio constantemente, ou acompanhando a sombra ou fugindo da geada, só me
apetece gritar-lhes.