Como da primeira vez, ainda ambos adoramos esse ritual que, volta não volta, quase tornado brincadeira já, nos coloca em papéis e posições que diariamente estamos longe de assumir.
Compreensivelmente, nem ela é sedutora ou
manipuladora, nem eu o dominador possessivo que aliás nunca fui.
Ela percebe-me, adivinha-me o pensamento, e de tal
modo assume os meus desejos que, langorosa avança, rebocando-me atrás de si,
olhando-me deleitadamente e impedindo que, à última hora me arrependa ou mude
de intenções. Ambos adoramos, como da primeira vez, esse ritual carinhoso e em
simultâneo purificador.
Enquanto eu apalpo a água até que a sua tepidez se
torne agradável, ela senta-se sobre as pernas, nunca deixando de me olhar com
aqueles olhos lindos, de gata, numa expressão de prazer adivinhado a que eu
nunca soube resistir. Um olhar dela e a qualquer hora, em qualquer lugar, me
apresso a satisfazer-lhe rapidamente os desejos e os caprichos que de uma forma
clara exprime tão solene quanto encarecidamente.
Tantas e tantas vezes apenas um olhar basta, tal a
cumplicidade que entre nós se gerou.
Estás sentada sobre as pernas, cabeça levemente
inclinada para trás, olhos semicerrados, enquanto te apoio as costas e seguro a
ponta do chuveiro buscando não te deitar água nos olhos, sei que o detestas,
tanto quanto eu adoro dar-te banho.
E, enquanto lânguida respondes aos meus gestos, te
espalho o champô pelo corpo, suave, suavemente, sem brusquidão, a mão passando
levemente por ti, afagando-te o peito, descendo para o ventre, também eu
apreciando o doce tacto dos teus pelos sedosos e macios que a água morna
amoleceu.
Não insinuas um gesto, ali ficas, estática, gozando o
prazer do momento, adivinhando o próximo, em que, nos braços te tomando, num
cobertor felpudo e quente te embrulharei com carinho, com amor, resguardando-te
do frio, embalando-te num sono que se tornou hábito e que durará até que, seca,
emirjas bocejando como bebé libertando-se da placenta.
E sim, como sempre ali estive, ali estou, esperando o
teu despertar, que ocupes o meu colo, que deites a cabeça no meu braço, que o
ritual se cumpra do início ao fim, sem alterações, como gostas, como os
hábitos, quais direitos adquiridos, exigem agora.
Estendo-me ao comprido e a teu lado no sofá, também
eu sem sono mas gozando esse momento único, beijo-te a nuca, mordisco-te a
orelha, enlaço-te com os meus braços longos e fortes e aperto-te até libertares
o habitual suspiro, sinal de que basta, um pouco mais e deixarás de achar graça
à brincadeira.
Ali ficamos, uma vezes minutos, outras horas, é
sábado, ninguém nos virá desta incomodar, os olhos pesam-me, o teu calor
amolece-me, a sesta chama-me, sinto as pálpebras fecharem-se-me num abandono
que amparo, dormimos e sonhamos.
Uma vez mais como habitualmente te libertas
sorrateira, sem que dê por tal senão quando pulas repentinamente para o chão,
me olhas com carinho e com desdém e, altiva, o rabo que nem antena de
automóvel, no passinho miudinho e gracioso que sempre foi o teu desde que em
minha casa te acolhi, buscas a tigela do granulado, sempre recheada, ou o leite
para gatinhos que tanto aprecias.
E eu, que a ninguém confesso quanto amo a minha gata
nem quanto ela me ama a mim, fico vendo-te esperares-me, pois há muito sei não
comeres sem a minha presença e o velho afago no dorso.
És o meu amor Shamira !
És o meu amor Shamira !