terça-feira, 24 de março de 2015

230 - MULHERES INCONTORNÁVEIS .....................


           Era impossível não dar por elas dado o entusiasmo reinante e o clamor que levantavam, quer eu quer elas frequentamos a pastelaria “Boa Vida” há anos, confesso todavia somente agora ter reparado nisso. Não que eu seja curioso, ou cuscas como agora se diz, não, não sou, são elas que tornam impossível que não se dê pelo seu grupinho, pela sua alegria, pela sua vivência, empenho, entrega e incontida felicidade.

Na minha mesa chamamos-lhe o grupo da galhofa, se bem que a designação não faça jus ao espirito solidário daquelas senhoras. Estava capaz de jurar nunca as ter visto antes, mas na mesa muitos garantem que as testemunham completamente mudadas. Parece que anteriormente de tão caladas ninguém daria por elas se bem que fossem habitués na pastelaria.

Agora eram comemorações e festejos semana sim, semana não, e raro o dia em que na sua mesa não houvesse algo ou alguma coisa para celebrar. Num dia era a constituição de um comité, no outro o objecto de determinada comissão, numa semana o estabelecimento de quaisquer protocolos, na seguinte a promulgação de uma qualquer medida ou legislação. Nada parecia ficar esquecido, nada parecia ficar por brindar. Hoje mesmo a conversa girava à volta de pontes, desemprego, duas almas penadas, solidariedade desinteressada, reportagens.

Ontem foi-me impossível não as ouvir gizando um grupo de socorro local vocacionado para os desfavorecidos da “Boa Vida”, decidiram-no de valência abrangente e integradora, de acção articulada com a comunidade e potenciadora de efeitos e expectativas que causas de tal dimensão sempre geram. No meio do banzé geral muitos beijinhos e abracinhos, muito chá de limão ou lúcia-lima, muitos jesuítas, muitas risadas e uma indisfarçável felicidade que toda aquela risota expunha a ouvidos e olhares.

A morena dos caracóis que dissertava sobre a angariação de roupas, calçado e brinquedos usados e respectivos canais de redistribuição não me era estranha. Costumava vê-la sozinha numa mesa da padaria tomando o pequeno-almoço, cara carrancuda, modos introvertidos, demorei a reconhecê-la, quase nem a reconhecia, tal a pacífica e feliz expressão agora reflectida no seu olhar. Toda ela estava mudada, eu apostaria até que melhor cuidada, verniz fúxia, baton a condizer, e ao dar conhecimento ao Reinaldo destes meus pensamentos largou uma gargalhada e, fixando-me nos olhos só acrescentou:

- E agora usa Wonderbra aposto !

Pela minha cara o Antunes adivinhou que ficara a patinar com a resposta do Reinaldo, aplicou-me uma disfarçada cotovelada e sussurrou:

- Largou a Triumph pá, agora tá noutro campeonato…

Confesso que se já estava confundido pior fiquei, para mim o campeonato eram a Suzuki, a Yamaha, a Honda, onde tardava mas só agora as marcas italianas começavam a impor-se e onde a Triumph jamais conseguira uma vitória, nem sequer me constava que tivesse estado inscrita. Embatuquei mas quedei-me por ali, não estava a alcançar a relação nem isso me afligia, e o Peres, olhando a minha desistência, esboçou um gesto despercebido aos demais para que eu entendesse a subtileza das coisas e quando colocou as mãos em concha junto ao peito imitando sopesá-lo, fez-se repentinamente luz no meu espírito e afivelei um rasgado sorriso. Sim, também seria verdade, pensei.

Até a ex. do Patrício parecia outra, era quanto a mim uma das mais activas do grupinho, faço notar aqui que era uma mulher bem-parecida gostando de se impor. Depois do divórcio passara certamente mal durante uns tempos, notava-se-lhe na cara e no descuido a que se entregara, contudo nunca desistira das suas ideias, e se por um lado lhe custaram o divórcio, não era menos verdade que levara a sua avante e dobrara o Patrício a quem, ao fim de muitos anos, obrigara a mijar sentado.

Não é segredo, toda a gente notava que o porcalhão salpicava os sapatos, e os ladrilhos da casa de banho acrescentaria a Lélia, coisa de somenos mas que lhe infernizava os dias e complicava com os nervos. Ela dobrou-o, todavia já foi tarde, a animosidade acumulada foi tanta que nem o facto de ter ganho a demanda evitou um divórcio litigioso.

