quinta-feira, 7 de julho de 2016

359 - O ESBIRRO EMBIRRANTE ...............................


A mota atormentava-me e em simultâneo assustava-me. Toda aquela parafernália de campainhas e luzinhas fazia-me temer uma paragem nada agradável devida a falta de combustível. E depois como seria, não era coisa que se levasse às costas, pelo que apontei-a logo à Mobil, onde cheguei, adivinhem, lembram-se daqueles filmes do 007 em que ele desligava a bomba no último segundo e o marcador digital da espoleta nos indicava que o fizera no derradeiro 0, 007 milissegundo antes da coisa ter ido pelos ares ? Pois bem, mas eu afinal cheguei à bomba, de gasolina ressalvo, e depois de atestar verifiquei que o depósito afinal (outra vez afinal, o jogo de ontem fez-me mal, ou o jogo ou as mistelas) ia eu dizendo que afinal ainda lá teria gasosa para uns cinquenta quilómetros pelo menos, os japoneses não são nada exagerados, devem ter ficado com traumas e complexos após Fukushima. Aposto.

Atestei e fui pagar, o Ludovino, gentil como sempre, ofereceu-me uma linda bola de praia que presto ofereci a uma criancinha ranhosa que andava por ali e eu, para corresponder à empatia perguntei-lhe pela brasileira, a brasileira não é a Brasileira do Chiado, mas uma beldade tropical que lhe tem arruinado a vida e a saúde, o posto de gasolina é o último negócio de família que, por causa dela, ou apesar dela ainda não trespassou, vai morrer feliz o Ludovino, novo e feliz, mas quem a conheça reconhecer-me – á razão, a mim e mais ainda ao Ludovino, há coisas que nos fazem acreditar na beleza da natureza, na finalidade positiva da vida, que nos enchem de devoção ambientalista, e estávamos nisto, filosofando, quando pelo canto do olho topei o freguês que se seguia preparando-se para pagar e não fui capaz de me suster;

- Foda-se ! Você é policia ó amigo ! Ou é ou foi ! Multou-me há quarenta anos por causa d'uma merda de uma mijinha às duas da manhã ! Nunca mais esqueci essa cara ! Você não pode ser bom homem ! 

E era verdade, era ele, e era policia aliás estava aposentado. Eu nunca esquecera aquela cara de buldogue, e disse-lho, fora em 1974, não recordo o dia exacto mas foi entre o 16 de Março e o 25 de Abril, o Café Portugal fechava às duas da manhã, a malta ficara-se na conversa, que nos levou até ao início da rua Gabriel Victor do Monte Pereira onde, apertado, dada a hora tardia e o escuro de um pequeno cotovelo que a rua fazia, dei dois passos e aliviei-me da cerveja que me atormentava a plenitude do pensamento e me desassossegava o intelecto e a dialéctica.  

Nem sei de onde eles apareceram, eram dois, andavam acossados desde a intentona de Março e eu, eu e todos os cabeludos, éramos decerto gente da oposição, ou da oposição ou dela simpatizantes, e não se enganavam.

- Mas onde queria você que eu me aliviasse com o café fechado homem ?

Ontem, então, como hoje, não havia, nem em quantidade e muito menos em qualidade, casas de banho públicas que satisfizessem, e já que estamos em maré de filosofias e retóricas adianto-vos duas coisinhas, por um lado uma vez houve em que a brasileira quase me convenceu a tornar-me vegan, e por outro, outro lado não se percam, posso assegurar-vos que muitíssima coisa não mudou absolutamente nada desde então neste país e algumas até mudaram para pior, para bem pior ou muito pior depois do 25 de Abril.

Resumindo, penalizou-me em setenta e cinco escudos, o que à época e por uma mijinha foi um dinheirão ! Multado por indecente e má figura. Talvez agora o Ciríaco, o Pereira e a Ana compreendam melhor o gozo que me dá mijar em todo o lado e sempre que posso, é a minha luta, é uma tara, um complexo, uma vingança cuja divida se encontra ainda muito longe de me estar paga na totalidade.

