Era
impossível não dar por elas dado o entusiasmo reinante e o clamor que
levantavam, quer eu quer elas frequentamos a pastelaria “Boa Vida” há anos,
confesso todavia somente agora ter reparado nisso. Não que eu seja curioso, ou
cuscas como agora se diz, não, não sou, são elas que tornam impossível que não
se dê pelo seu grupinho, pela sua alegria, pela sua vivência, empenho, entrega
e incontida felicidade.
Na
minha mesa chamamos-lhe o grupo da galhofa, se bem que a designação não faça
jus ao espirito solidário daquelas senhoras. Estava capaz de jurar nunca as ter
visto antes, mas na mesa muitos garantem que as testemunham completamente
mudadas. Parece que anteriormente de tão caladas ninguém daria por elas se bem
que fossem habitués na pastelaria.
Agora
eram comemorações e festejos semana sim, semana não, e raro o dia em que na sua
mesa não houvesse algo ou alguma coisa para celebrar. Num dia era a
constituição de um comité, no outro o objecto de determinada comissão, numa
semana o estabelecimento de quaisquer protocolos, na seguinte a promulgação de
uma qualquer medida ou legislação. Nada parecia ficar esquecido, nada parecia
ficar por brindar. Hoje mesmo a conversa girava à volta de pontes, desemprego,
duas almas penadas, solidariedade desinteressada, reportagens.
Ontem
foi-me impossível não as ouvir gizando um grupo de socorro local vocacionado
para os desfavorecidos da “Boa Vida”, decidiram-no de valência abrangente e
integradora, de acção articulada com a comunidade e potenciadora de efeitos e expectativas
que causas de tal dimensão sempre geram. No meio do banzé geral muitos
beijinhos e abracinhos, muito chá de limão ou lúcia-lima, muitos jesuítas,
muitas risadas e uma indisfarçável felicidade que toda aquela risota expunha a ouvidos
e olhares.
A morena
dos caracóis que dissertava sobre a angariação de roupas, calçado e brinquedos
usados e respectivos canais de redistribuição não me era estranha. Costumava
vê-la sozinha numa mesa da padaria tomando o pequeno-almoço, cara carrancuda,
modos introvertidos, demorei a reconhecê-la, quase nem a reconhecia, tal a pacífica
e feliz expressão agora reflectida no seu olhar. Toda ela estava mudada, eu
apostaria até que melhor cuidada, verniz fúxia, baton a condizer, e ao dar
conhecimento ao Reinaldo destes meus pensamentos largou uma gargalhada e, fixando-me
nos olhos só acrescentou:
- E
agora usa Wonderbra aposto !
Pela
minha cara o Antunes adivinhou que ficara a patinar com a resposta do Reinaldo,
aplicou-me uma disfarçada cotovelada e sussurrou:
-
Largou a Triumph pá, agora tá noutro campeonato…
Confesso
que se já estava confundido pior fiquei, para mim o campeonato eram a Suzuki, a
Yamaha, a Honda, onde tardava mas só agora as marcas italianas começavam a
impor-se e onde a Triumph jamais conseguira uma vitória, nem sequer me constava
que tivesse estado inscrita. Embatuquei mas quedei-me por ali, não estava a
alcançar a relação nem isso me afligia, e o Peres, olhando a minha desistência,
esboçou um gesto despercebido aos demais para que eu entendesse a subtileza das
coisas e quando colocou as mãos em concha junto ao peito imitando sopesá-lo,
fez-se repentinamente luz no meu espírito e afivelei um rasgado sorriso. Sim,
também seria verdade, pensei.
Até
a ex. do Patrício parecia outra, era quanto a mim uma das mais activas do
grupinho, faço notar aqui que era uma mulher bem-parecida gostando de se impor.
Depois do divórcio passara certamente mal durante uns tempos, notava-se-lhe na
cara e no descuido a que se entregara, contudo nunca desistira das suas ideias,
e se por um lado lhe custaram o divórcio, não era menos verdade que levara a
sua avante e dobrara o Patrício a quem, ao fim de muitos anos, obrigara a mijar
sentado.
Não
é segredo, toda a gente notava que o porcalhão salpicava os sapatos, e os ladrilhos da casa de banho acrescentaria a Lélia, coisa de somenos mas que lhe
infernizava os dias e complicava com os nervos. Ela dobrou-o, todavia já foi
tarde, a animosidade acumulada foi tanta que nem o facto de ter ganho a demanda
evitou um divórcio litigioso.
Posteriormente
tudo se passou muito depressa e nem conheço bem os pormenores, sei que o Patrício,
despeitado, voltou a casar-se em três tempos com uma ruiva mamalhuda filha de
um coronel que vivia ao fundo da mesma rua e que nunca fizera nada na vida
(refiro-me à filha, embora dele pudesse dizer o mesmo) dizem as más-línguas que
ela ter menos vinte e muitos anos que ele, facto que não ponderou, poderá ter contribuído
para que tivesse baqueado que nem um patinho, porém toda a gente na avenida
sabe que se tratou de um enfarte fulminante. Acontece aos melhores…
Acredito
ter sido após este episódio que a Lélia voltou a dar acordo de si e a cuidar-se
novamente. É provável que tudo tenha perdoado ao Patrício, ou então, como se
compreenderia que encabeçasse a comissão instaladora dos “Patrocínios Patrício,
Almas do Céu”, destinada a dar assistência aos desvalidos e deserdados da sorte
no âmbito da paróquia ?
O meu
bairro está a mudar, ele são intenções veladas de transformar o velho armazém
numa capela, ele é a tecedura de acordos e acções de voluntariado com a
Misericórdia e a Cáritas, ele são as filas da “Sopas & Paz”, isto tá de tal
modo que um bairro tristonho amorfo e aparentemente deserto em que até os cafés
fecham às 19:00h se está tornando hiperactivo como nunca se vira, em especial
de há meia dúzia de anos para cá…
Um
bairro onde as mulheres atiraram às urtigas o crochet e os homens as olham espantados,
onde elas se dedicam entusiástica e efusivamente à acção cívica e abraçam o
social com a mesma devoção que a Isabel Jonet entrega a alma aos pobrezinhos. A
propósito, um cartaz à entrada da pastelaria anuncia-a como oradora convidada
numa palestra promovida pelo grupinho “Escravas De Madre Teresa” calculo eu que
de Calcutá pois o coronel, velho combatente da India portuguesa abraçou a causa
sem sequer se interrogar e participará igualmente na tal palestra, intitulada “Será
A Pobreza Trilho De Redenção” ?
Toda
esta gente amorfa ganhou súbita e milagrosamente vida, gente sem objectivos tem
agora uma causa, a crise criou a oportunidade e toda a vizinhança, tudo quanto
era dona de casa desesperada ou frustrada é agora um soldado mobilizado na
nobre tarefa da caridade e do voluntariado, as cabeleireiras da urbanização
voltaram a abrir aos sábados de tarde, acredito que uma graça divina caia actualmente
sobre os pobres na minha paróquia, a reciclagem de roupas, calçado, brinquedos
e livros atingiu proporções inusitadas de que as pagelas que estas santas
senhoras distribuem nos dão conta com um fervor desmesurado.
Por favor
não estranhem a minha ausência, vou desaparecer por uns tempos, alguém disse a
estas alminhas caridosa que em tempos dei aulas no oratório salesiano e
chegou-me aos ouvidos estarem contando comigo, como contribuinte da
sustentabilidade do grupinho e sobretudo para debater com a Jonet a vida e a
obra de S. João Bosco …
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