Posteriormente tudo se passou muito depressa e nem conheço bem os pormenores, sei que o Patrício, despeitado, voltou a casar-se em três tempos com uma ruiva mamalhuda filha de um coronel que vivia ao fundo da mesma rua e que nunca fizera nada na vida (refiro-me à filha, embora dele pudesse dizer o mesmo) dizem as más-línguas que ela ter menos vinte e muitos anos que ele, facto que não ponderou, poderá ter contribuído para que tivesse baqueado que nem um patinho, porém toda a gente na avenida sabe que se tratou de um enfarte fulminante. Acontece aos melhores…

Acredito ter sido após este episódio que a Lélia voltou a dar acordo de si e a cuidar-se novamente. É provável que tudo tenha perdoado ao Patrício, ou então, como se compreenderia que encabeçasse a comissão instaladora dos “Patrocínios Patrício, Almas do Céu”, destinada a dar assistência aos desvalidos e deserdados da sorte no âmbito da paróquia ?

O meu bairro está a mudar, ele são intenções veladas de transformar o velho armazém numa capela, ele é a tecedura de acordos e acções de voluntariado com a Misericórdia e a Cáritas, ele são as filas da “Sopas & Paz”, isto tá de tal modo que um bairro tristonho amorfo e aparentemente deserto em que até os cafés fecham às 19:00h se está tornando hiperactivo como nunca se vira, em especial de há meia dúzia de anos para cá…

Um bairro onde as mulheres atiraram às urtigas o crochet e os homens as olham espantados, onde elas se dedicam entusiástica e efusivamente à acção cívica e abraçam o social com a mesma devoção que a Isabel Jonet entrega a alma aos pobrezinhos. A propósito, um cartaz à entrada da pastelaria anuncia-a como oradora convidada numa palestra promovida pelo grupinho “Escravas De Madre Teresa” calculo eu que de Calcutá pois o coronel, velho combatente da India portuguesa abraçou a causa sem sequer se interrogar e participará igualmente na tal palestra, intitulada “Será A Pobreza Trilho De Redenção” ?

Toda esta gente amorfa ganhou súbita e milagrosamente vida, gente sem objectivos tem agora uma causa, a crise criou a oportunidade e toda a vizinhança, tudo quanto era dona de casa desesperada ou frustrada é agora um soldado mobilizado na nobre tarefa da caridade e do voluntariado, as cabeleireiras da urbanização voltaram a abrir aos sábados de tarde, acredito que uma graça divina caia actualmente sobre os pobres na minha paróquia, a reciclagem de roupas, calçado, brinquedos e livros atingiu proporções inusitadas de que as pagelas que estas santas senhoras distribuem nos dão conta com um fervor desmesurado.

Por favor não estranhem a minha ausência, vou desaparecer por uns tempos, alguém disse a estas alminhas caridosa que em tempos dei aulas no oratório salesiano e chegou-me aos ouvidos estarem contando comigo, como contribuinte da sustentabilidade do grupinho e sobretudo para debater com a Jonet a vida e a obra de S. João Bosco … 



http://mariadonadecasa.blogspot.pt/2015/03/como-nao-podia-deixar-de-ser-num-blogue.htmlhttp://mariadonadecasa.blogspot.pt/2015/03/como-nao-podia-deixar-de-ser-num-blogue.html

quarta-feira, 11 de março de 2015

229 - O PREÇO CERTO ................................................


Com redobrado cuidado, coisa que nem era apanágio seu, evitou riscos ou pancadas no esmalte branco da banheira, todo o cuidado seria pouco, o apartamento era novo e a confiança com os vizinhos era ainda recente, por isso a desmembrou sem pressa, com ternura, e muito pesarosamente.

Armado de sentida lástima não conseguiu contudo evitar, quando do corte e estraçalhar de zonas mais intimas, o emergir de recordações gravadas a fogo na sua memória, nem que uma ou outra lágrima lhe tivesse acudido e soltado, à revelia do asseio pelo qual tanto primava.