O polícia, de canadianas e arrastando o esqueleto lá abalou num mata-velhos a chiar de ferrugento. Sobreviveu ao 25 Abril, decerto se adaptou, reformulou, eu não vos disse que quase nada mudou ? Nem a merda nem as moscas, só mudou a retórica, a dialéctica, a demagogia, que passou a ser feita à maneira *…

358 - O ARTISTA ILUMINADO ….……......……….

 Pintura de Guido Daniele – Milão - Itália *

Chegara perto de mim a todo o vapor, ofegante, nem bom dia nem boa tarde, nem olá, nem como vais ? Eu nem a entendia c’a pressa de falar e de se impor, recomendei-lhe calma, c’aguentasse os cavais. Não me pediu segredo nem dinheiro, pois é, é inacreditável, mas solicitou-me urgência, a mim, que descendo de um bufarinheiro e tal bastou p’ra me irritar, que impertinência. Urgência era de quando eu acreditava haver nas coisas principio meio e fim, urgência era quando cria que o mundo girava declinado simplesmente por cortesia, urgência era no tempo em que se ouviam as musas nos jardins, agora, agora se me querem ofender peçam-me urgência, mas urgência por quê ? E para quê ?

Urgência no meio desta demência é incongruência, confusão, absurdo, qual a nexexidade dela neste mundo agiota onde não bate a bota com a perdigota, mundo dividido, encantado, poliglota, sem bases, abstruso e fora de linha, pelo que me forcei a alhear-me dela, repetitiva, insistente e chata até ao tutano. Com esta idade podia ser um Picasso, um Matisse, Salvador Dali, um qualquer. Algo se passara com ela que ninguém aprofundara. Nem quando enlouquecera. Crucificaram-na.

São as capas dos jornais quem hoje me convoca, Teixeira dos Santos vigiando o desempenho da CGD, a raposa guardando o galinheiro, Pedro Guterres contratado pela Mota-Engil, bendita a pátria que tais filhos tem e para bem dos quais somos imolados.

Lembro-me dela desde há mais de vinte e tal anos, a esperança nos olhos, a magia nas mãos, sonhos em ebulição, o céu como limite. Ainda falei com o pai, Ermelinda fora crucificada, ainda lhe disse que se fosse comigo iria lá abaixo ao Algarve partir a cara ao tipo, porém sempre fora um pai com mais garganta que cabeça;

- E depois ?  Um professor não tem sempre razão ? 

Respondera-me.

De nada teria valido ter-lhe dito que não, de nada teria valido ter-lhe dito que naquele capitulo ser até muito raro terem razão. Não é a arte sobejamente subjectiva, furtando-a portanto e naturalmente aos cânones de uma razão preconceituosa ?

Mas, apertado entre subjectividade e cânones, esse pai ficara como ficam agora os clientes ou consumidores perante os caixas dos supermercados, quando a maquineta lhes pergunta após terem inserto o cartão multibanco;

- A crédito ou a débito ?

Ele inscrevia-se naquela folgada percentagem dos que não sabendo uma coisa nem outra e perante a pressão da fila em espera respondia sim. A ignorância não se publicita, a vida não é o varão d’uma discoteca e quando o banco lhe pede contas e as vai prestar, esclarece-as no segredo dos gabinetes e orgulha-se por a sua reputação não ser matéria do domínio público, nem sair beliscada apesar dos juros lhe custarem os olhos da cara.

A cara, isso, eu ter-lhe-ia ido à cara, crucificou-a, ele teria que me explicar, e não só a mim o que dissera à miúda, não se desfaz um sonho, não um professor, ainda por cima munido de uma subjectividade imprópria para a questão e usando de violência psicológica sobre uma adolescente que estava incumbido de formar e não de confundir. Era um artista iluminado certamente. Não se faz. As duas mãos estampadas naquela cara seria o mínimo que o pai devia fazer-lhe, talvez mesmo partir-lhe o nariz, fazê-lo sangrar, para ele aprender a ser homenzinho. Era por certo um professor fechado, um artista iluminado, imagino-o apreciador de cores fortes, de traços definidos, apreciador de vinhos, e de direitos, aposto que nunca falta a uma manifestação.

