Marie Kovacs é francesa, 68 anos, professora
aposentada, casada há muito com um português que, segundo ela, acolhera no seu
seio na década de sessenta e quando nem sabia, em Paris, onde cair morto.
Deixou filhos em França e veio com o seu Aníbal viver
a reforma em Portugal, cuja gastronomia aprecia e onde o sol, a julgar pelo que
diz na sua carta, a maravilha.
Todavia compreendo as razões de queixa que me
apresenta, um casual mês “de vacances au Portugal “ não era o mesmo que os três
anos que já leva entre nós. Um mês não chega para apreciar este torrão à
beira-mar plantado, três anos é tempo suficiente para lhe descobrir as mazelas.
Da sua carta roubo uma frase, uma única, só, que não
expressando totalmente o que lhe vai na alma, avivou em mim recordações
daquelas que nos fazem deixar cair uma lágrima.
“ Et le Théâtre mon Dieu ! le théâtre “ !
Esta simples frase, nem por sombras a mais expressiva
da sua “lettre”, (fala e lê bem o português, mas não o escreve), deu o mote a
esta crónica e pretende expressar a Marie a minha compreensão pela situação que
está vivendo entre nós, a minha solidariedade e simultaneamente um louvor à sua
terra.
Corriam os finais dos anos oitenta, eu e meu marido
passeávamo-nos em Paris, no “Bois de Bologne”, quando, na sua orla, do lado em
que o mesmo confina com uma moderna zona residencial, se não erro “La Defense”, descortinámos
invulgar movimento em redor de uma “Église”.
Do lado do bosque, caravanas, parecendo pelo seu exotismo,
pelo tipicismo dos carros de muares, pela exorbitância das cores e das músicas
um acampamento de saltimbancos.
Na contra-mão do mesmo “boulevard”, à porta da
igreja, de um lado enorme cartaz pintado, do outro uma bilheteira em madeira,
tipo barraca e qualquer deles rivalizando nos desenhos e cores com o alegre
carnaval das caravanas. Bem anunciado; “Le Théâtre des Moliéres”, com
espectáculo a decorrer na igreja (?), e cujo início se processara, segundo o
horário afixado, há um quarto de hora.
Na bilheteira ninguém (viríamos a pagar somente no
fim o que cada um quis), curiosos entrámos, a lotação estava a meio, imperava o
silêncio, todos pareciam recatados, mais parecendo em oração que esperando uma
peça que não recordo bem o nome mas aludia a qualquer coisa como “Le Monde réel
c’est ici”. Única nota discordante, o trajar de alguns dos espectadores,
expectantes, fugia em certos casos à normalidade vigente, ou por algum absurdo,
ou por excentricidade. Não percebi mas calei, fui esperando, a igreja enchendo,
contrastando a solenidade dos presentes com o inusitado movimento, som e cor
que lá fora bradava aos céus.
Quando o cerimonial começou reparei que se tratava de
um espectáculo inusual. O coro, de uma heterogeneidade de idades, vestes, sexos
e raças que só tinha paralelo com o eclectismo que assinalei na assistência
presente, começou com o que me pareceu “ A Marselhesa”, não tendo ficado a
saber de onde e como foram aparecendo, aos poucos, nas suas mãos, os mais
díspares instrumentos musicais.
Levantei-me, desviei-me um pouco para a coxia, na
tentativa de observar em melhor ângulo determinado pormenor.
Um chefe de família e sua prole, (espectadores
atrasados, pensei), ao encontrar-me no meio da coxia estendeu-me a mão e deu-me
dois francos !, era o que faltava ! então não fui confundida com o sacristão,
ou o arrumador ?
Debalde tentei devolver-lhe as moedas, sorria para
mim, um sorriso do tamanho do mundo, de quem achou imensa graça (não sei a
quê), recusou a devolução e fez-me sinal, indicador nos lábios, que me calasse,
o que fiz.
Quando pretendi reocupar o meu lugar, sentei-me
inadvertidamente no colo de um cavalheiro que sub-repticiamente ocupara o
espaço por mim deixado vago ! Sem barulho, senti contudo pelo seu sorriso que
ria a bandeiras despregadas, amuei e fiquei de pé, não daria àquele palhaço o
prazer da minha atrapalhação.
Palhaço sim, pois como vestia mais parecia um palhaço
!
No entretanto o coro avançara, tocou / cantou Charles Aznavour, Jacques Brell, Maurice
Chevalier, Edith Piaf, outras, muitas e alegres canções típicas francesas,
abandonou a sua postura, e apercebi-me então que entre o coro e a assistência
havia troca de lugares, e de papéis !
Dei-me conta mais tarde que talvez um quarto da
assistência fazia parte da trupe, entre eles o tal chefe de família e o citado
palhaço !
Assistência e personagens haviam-se aos poucos
fundido. Como cá, se fez lá aquela fila indiana que dançamos ao som de “ O comboio
apita, apitou três vezes...”. O espectáculo transbordou para fora da igreja,
percorreu as rua limítrofes, viveu, conviveu e ligou-se aos passantes,
passeantes, habitantes e operários encontrados. A todos arrebatou e arrebanhou.
Um senhor sentado à beira do bosque gritou comigo (eu
ia na marcha), levantou-se irado, ameaçou-me com uma cana, que lhe tirei das
mãos.
Noutra galáxia eu, gritei-lhe; s'asseoir !, sentou-se, - Em pé !,
levantou-se !
Abalei a correr, cantando alegre, para não perder a
marcha, e surpreendida com a minha ousadia. Alguém me tirou a cana, deram-me
uma bandeira bem grande que de imediato me lembrou um espectáculo / bailado
chinês de “ Bandeiras Vermelhas”, que vira em 75 em Moscavide no auge do PREC.
A bandeira virou gaita de foles !
E eu que não sabia tocar, toquei, eu que não sabia
bailar, bailei ! eu que não sabia cantar, cantei !
Quando tudo terminou e reencontrei o meu marido,
perdido como eu no seio de tamanha multidão, chorei ! Peguei-lhe nas mãos,
chorando, e gritei-lhe;
- Berto ! Isto é teatro !
Apaixonei-me logo ali pelo teatro, de lágrimas nos
olhos, emocionada, teria abraçado uma carreira se mo tivessem pedido. Metade
daquela gente misturara-se secretamente entre todos nós para nos divertir, para
nos dar momentos inesquecíveis, vívidos.
Não fui ao teatro, fiz teatro !
Teatro que não sei classificar, se de revista,
musical ou de outro cariz. O cartaz tinha razão; “ La realité c'est ici”, a
realidade esteve ali !
Talvez compreendam agora porque mui raro vou ao
teatro, custa-me desvirtuar a ideia
linda que tenho do teatro.
O teatro é a vida, eu fiz teatro, eu sou vida.
Como a compreendo Marie.
* In Diário do Sul, Kota De Mulher, – Évora, por
Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião, publicado em fins de 2005
princípios de 2006