Manobrava o cutelo e a faca com destreza, somente os sacos de plástico lhe pareciam não ser suficientes para o efeito, nem compreendia a fobia que repentinamente se levantara à volta e contra os mesmos. Em boa verdade nunca pensara que um chapadão acabasse como acabou, cada vez se tornava mais difícil encontrar quem acatasse ordens sem as discutir ou aceitasse trabalhar aos fins de semana e feriados, e ele atravessava uma fase em que dificilmente aceitava ser contrariado, até por lhe ser pacifico que toda e qualquer razão o assistia.

Noutro canto da cidade, não fossem as novas medidas de combate ao tráfico de seres humanos e um pai teria mesmo conseguido vender a filha, menor. A vida, ou simplesmente sobreviver, era coisa que andava pela hora da morte, e com maior ou menor riqueza de pormenores era assim, ou era isto que a imprensa trazia à colação e estampava na primeira página com fotografias a cores ou desenhos detalhados.

Tudo se vendia, tudo se comprava, tudo se traficava, tudo tinha um preço. O povinho espantava-se e devorava este tipo de notícias com a mesma avidez com que acompanhava na Tv o “Preço Certo”, raramente se questionando sobre causas ou razões, e menos ainda sobre os preços dos produtos e serviços a pagar ou o custo fiscal das transacções.

Tudo tem um preço, a questão é se o dito é baixo ou alto, e o busílis assenta simplesmente na questão de sim ou não e se estamos dispostos a pagá-lo.

Antes que me chamem nomes por tê-lo comprado vermelho, digo-vos que ontem, finalmente, fui comprar no Stand Maravilhas um soberbo carro de cinco portas. Custei a decidir-me, quer o stand quer a marca estavam repletos de carros para todos os gostos e sobretudo para todas as bolsas. Fiz as contas de cabeça e de papel e lápis e conclui que, uns modelos não estavam ao meu alcance e outros não valiam o carcanhol que por eles se pedia. No fim tomei firmemente uma opção meramente racional e de acordo com os meus rendimentos e avaliação do produto e das circunstancias.

Decidi-me pelo preço justo e por um modelo que conquistara a minha Maria desde o dia em que pela primeira vez visitáramos o Stand Maravilhas. Comprei um Nissan Note branco pérola que lhe luzira ao coração e fui para o café de ar inchado e mãos nos bolsos celebrar e comemorar, isto é, molhar a compra e mostrar àqueles pindéricos que ainda me dou ao luxo de gritar de alto e dar ordens à “CrédiBom”. 

Escolhi bem e foi uma opção deveras racional, o vendedor de usados foi o primeiro a reconhecer a minha sagacidade, tanto que me presenteou com um vigoroso aperto de mão e uma valente palmada nas costas. Não é todos os dias que vemos gabada a nossa perspicácia, trago esta conversa ao de cima porque os cabrões impiedosos no café

- A Renault dá mais tempo p’ra pagar e sem juros ó parvalhão – largou o César a quem a sogra oferecera um lindo Aixam bordeaux …

- A Toyota tem carros melhores e mais baratos e tinha-te dado mais tempo de garantia ó xoné - Alvitrou o Carriço que há uns cinco anos pediu o Mercedes emprestado à mãe e ainda não teve ocasião de devolver-lho…

No meio desta festarola salvou-se o Simões, o único que teve uma atitude digna e consentânea com a longa amizade que levamos

- Toma lá Baião compra uma ponteira de escape daquelas que roncam com estes vinte euros goza bem o carrinho, saúde, felicidade vida longa e bons passeios, qualquer dia temos que ir molhá-lo à Amieira não te parece ?

Confesso que me vieram as lágrimas aos olhos mas contive-me, por várias razões, vinte euros não chegariam para a ponteira, nem sequer para a gasolina de ida e volta à Amieira, não mencionando que me caberia a mim pagar o almoço comemorativo da compra, mas sobretudo para não me distrair e me afastar do tema de hoje que se bem me lembro é o preço certo ou não é ? O preço que estamos dispostos a pagar pelas coisas, é ou não é ? E certamente não será por uma ponteira, um almoço ou uns litros de gasolina mas pelo preço da vida, ou melhor do custo de vida.

No nosso país está tudo pela hora da morte. Esta democracia está a sair-nos caríssima não está ? E mais cara ainda se atentarmos no pouco que nos dá em troca. Para a carga fiscal que suportamos temos futuro a menos, emprego a menos, estabilidade a menos, saúde a menos, fim do mês a menos e dias a mais.