O maior problema desta crise nem é a obscena promiscuidade com que a matilha politica suga tudo à sua volta sem deixar nada para os outros, é que os outros lho consintam sem lho fazerem sentir, sentir que o preço dos abusos lhes sairía pela hora da morte, a esta classe politica alguém devia obrigar a esbarrar com a cara em duas mãos, nas duas mãos de cada um de nós, não reconhecerão nunca outro argumento, quando muito o garrote, ou o muro, mas não queria entrar por aí para vos não assustar, além de que tenho uma reputação a defender...

Nada teria custado ao pai da pikena ter montado a mota e rumado ao Algarve, assumindo-se como um justiceiro cavalgando em honra da sua dama, atravessando as planícies alentejanas como quem atravessa as pampas argentinas, cindindo de dia besouros e besourinhos e de noite luzes e luzinhas, em direcção ao pirilampo que tão bem soube mandar abaixo os sonhos a personalidade em formação e o carácter ainda não consolidado de uma adolescente. O motard das pampas**, o Ernesto, o Che tê-lo-ia feito, independentemente do escândalo que pudesse armar, Emília teria adorado e talvez a sua jovem personalidade não tivesse claudicado ao ver o seu cavaleiro acorrer em defesa da sua dama, ela. Foi um crime, a miúda foi simplesmente crucificada.

O que esta crise tem de pior é a dignidade que nos retira, em especial aos jovens, esta crise seca tudo em seu redor, protege numa redoma os que estão bem instalados e aos outros exige que trabalhem, que se esforcem para os manter sem sequer lhes darem os meios para o fazerem, para se libertarem, para se dignificarem, pois o trabalho como todos sabemos liberta e honra. Quanta violência, quantas ambições por cumprir, quantas realizações ficam p’lo caminho, quantos sonhos abandonados, quanto orgulho engolido, quantas vidas não cumpridas, quantos dramas, quanta inconsciência e incompetência no que ao prever, acautelar, providenciar e assegurar do futuro à nossa juventude concerne. Só paroli, paroli, paroli… Outros países para se desenvolverem revoltaram-se. Encostem a nossa elite a um muro e não hesitem, fuzilem-na…

O mesmo devia ter feito o meu amigo àquele professor algarvio que sem um laivo de consciência negou a uma miúda a existência, somente porque ela alimentava outros padrões. Estava eu congeminando estas pérolas e, tão repentinamente quão se tinha atrelado a mim, ei-la agora correndo em sentido contrário e no encalço de um individuo que passara apressado, de gabardina, ou quispo, em pleno verão, de aspecto untuoso, coxeando ligeiramente e arrastando a perna, aposto que a fim de se ver livre dela, e fiquei-me  olhando-os enquanto a vista mo permitiu, depois meti-me no carro e também eu dei meia volta e marchei rua adiante, até dar com eles numa fila enorme e enrolada, um magote de gente apinhada frente às instalações do IEFP, essencialmente jovens e alguns menos jovens numa fila de gente amorfa, sem futuro, sem dignidade, gente condenada, uma geração inteira condenada, ou ainda mais gerações, todas elas condenadas…                                                                                                                                                                                                                                           Pintura de Sónia Barreto - Évora - 2017

* Pinturas de Guido Daniele – Milão - Itália
* https://www.facebook.com/guido.daniele.9
**http://www.saeditora.com.br/catalogo/relatos/de-moto-pela-america-do-sul/
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1rios_de_Motocicleta


quarta-feira, 6 de julho de 2016

357 - DIGNUS DIGNITY DIGNITIT ............................

          'Nu couché', de Modigliani, uma das suas obras maiores.

O que esta crise tem de pior é a dignidade que nos retira, em especial aos jovens, esta crise seca tudo em seu redor, protege numa redoma os que estão bem instalados e aos outros exige que trabalhem, que se esforcem para os manter sem sequer lhes darem os meios para o fazerem, de se libertarem, de se dignificarem, pois o trabalho como todos sabemos liberta e honra. Quanta violência, quantas ambições por cumprir, quantas realizações ficam p’lo caminho, quantos sonhos abandonados, quanto orgulho engolido, quantas vidas não cumpridas, quantos dramas, quanta inconsciência e incompetência no que ao prever, acautelar, providenciar e assegurar do futuro à nossa juventude concerne. Só paroli, paroli… Encostem a nossa elite a um muro e não hesitem, fuzilem-na... 

