Minha ventura começou com convite de grão-vizir para
que passasse férias naquela fortaleza. Desde então, e lembrem que sou do tempo em que os
animais falavam, seduzido pela beleza da paisagem e pelo mar azul, por ali me fico
a metade do ano em que nos pólos faz frio e no equador calor em demasia.
Não só por isso me avezei aquele lugar, banhado por
águas tépidas onde nenúfares perfumam o ar e servem de leito a dezenas de
sereias que, como eu, fugindo dos rigores gelados ou cálidos de seu mundo, ali
passam igualmente o período estival. Entre elas, uma teve o condão de me encantar com o seu
canto.
Loira, de uma beleza ímpar até para sereias, cabelo
caracolado, há séculos troca comigo insuspeitos e cúmplices olhares e
intenções, tendo mesmo chegado a deixar livre para mim um dos gigantes
nenúfares onde se espraiam, tomando sol, cantarolando e atraindo com o seu canto,
depois do poente, navios e marinheiros.
Naquelas águas calmas, prateadas, vi passar ao longo
dos séculos navios negreiros, navios piratas e muitos, muitos outros carregadinhos de
café… Em cada carregamento o aroma forte do café torna este
reino acolhedor, provocando em mim o desejo quando, desta fortaleza de Odemira,
vejo as luzes refulgindo e o destino me traz à memória essa sereia.
Espero-a, imaginando os oceanos lindos por onde anda,
espero-a, e sonho percorrer com ela esses mares para mim enigmáticos, espero-a
e recordo-a em cada lufada carregada do odor forte que até mim chega. O café,
as águas azuladas, o mar um lago lindo donde ela emergirá, mais bela que nunca,
mais sedutora que nunca, ela linda, eu feliz a seu lado, eu feliz como jamais
estivera, como se há tanto tempo….
Por isso a recordo como se ontem, como se hoje, o canto harmonioso, as palavras e os modos de deusa marinha, a delicadeza feminina e
simultaneamente diáfana. Sonhando-a sonho o mar numa tarde de solstício, o
seu olhar, os seus olhos, o seu sorriso, beijos, carícias, desejos, que eram os
meus, o seu corpo jovem, o odor a mar, os cabelos em minhas mãos, ela em
minhas mãos e eu, no azul tépido e escuro daquelas águas, cativado com tanta
ternura, com os seus seios cheios, túrgidos, lindos, excitantes, ela tão
doce, tão querida, tão meiga… eu, velho de séculos, sei-a de cor, ainda hoje
a sei de cor...
E jamais um café sem que a evoque, sem que nos
lembre, e esqueço-me de o beber olhando-o, desligado do tempo infindo em que
perduro, até o beber frio, e se frio… não me queixo, há cafés e cafés, depende do que nos
recordem, e então sim, uns sabem bem… outros a nada, outros ainda a saudade e a
ausência, a desejo, a ansiedade, a tormento, e tanta coisa nos diz um café, um
espelho de água com nenúfares, e jamais me ocorrera tanta coisa coubesse numa
chávena de café… todo um mar florido.
E nesse mar eu, e ela, e todo aquele dia dentro…
banhados nas águas do seu mundo. Como de outro modo senão numa chávena de café? Numa simples flor ou numa memória, reminiscência
memorável, e fico olhando o fundo, não as borras , que as não tem, mas o fundo,
o resto do café bebido, e vejo-a reflectida em cada chávena, e sorri-me,
recordando-me o melhor dela. Como não o melhor se não lhe conheço defeito, apenas
a beleza etérea… o sabor a salmoura dos seus beijos… O calor das águas em que nos banhámos, o fulgor do
céu que nos cobria, a profundeza do mar em que nos atolámos… E já me habituei a pedir o café sempre num canto
resguardado do balcão, longe de olhares, longe do bulício, para ficar ali
sonhando-a, recordando-a, amando-a numa chávena de café…
Estarei lúcido? Estarei sóbrio? Será possível?
Queria beber com ela cada café da minha vida, e
tantos dias, tantos cafés, tanta felicidade, e já está fria esta bica, vai
sendo costume já, estou habituado, é bom, nunca lembrara uma bica como agora, e
agora… Nem esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por
me ver, e a veja, no fundo de cada chávena.
Sitio linda o desta fortaleza.
Este mar florido e tépido, o seu sorriso, beijos,
carícias, desejos, que eram os meus, o corpo jovem de ninfa, o odor a
algas salgadas, os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos, e eu
vendo-me nas profundezas do mar onde me levava o céu com que nos cobria,
embevecido com tanta ternura, com os seus seios cheios, lindos,
excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga…
Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas
dizem que a cada um corresponde uma sereia que morrerá com ele, por nada deste
mundo queria perder aquela que, de entre tantas logrou encantar-me. Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas
dizem que em cada um uma sereia que morrerá, e por nada deste
mundo queria desencantar-me...
***** Ouvir com o texto https://www.youtube.com/watch?v=0xomgXqhKQs