Temos seguramente crescimento a menos e oportunistas a mais, estadistas a menos e ladrões a mais, enforcados a menos e políticos a mais.

E ainda a música da regionalização não recomeçou a soar de novo…



terça-feira, 3 de março de 2015

228 - ROCK AND HIS GIRLFRIEND ..........................

             Eu tinha onze, doze e treze anos e desta vez não me resta a mínima dúvida. Lembro-me como se fosse hoje porque ela era a mais bonitinha de todas. Bem, havia uma outra mas não me marcou de igual forma, tanto que só vagamente a recordo e até o seu nome se me foi.

À Lourdes Anacleto não, nunca a esqueci, pra ser franco inda hoje páro para vê-la passar se comigo se cruza, ainda conserva uma carinha laroca, é quase tão linda como a minha mãezinha.

Dele não posso dizer o mesmo, até por ter surgido quando a minha devoção estava já toda concentrada nela, para além de não lhe achar graça nenhuma ao nariz adunco, que ainda permanece como se fosse uma imagem de marca, um nariz demasiado grande pra cara tão pequena. Porém não era isso que nos assustava, que me assustava, antes o seu grau de exigência, a sua atitude decidida, no entanto confesso ter-me cativado, ainda hoje vitupero gente hesitante, ignorante, ou que modifica a opinião ao sabor do vento. Com ele nunca havia dúvidas, afirmava-se de forma clara e imediata, era opinioso, não perdia dias a pensar num qualquer assunto e agia em conformidade e com coerência. Gostei logo dele, era como o meu paizinho, que detestava bandeirinhas ou vendidos.   

Professava francês, então a língua prima da diplomacia, do amor e da cultura e fazia-o magistralmente (era um magister) still today my french supera largamente o inglês e confesso que foi com agradável surpresa e espanto que há semanas dei com ele na esplanada que frequento.

Afinal somos vizinhos, reconheci-o logo, aquele narigão e o ar alegre e contagioso são inconfundíveis, os mesmos modos precipitados, a mesma urgência no falar, os mesmos cigarros comidos d'umas mãos que nunca param. Um destes dias fá-lo-ei, mas desta vez a surpresa não me permitiu ter-me apresentado, identificado, ou talvez por jamais ter sido simpático para mim, ou para qualquer outra pessoa, não o era, nunca o foi, enfim, lá terá sido para quem ele quis. Quem imaginaria que vizinhos, o Roque pelas minhas bandas, foi assim que ficou conhecido entre nós, nem doutor nem professor, nem sequer senhor professor, só Roque, tão curto e seco como a demora de uma resposta ou decisão sua.

Mas vê-lo foi revê-la e lembrá-la, foi recordar os tempos em que desejei para a minha mãezinha um amor assim, como o que ela viveu, como o que eles viveram, como o que eu vi nascer e crescer quando repentinamente, ela mais apressada e a chegar à tangente, antes que a campainha dos feriados a apanhasse por ter ficado até ao último minuto na sala dos profs, ou quando trocou as soquetes pelas meias de vidro, ou os sapatos rasos pelos saltos de agulha. 

       Trocara o ar juvenil pelo vermelho forte dos lábios e afivelara um sorriso permanente, o olhar passara a ausente e o ouvido estava sempre lá fora, lá longe, desatava em corrida mal tocava à saída e de novo para a sala dos professores onde atestava o ar alegre com que nos bafejava, toda ela quase tão criança como nós, de feições miudinhas, a cintura estreita, as pernas esguias e fininhas rematadas atrás por uma costura negra que as riscava de alto a baixo, sim, quase tão elegante e bonitinha como a minha mãezinha, diferente somente o cabelo, nela curto e encaracolado e na mãezinha longo e ondulado.

Um dia foi finalmente desvendado o segredo de tanta felicidade, o Roque desenrolando-lhe ternamente um caracol entre os dedos. O facto foi trovão que ribombou em segundos, aquela paixão era um truísmo, estava desvendado o mistério, toda a escola rejubilava parecendo então mais clara, sim foi em Stª Clara, agora mais caiada, mais branca, mais florida, mais invadida pelo sol, mais acolhedora, foi tal a paixão que os admirei, invejei e abençoei, e enterneceu-me tanto que desejei uma igual para a mãezinha.