O mesmo devia ter feito o meu amigo àquele professor algarvio que sem um laivo de consciência negou a uma miúda a existência, somente porque ela alimentava outros padrões. Estava eu congeminando estas pérolas e, tão repentinamente quão se tinha atrelado a mim, ei-la agora correndo em sentido contrário e no encalço de um individuo que passara apressado, de gabardina, ou quispo, em pleno verão, de aspecto untuoso, coxeando ligeiramente e arrastando a perna, aposto que a fim de se ver livre dela.   
Amsterdão, bordel na Rua da Lanterna Vermelha, montra de mulheres. 

Fiquei-me olhando-os enquanto a vista mo permitiu, depois meti-me no carro e também eu dei meia volta e marchei rua adiante até dar com eles numa fila enorme e enrolada, um magote de gente apinhada frente às instalações do IEFP, essencialmente jovens e alguns menos jovens numa fila de gente amorfa, sem futuro, sem dignidade. Elas, em especial as que tiverem bom corpo ainda poderão acalentar algumas esperanças, o projecto de algumas juventudes partidárias, e partidos, para legalizar a prostituição pode vir a beneficiá-las, a permitir-lhes uma carreira profissional de futuro, com previdência social e sindicato, com mais higiene e mais segurança, poderão com saber ou com sorte, ou com as duas coisas, ingressar num bordel de categoria e iniciarem uma carreira…. 

Quanto a eles já não tenho tantas certezas, a menos que o lobby gay lute pelos seus direitos e a legislação os contemple sem discriminação de género, e aí sim, bordeis também para eles, uma carreira, ou mais que uma, gigolos, acompanhantes, existe toda uma gama de actividades verticais conexas, assim o nosso legislador seja capaz, fomos dos primeiros a condenar a escravatura, poderemos ser os primeiros a garantir amplas liberdades, enfim, fazer inclusive frente à Tailândia, um tigre asiático nos lugares cimeiros do turismo sexual.

Bem sei que a Tailândia tem outras especialidades que por cá nunca ousámos, carninha tenrinha, rapazinhos e meninas púberes, não conheço a sensação nem quero conhecer, fico-me pela carne alentejana madura, ou matura, que essa posso garanti-la. Contudo acho que os nossos legisladores não irão descurar esse importante nicho do mercado que até poderá desviar as rotas aéreas do sueste asiático para estes confins da Europa.

Arranquei mais optimista pois tinha parado o carro para contemplar a desgraça daquela gentinha sem futuro, sem dignidade, e sorri mais aliviado da consciência e feliz. Se tudo correr como programado até o deputado mais impoluto deixará de rondar à noite as cercanias do Parque Eduardo VII, passará a correr menos riscos e a poder exercer os seus direitos dentro da mais estrita legalidade e comer à vontade a própria filha, ou a filha de um qualquer outro, ou o filho… Antigamente qualquer um de nós tirava um curso industrial, comercial, ou o liceu e tinha automaticamente acesso a emprego, a uma carreira, a chefe de repartição, de secção, de serviço, a director, gerente bancário, oficial de justiça, quadro superior. 

      Agora não tem direito a nada, nem com mestrado, nem com doutoramento, levaram-nos os empregos e a dignidade, esta democracia e estes democratas levaram-nos a igualdade, a oportunidade e esta gentinha, esta rapaziada ainda não se convenceu ter havido mais honestidade em Salazar e no seu regime que agora entre estes meninos, estes aprendizes, estas elites.

        Salazar oferecer-vos-ia mais futuro, mais oportunidade e estabilidade, é isso que lhe não perdoam, por tal nele desfazem há quarenta anos. Salazar pegou num país literalmente a desfazer-se à mão dos democratas da época e durante quarenta anos construiu, construiu até um acidente ridículo o matar, esta canalha só sabe destruir, destruir, destruir… Que tentem ao menos imitá-lo. Salazar dava-nos pouco ? Esta democracia nada nos dá e tudo nos tira, desde o presente ao futuro. Fazei as contas, estes sim são o nosso pesadelo e os verdadeiros vampiros de que falava Zeca Afonso…

Felizmente temos no parlamento gente consciente e com visão de futuro, com clarividência, um pouco de sorte o desemprego poderá ser um flagelo para esquecer, as mães de Bragança agradecerão e o país reconquistará a dignidade perdida.

