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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

386 - O GRITO ...............................................................


Olhei com atenção aquele quadro famoso “O Grito” pois tinha motivos para tal, estourara-me nos ouvidos, e agora impressionava-me a vista, que grande artista, um expressionista a impressionar-me, quem diria. Cores chocantes, um cenário apocalíptico, uma ponte entre margens que suponho afastarem-se e não juntarem-se, não se fundirem, ele ou ela de mãos na cabeça horrorizado (a) com o que viu, a boca num esgar, será medo, será repulsa ? Não, não me parece, atendendo à espuma dos dias antes a vejo como uma boquinha de broche, como a boca daquelas bonecas de plástico ou de borracha, de insuflar, para deleite de quem não se importa com as margens nem com o apocalipse ou o horror, apenas consigo mesmo e que a boneca não grite porque um grito na ocasião, qualquer grito, seria comprometedor, condenaria à exclusão, ali no segredo do quarto gritos só ele;

oooooooooooooooooooooohhhhhhhhhhhhhhh ! ! !

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhh ! ! !

e toca a dobrá-la com cuidado para se não romper, e a guardá-la na caixa, debaixo da cama ou no roupeiro, p’ra não se ver, não envergonhar, não comprometer. O grito, a boca, o esgar, o chupar, o meter, o aliviar, o limpar e guardar até uma próxima ocasião, e nada de atrasos que tem aulas às nove e a gaiatagem não se ensaia nada para se meter a fugir mal se ouve o toque de feriado.

Crianças, gaiatos e gaiatas, Lolitas, boquitas, gritinhos, quantos deles enveredarão por belas artes ? Ou pelo cinema, p’la literatura, pelo teatro, pela pornografia ? Vá lá saber-se, dependerá de tantos factores, tantas variáveis, internas, externas, endógenas, exógenas, fulcrais ou insuficientes, dependerá da fortuna (ou não) dos pais de cada um, da religião e da moral, é isso, da moralidade, sobretudo da moralidade, o bibelot dos nossos dias, elástica e ecléctica como a pintam os políticos, falo da ética, a ética não passa duma prédica, não passa disso mesmo, e ninguém grita. 

           Já não se ouvem gritos como antigamente, agora distribuem-se pelas escolas e alarvemente, do básico ao secundário, gratuitamente, camisinhas de vénus. É foder a rego cheio garotada, quem é que, no seu perfeito juizo, se vai lembrar de belas artes, ou ao menos de gritar, quanto mais de pintar…

Isto é liberdade a mais, é libertinagem, é castrar as crianças, capar-lhes a beleza da descoberta, da imaginação, da criatividade, é uma moral de aberração com o aval do ministério da educação. E quando as Lolitas começarem a aparecer prenhas nas escolas ? Expulsá-las-ão ? A sina está traçada, lavar escadas, pedir sopa nos quartéis ou recolher a um dos muitos bordéis clandestinos ou legais que há por essa Europa fora e gritar, quero dizer chupar, e gramar, aguentar, crer, acreditar, ter fé e rezar.

- Berto, quando vieres para dentro traz dois raminhos de hortelã se faz favor amor, tens os olhos vermelhos, lacrimosos, alergia ?

Os bastardos ? Ponham de novo a Roda dos Expostos ou dos Enjeitados a funcionar, em asilos e conventos, restaurem a tradição, fazei workshops, convénios, conferências e outros eventos, candidatem a tradição a Património Imaterial da Humanidade junto da ONU, com o Guterres não deve ser difícil, só não sei se imaterial se material, com tanto testemunho, tanta prova… Verdade que a tradição já nem é o que era, nem a tradição nem a erudição, não nos serviram para nada elites e vanguardas, o charco alarga-se e já nos dá a água p’las canelas, daqui a pouco pelos joelhos, beijando os calções, e quando chegar … chegou onde sabemos, então o grito, raios, coriscos e trovões !

- Não, não é alergia nenhuma querida, antes fosse.

Não é o degelo que nos ameaça, é o desnatar, o desnatar de um certo orgulho e preconceito que se vai perdendo, vogando ao Deus dará num juízo de valor sem qualquer fundamento, é nisso que nos estamos a tornar, num inautêntico tormento.

- Então foi da gritaria querido, ouviste há pouco o grito ?