A vida ensina-nos cada coisa…

Não somente a matemática e o francês a Lourdes Anacleto e o Roque me ensinaram, ensinaram-me vida, ternura, amor, dedicação, entrega e exemplo. Confesso não ser muito bom em contas e que o francês de nada me vai servindo por estar caído em desuso, mas que dizer do resto Senhor ?

A vida Senhor ?
Não lha devo também a eles ?

Ultrapassei a maturidade, o Roque ficou velho, e meu vizinho, nem imaginará como me tocou, não imaginarão, nem ele nem ela, a quem vi passar de jovens a casal adulto, que testemunhei como durante um período ou em menos de um ano transformaram a rotina em felicidade e contagiaram toda a escola, toda a comunidade educativa como agora se diz, ou antes todo o agrupamento escolar. Deviam ir à merda com estas novas classificações adjectivos e substantivos, tudo trampa caduca, perene mesmo só o exemplo daqueles dois, inquietos por chegar á escola, inquietos por estar na escola, inquietos por sair ao fim do dia, inquietos por se fortalecerem e guindarem ao altar, ávidos e imbuídos de uma inquietude virulenta e benfazeja que a meus olhos os tornou imortais.

Que será feito dela que há anos não vejo ? Ele por aqui, não acamado mas pouco faltando, e ela ? Que será feito dela e daquele corpo franzino que o amor fortaleceu e elevou quase à eternidade ? Ela que tanto desejei tivesse sido minha mãezinha, ela cuja felicidade desejei para a mãezinha ?

Quando comecei a namorar não tive aulas, nem explicações, nem catequese. Via cinema, via muito cinema, muito dele francês, quase todo francês, contudo quando foi a sério desenterrei o exemplo daqueles dois, da Lourdes Anacleto e do Roque, assim mesmo, sem mais adjectivos ou substantivos, Roque.

O exemplo daquele par guiou-me no caminho escolhido para ser eu mesmo e não estou arrependido, aquele exemplo enterneceu-me desde a primeira hora e mais que todos os filmes vividos. Inda hoje não sou muito bom nas contas mas faço-as, já não falo muito bem francês mas ainda o leio e traduzo correctamente o que me desenrascou na vida muito mais que satisfatoriamente, não mo ensinaram mas foi com eles que ternura, amor, carinho e meiguice ganharam em mim significado.

A vida ensina-nos cada coisa…

E dá voltas do caralho não dá ?




sábado, 7 de fevereiro de 2015

227 - AQUELA VELHA CADEIRA * por Maria Luísa Baião


Não sei porque simbolismo tem este singular objecto tido ao longo da história uma curiosa proeminência, se não mesmo um insofismável protagonismo.

Eu própria, quando pequenina, tive a minha cadeira privada, alentejana, vermelha, florida, com assento de buinho truncado, hoje obra de arte que só mãos experientes de artificie ainda produzem para satisfação de ecológico e saudoso artesanato.

Nos meus tempos de menina de catequese tive mais uma vez uma relação particular com esse singular objecto/utensilio. No catecismo, Ele era mostrado na sua majestosa cadeira, rodeado de anjos, segurando nas mãos os raios com que havia de fulminar os pecadores. Perto d’Ele S. Pedro carregava um impressionante molho de chaves.

Também o rei Salomão aparecia sentado em rica cadeira, administrando a justiça e impelindo duas mães à verdade através do pressuposto sacrifício de uma inocente criança. Herodes surgiria contudo exaltado, levantando-se apressado no temor de ser destronado daquela cadeira de ouro, ordenando por mor dela, e para que a lenda se não cumprisse, que fossem executadas todas as crianças do reino.

Já Pilatos, sabido, indolentemente se ergueu da tal cadeira real em busca de uma bacia onde pudesse lavar as mãos da obrigação que lhe cabia, fazer justiça. Não reza a história se com tal gesto nos legou um facto ou um hábito.

Objecto de arte, brinquedo de criança, obra de artesanato, trono divino e assento de reis, a cadeira tem vindo ao longo dos tempos a manter o seu estatuto diferenciador, até como objecto classista.

Não esqueço nunca que, para chegar à altura dos homens à mesa, quando pequenina, não passava sem uma cadeira especial, alavancada com duas grossas almofadas, como não esqueço a cadeira do barbeiro, pois era a ele que meus pais nessa época recorriam. Com as suas aparatosas particularidades, desde o assento que se voltava higienicamente cada vez que um novo freguês tomava nela lugar, até à posição de encosto, obrigatória para quem só desejava barba.