Deus nos ajude e assim o queira…
Amsterdão,  bordel na Rua da Lanterna Vermelha, mulher na montra. 







quinta-feira, 30 de junho de 2016

356 - FIAT LUX * !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ......................


Eu sabia haver ali qualquer coisa que me escapava, qualquer coisa que eu não via, não entendia, mas sentia, quer dizer pressentia. Para mim tudo aquilo era bom demais para ser verdade, quer dizer, ser verdade era, o que eu lhe encontrava era uma certa falta de razoabilidade, quero dizer não tinha a certeza do que via, alguma coisa haveria que não estaria a ver.

Finalmente fez-se luz, quero dizer a Tv parecia Deus mal a abri, “Fiat Lux” foi o que me ocorreu ao ver e ouvir o que vi e ouvi, e li, para ser mais exacto, pois se abordo uma questão irrazoável que dei por certa, há que ter cuidado com as contradições, embora todos saibamos que o que há de mais puro e verosímil nesta vida seja “o principio da incerteza”, que tudo abarca, em tudo está presente, mesmo se a gente o não pressente.

Na minha rua, e nas três que circundam e delimitam o quarteirão onde vivo, que não é um quadrado nem um rectângulo, onde uma das ruas, em semicírculo, curva, curvilínea, circular, lhe arredonda um dos lados, vivem igualmente três outros singulares vizinhos digamos. Singulares quer pelo alarido levantado à mesa do café onde amesendam, quer pelo ar exuberante e apostático com que cada um deles vive a life. O mais gordo, qual arcanjo da beleza alheia, mostra e passeia a madame, que faz questão de trocar todos os doze a dezoito meses, desta vez uma loura espampanante e mamalhuda de tatuagem na coxa que a celulite e a gordura deformaram, acerca de quem o meu amigo Queiroga cada vez que a vê, a loira, não a coxa, larga o seguinte desabafo;

- Mas que grande pedaço de mulher !

Como se a loura, ou as louras, ou as mulheres fossem para comer às postas, mas perdoo-lhe e percebo-o melhor desde que nos temos encontrado no talho do Hiper ou na peixaria do dito, onde ele, desde as postas de salmão aos lombos de pescada e bacalhau, até o lombo de porco, tudo compra às postas, da pescada à corvina e ao robalo. Imagino o que terá passado a D. Ester, que era magrinha e de onde era impossível tirar uma lasca, quanto mais uma posta, imagino o que terá penado antes de o Senhor a ter chamado a Si depois de prolongada anemia.

Mas se um passeia a loura com a regularidade com que a vizinha da frente passeia o caniche, outro deles passeia a “bomba”, como lhes chama sempre, a cada um deles e a todos. Desta feita um daqueles Mercedes baratuchos equipado com um motorzeco Renault. Mas atenção, tal e qual ele mesmo diz, ou grita;

- O que interessa é a estrela pá ! O que conta é a estrelinha ! O que tu tens é invejinha !  

E realmente assim é, e é vê-lo a cada dezoito ou vinte e quatro meses com uma “bomba” diferente, mas sempre nova, com estrelinha ou sem estrelinha mas sempre de fazer invejinha. Não lhe conheço mulher mas imagino que a trataria de longe muito melhor que o outro trata a loiraça, basta ver os cuidados que tem com as bombas.

O terceiro tem mulher mas não lhe liga, na prática quase fazem vida de separados, não sei se dormem em quartos separados ou não, isso é coisa que se quiser saber o melhor é uma conversa bem levada e privada com o Menezes da retrosaria “Mina Das Especiarias” e que sob um falso ar efeminado, sabe mais das questões profundas de muitas fêmeas que os próprios maridos. Mas enfim, botões de madrepérola, elásticos para as cuecas, nastros e linhas de alinhavar são com ele. Quem está na berlinda agora é este, o Major Faria, aliás esquecera-me de referir que os personagens anteriores também são graduados, um Tenente Coronel e outro Capitão Tenente, e que todos eles deixaram há muito anos a messe de sargentos tendo frequentado nas últimas décadas, com pingalim ou sem pingalim mas sempre com garbo a messe de oficiais, aqui na terra funcionando num antigo convento, o convento de Nossa Senhora da Graça, pertencente à antiga ordem de S. Agostinho, restaurado, onde as madames podem mostrar os decotes e os vestidos e onde, talvez em bailaricos as filhotas debutem. A nós é que tudo acaba debitado claro, como sempre e dentro da tradição.