Mas o grito ouvido, este, tremi quando o ouvi, era aterrador, durou apenas umas décimas de segundo mas deu para notar quanta angústia encerrava, o sangue gelou-se-me nas veias e pousei o regador tentando descortinar por sobre a sebe de piricanta de onde soara aquele grito de desespero que tudo gelara pois no bairro nada se mexia. Recolhi a casa, era sol-posto, arrefecera, chutei as luvas da monda e as ferramentas de jardineiro para onde ninguém as pisasse e porventura se aleijasse e fui direito à salinha onde tenho por mero acaso uma pequena reprodução do “Grito” de Munch, talvez 20X12, uma pequena pagela de altíssima qualidade, oferta, há uns anos atrás, duma parelha de Testemunhas de Jeová a quem eu não abrira a porta. Cortara-lhes a fé pela raiz e à pagela o palavreado da base, uma tira para aí com um dedo de largura sem pés nem cabeça, depois mandara amoldurá-la, à pagela claro.

- Não amor, não foi do grito, foi da poesia …

Pela primeira vez na vida olhei tentando ver para além dele, do grito, tentando alcançar a razão pela qual uma pintura expressionista, talvez a mais valiosa do mundo, tanto nos impressiona, agora que também eu me arrepiara com o grito lancinante que acabara de ouvir e tentei perceber esse grito que me estourara aos ouvidos. Pousei o regador, abandonei os lírios e as tão mimadas Dálias, Coroas Imperiais e Gladíolos à sua sorte e meti-me a ajuizar onde estariam agora os vasos da salsa, do poejo e da hortelã. As mulheres gerem-nos em parceria, e mudam-nos de sítio constantemente, ou acompanhando a sombra ou fugindo da geada, só me apetece gritar-lhes. 


quarta-feira, 11 de junho de 2014

193 - UMA FANTASIA VELHA ..............

  
Levou o dedo à boca e molhou-lhe a ponta com a língua. Estava nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada, para isso contribuía. Era um sonho velho, melhor dizendo, era uma velha fantasia.

Lembrava-se vagamente do filme em que vira uma cena assim pela primeira vez. Tornou-se-lhe desde aí fixação. O nome do filme esquecera-o há muito, a voluptuosidade da cena nunca mais lembrara, melhor dizendo, quer dizer, até hoje.

Há coisas que crescem connosco, sonhos que se alimentam e dos quais por sua vez nos alimentamos, era o caso. Na idade em que o vi aquele filme marcou-me, posso adiantar que naquela época eu não sabia nem conhecia nada de nada por assim dizer. Melhor dizendo, eu não sabia mesmo nada.

Fui aprendendo com o que vi e ouvi, muitas vezes mal e porcamente pois por vezes nem entendia o que mesmo à minha frente acontecia. Não entendia nem perguntava a quem soubesse, e escondia atrás de alguma fanfarronice a minha nunca assumida ignorância.

Talvez fosse melhor dizer boçalidade, pelo menos em relação a alguns assuntos candentes, hoje reconheço-o, mas naquela altura não o seria nem mais nem menos que quaisquer outros dos que me rodeavam, melhor dizendo, era e éramos uma trupe de labregos xico-espertos, ainda hoje o seria não tivessem sido as minhas primas, especialmente as duas de Lisboa que eram mais ricas, posso mesmo dizer ter sido com elas que, admirado, me espantei com tanta coisa que nem sabia, melhor dizendo, tanta coisa com que nem sequer sonhava.

Há coisas que não se aprendem na escola, se há…
E tantas coisas, ó se há …

Fiz cinquenta anos o verão passado e posso garantir-vos que, metade delas, os meus velhos amigos inda as não sabem. Há coisas que não se ensinam a ninguém, se há … tantas coisas… ó se há …

Errei, admito, algumas vezes errei, admito-o, mas nunca mais cometi duas vezes o mesmo erro, melhor dizendo, os mesmos erros.

- E não digas que vais daqui !

Que é como quem diz come e cala, ou a papa se acaba, era mais ou menos assim que a Miquelina rematava cada lição que me dava, ou melhor dizendo, que me davam, porque parecia mesmo que estavam combinadas, a Miquelina e a Jacinta, mas não estavam, melhor dizendo, não sei se estavam, nem sei inda hoje se não estariam.

A mecânica da coisa foi-me explicada detalhadamente por uma delas, nem eu me lembro nem interessa qual, porque afinal ambas gostavam que o fizesse daquele modo, sem aquilo era tempo perdido, porque mais minuto menos minuto para conseguir um resultado minimamente satisfatório tinha que levar o dedo à boca e molhar-lhe a ponta com a língua.