À cadeira viria a ter um medo de morte quando os anos e as cáries me levaram ao dentista, nem os seus miraculosos acessórios me deslumbravam, o foco de luz fortíssimo mesmo por cima dos olhos, ou o prático lugar para expelir a mistura desinfectante com que a boca era bochechada e onde se ouvia o tinir do dente extraído quando nele tombava.

Outras cadeiras me fariam sofrer vida fora, imensas, enormes, autênticos cadeirões que na minha vida universitária tive que transpor e tantas delas com cada dentista ! Ou dentista ou sapateiro, trabalhando sem anestesia nem consideração pela paciente !

Mais sofrido é o trabalho com cadeiras de rodas, onde atrás de cada uma se esconde um drama, um monte de sofrimento a que não urdimos fugir, de que o simples chiar tememos, e cuja lembrança é suficiente para avivar na memória o horror do nosso tempo quando ao volante nos sentamos, numa confortável cadeira, estrada fora, matando e morrendo.

Temor inspira a cadeira do poder, do patrão, do chefe, do doutor, do juiz, sempre melhor e maior que a nossa, sempre mais alta que a nossa, propositadamente, estatutariamente.

Adoro as cadeiras de praia, o sol, o mar, o bronzeado, a maresia, as férias, o tempo livre, a leitura, como adoro as cadeiras de campismo, o espaço amplo, o piquenique, a liberdade, o descanso para os braços, a leveza da madeira, o pano das costas, os pés que se partem, foi numa dessas cadeiras que Salazar sucumbiu.

Prezo as cadeiras antigas das esplanadas, o contacto frio com o metal nas noites de frescura procuradas no verão, os amigos, as conversas sem fim, a groselha com gelo e limão, as estrelas do céu, o fumo dos cigarros, o sabor e o cheiro acolhedor da bica, a roupa leve, o espirito liberto.

Nos Estados Unidos há um corredor com uma única cadeira ao fundo, discute-se agora a sua utilidade e exemplaridade. Tem anos e anos de vida e vidas e vidas dentro desses anos. É uma velha cadeira onde ninguém se quis sentar, e onde apesar de tantos, contrariados, se terem contudo sentado, não continua a faltar quem nela contrariado se sente. Valerá a pena conservar aquela velha cadeira ? **

* Publicado por Maria Luísa Baião no Semanário Imenso Sul, em 12-11-1999

* * THE OLD SPARKY






sábado, 31 de janeiro de 2015

226 - AMORAS E AMOREIRAS …….….....…………


Os olhos desviaram-se-me ligeiros para as pernas nuas da jovem condutora, por isso vi mal o braço da companheira viajando a seu lado, aliás os meus olhos percorreram em segundos todo o carro, que quase parou debaixo da amoreira para evitar bater no ressalto dos carris. Nesse curto lapso de tempo registei uma miríade de pormenores, o braço bronzeado, os curtos calções da condutora e a pele extraordinariamente branca das coxas, que me distraiu.

Se ainda me lembro d’alguma coisa é da particularidade daquele braço, e só por os últimos quatro algarismos condizerem com o ano em que nasci, não fora isso e nem teria fixado decerto um número tão extenso. Observava eu num relâmpago e com minudência tudo que se me atravessava sob os olhos quando o Tonicha gritou:

- Este é um Alfa Romeo !

- Francês, olhem a matricula ! Rematei-lhe…

Por isso num instante esqueci as coxas brancas, o número longo tatuado no antebraço da francesa e quedei-me, admirando nos últimos segundos o vermelho vivo do Alfa Romeo, as linhas esguias e baixas, surpreendido por ver o vidro dobrado da capota recolhida, que afinal era de fino plástico explicaram-me posteriormente, ainda recordo a matricula, vermelha como o carro, e uma mistura de algarismos e letras prateadas sumindo-se num roncar estrada fora, o pensamento alongando-se-me com o ir do carro, quem serão as madames, donde virão, pra onde irão ?

E estendido ao comprido sobre o tronco ou melhor o galho da amoreira, quase sobreposto à estrada, imaginava vidas indo e vindo, vidas ocupadas, vidas com fito, com partida meio e fim, ou chegada, enquanto iludíamos o tempo e as horas comendo as amoras, que ao menor descuido nos desenhavam mapas nas camisolas, ou nos calções, já curtos para a infância que se despegava de nós como a pele das cobras que volta não volta encontrávamos nos campos entre duas pedras ou entre estevas ou giestas.