Embora a situação já não fosse inesperada continuava a excitar-me, só a ideia por si só já me excitava, para melhor dizer adianto que nem era por a coisa ter sido fantasia ou fixação que perdia o encanto, bem pelo contrário, no que me toca posso afirmar que o potenciava, melhor dizendo, quero dizer que ampliava, aumentava, porque a língua portuguesa é muito traiçoeira e potenciava, se bem que seja uma expressão potente, melhor dizendo, forte, atira-nos para o universo das possibilidades, potencialmente possíveis, eu diria que, em potencia em possibilidade está ali, pode acontecer ou não acontecer, tem essa capacidade, essa possibilidade, se faz ou não uso dela é outra conversa, quero dizer é outra questão.

Isto é como tudo, quero dizer cada um terá a sua perspectiva, e de acordo com a sua própria experiencia pessoal, nem todos temos iguais ideias acerca do perfeccionismo por exemplo, ou da higiene, pelo que cada um terá o seu modo próprio de o fazer não será ?

Fiquei-me por perfeccionismo e higiene para não me alongar, quer-se dizer-se para não vos maçar com conversas de treta, melhor dizendo com conversas de merda, mas certamente já intuíram que poderíamos não nos limitarmos a essas duas premissas e invocar com o mesmo direito a eficiência por exemplo, a invocar ou a convocar, é como quem diz, chamar, trazer, não subtrair à colação se me faço entender, e com base no mesmo espírito de apreciação, ou observação, como queiram, é-me indiferente, há modos diversos de dizer o mesmo, as palavras são como as cerejas ou como as conversas, já nem sei o que digo, perdi-me um pouco, melhor fazer uma pausa, quero dizer um momento de reflexão.

Voltemos pé ante pé atrás, sei que recordava a Júlia a Jacinta e a Miquelina, nem sei por que não me  saem hoje do pensamento, quer dizer eu lembrava-as, mas lembrava-as a propósito de quê ?

Rememorando, lembranças do cinema, quero dizer daquele filme que se me tornou obsessão, melhor dizendo, fixação, ora quero dizer que eu lembrava uma minha fantasia, e não temam porque não me vou pôr aqui a arengar ou a desbobiná-las todas porque o fio à meada já eu perdi, e vamos lá a ver é se mesmo assim consigo desenrolar o novelo, melhor dizendo retomar os pensamentos onde os perdi, e por falar em perder já me ocorreu, acabei de me lembrar, melhor dizendo, relembrar.

Levei o dedo à boca e molhei a ponta com a língua. Fiquei nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada para mim contribuiu para isso.

Era um velho sonho, melhor dizendo, uma velha fantasia.

E depois de ter aberto as malas, no filme eram duas malas cheias de dinheiro, uma vermelha e uma preta, abraçaram os maços de notas em cada uma, à vez, tendo começado a contar cada nota de cada molhe, quero dizer maço, mais por voluptuosidade que outra coisa pois que contá-las todas lhes levariam duas vidas e esse tempo era coisa que decididamente já não tinham.

Mas para ser franco já nem recordo bem todos os pormenores, diria que como aquele da Miquelina, dela e das outras,

- E não digas que vais daqui ! 

- Come e cala, ou a papa acaba-se-te, rematavam...

Melhor dizendo, gritavam ou segredavam, ou sussurravam para não dizerem que falto à exactidão das coisas, e nisso parecia mesmo que estavam combinadas, mas acho que nem estavam, para melhor dizer não sei se estariam, só sei que qualquer delas invocava dois motivos muito importantes para me exigir que me calasse, quer dizer era uma coisa que faziam especialmente por duas ordens de razões, por tudo e por nada.

Lembro sim que uma delas adorava entalar-me a mão nas coxas quentes, era uma coisa que ela apreciava fazer, isso lembro, e depois ria-se às gargalhadas com o inusitado da suspensão, claro que não passávamos a tarde nisto, mas era um bloqueio que concitava ao avanço, ambos o sabíamos, o que eu já não sei mesmo é qual delas tinha essa mania, quero dizer esse tique, melhor dizendo não me recordo a qual delas atribuir esse capricho, mas diria que apesar de tudo me faço entender ou melhor dizendo me faço perceber.

E vocês que acham ?