A pulsão da vida desviara-nos dos ninhos da passarada para o mirante da amoreira junto à estrada quando já nem bichos-da-seda criávamos, vendidas que foram as caixas, os bichos, os casulos, tudo, desvendado que estava o segredo da seda e das metamorfoses do bicho outros mistérios nos chamavam, outros segredos por desvendar acicatavam em nós o desejo e a busca numa demanda cuja tensão, esticada entre a infância que se perdia e a adolescência que dia a dia se ganhava, vibrava em nós e nos preenchia de acne, ou de impensadas atitudes, guerras, brigas e desafios, numa constante comparação e medida de nós mesmos,

- O Cristóvão já deita aguadilha !

Assim como se deitar aguadilha fossem divisas, ou um posto, ou uma carreira a que se seguiria naquele ritual iniciático a langonha, que o Barreto já tinha e a quem, aliás, a barba despontava em cada borbulha do acne.

A copa e os ramos da amoreira eram rampa de lançamento de querelas e quimeras, não raras vezes dali lancei o pensamento, como quem deita um boomerang, ou melhor, um papagaio ao vento, dando-lhe guita até que algo ou alguém me forçasse a puxar-lhe as rédeas.

- Olha um boca de sapo ! Alemão ! Topem aquela matricula !

E na esteira do boca de sapo as conversas cavalgavam a técnica, a hidráulica e a aerodinâmica, as suspensões, ainda não havia airbags e nem sei por que carga de água as conversas iam invariavelmente parar a amortecedores, a conforto a mamas e a sexo.

Andaríamos pelos treze, catorze, quinze anos, o sangue fervia-nos nas veias e nas guelras se é que me entendem, a amoreira era o areópago onde a nossa instrução sentimental e educação sexual davam os primeiros passos.

Assuntos como um filme visto ou contado por algum dos mais velhos, experiência com prima, amiga ou vizinha era assunto dissecado exaustivamente. A esta distância rio-me da nossa ignorância, maior que a soma da insolência de cada um. Baralhos de cartas, fotos, revistas, desenhos, pinturas ou livros de mulheres nuas tudo era para ali canalizado e objecto de grande reflexão e debate.

No fim uma geraldina, tudo nas pívias para nos  acalmar a febre, cada um cuidava de provar a si mesmo e aos outros do que era capaz, e aí se via quem já, e quem se vinha com mais força, mais deleite, maior quantidade, mais longe, ou quem somente se ficava pela aguadilha.

Por vezes passavam pegadinhos um Chevrolet, um Cortina, um MGB ou uma arrastadeira igualzinha à do senhor Assis que era chefe dos bombeiros, cada um vibrava com as suas próprias preferências, e era sintomática a diferença entre nós, havendo quem gostasse delas cheiinhas, de seios grandes, ou magrinhas como as cobras, mais flexíveis, não que malabarismo, atletismo ou gimnastica fossem predicados ou gostos nossos, tudo tinha mais que ver com os contorcionismos das nossas mentes jovens e sonhadoras. No fim destas particularidades vinham as peculiaridades de cada um, este era bem dotado, aqueloutro já pintava, quer dizer já tinha pelos púbicos, fulano vinha-se uma, duas, três ou quatro vezes seguidas num quarto de hora, beltrano assim, sicrano assado…

Depois cresci, fiz-me homem, uma vez na hora H ainda fugi da Nani, não dessa que pensam, de uma outra, esqueçam, comecei a ler, a ir ao cinema e a bem dizer foi aí que se me iniciaram as revoluções de consciência.

Aquele número tatuado, aquele braço, seria aquela mulher a filha sobreviva da escolha de Sofia e que havia tantos anos me impressionara ?

Nisto um melro mais atrevido pousou no extremo afastado de um galho, decerto para depenicar as amoras maduras pois ali as não alcançávamos, o Hernâni fez sinal para que nos calássemos, ninguém mexeu, apontou a fisga, esticou os elásticos, largou. O melro nem soube o que lhe aconteceu, caiu no chão sem um pio.

Que espécie de gente será capaz de atitudes assim ?