Mas a pancada do Major Faria, ainda assim o mais novo e mais magro deles todos, são as motas e os passeios nas ditas, coisa que a D. Estrelinha não deve apreciar já que nunca a vi em cima de uma, mas que o Menezes certamente inveja pois por mais que uma vez no café o topei;

- Então senhor Major onde vai ser desta vez o passeiozinho ?

E seja o passeio onde seja, demore os dias que demorar, o Menezes acaba por afivelar sempre o mesmo sorrisinho maroto, como se lhe fosse na alma uma satisfação interior e uma plenitude de glória e paz capaz de fazer inveja a muitos mortais. Como a malta sabe, dos cortinados e entrefolhos da D. Estrelinha tratará ele, e das saias, das camilhas claro.

Quando os três eram mais novos Setembro era o mês das conversas estafadas e dos relatos das férias e das aventuras nas residências de praia para os oficiais. Agora velhos e aposentados, um passeia a mulheraça, outro exibe as bombas e o Major Faria troca de mota todos os anos entretendo-se no intervalo a polir-lhes os cromados. Nunca ninguém os viu fazer nada na vida nem da vida, a nenhum deles, foi preciso o Correio da Manhã vir à baila esta quinta feira com noticia esclarecedora;

 “Militares Perdem Crédito Da Defesa” que é como quem diz acabou-se o crédito para os militares com base nos dinheiros do Orçamento de Estado, para ser franco nem sabia que os militares tinham um CrédiBom !

Bendito país, nem Salazar criara tanta excepção, tanta isenção, tanto beneficio, tanto privilégio, tanta diferença, tanta divisão... E que a malta saiba os paladinos do 25A nunca se queixaram do favorecimento. Este país não merecia um, merecia três novos Salazares ! Três ! Os portugueses têm o que merecem, nem todos claro, pois paga o justo pelo pecador, ainda assim é graças ao 25A, que podemos falar e escrever o que queremos e onde queremos. E serve-nos de muito... Falar e escrever sem que ninguém nos ligue, é o custo da "libardade" que nos impingem !

O problema está no privilégio que a coisa exemplifica, nos favores de classe concedidos, nos perdões abafados, nos favores feitos e pagos... Com dinheiro do orçamento, portanto com dinheiro nosso. Porque não vão os militares ao banco como toda a gente ? E já agora que estamos com a mão na massa e falando de cozinha porque têm messes e criados à disposição ? Porque têm residências e residenciais de férias melhores que certos hotéis ? Porque não temos nós disso, nós povo, se até pagamos a conta ? Não estou a ver o Ministério a actuar contra o senhor Major ou o senhor Tenente Coronel ou o senhor General em caso de incumprimento, só Deus sabe quantos casos desses aconteceram e quantos foram abafados... Não estou a ver o Ministério a executar-lhes hipotecas, a metê-los na rua e a ficar-lhes com as casas para vender ao desbarato, como tem sido feito à populaça e semeando milhares de dramas pelo país fora... Ser militar não pode isentar de pensar com a cabeça, nem desobrigar de estar do lado da razão, na situação do país os militares têm privilégios de que se deveriam envergonhar, mas afinal o mau não era Salazar ?

As coisas que nós desconhecemos ! Afinal meio país tem "rabos-de-palha"… Este país é um portento para quem saiba viver sem nada fazer, finalmente fez-se luz, sou eu, quero dizer somos nós todos quem paga as mulheres do Tenente Coronel, as bombas do Capitão Tenente, e as motas do Major Faria. Tudo mui lenta e justamente conquistado à custa de paciência, tempo, diuturnidades e promoções. Nada interessa que quem os ouça falar trema com os palavrões, as asneiras, as incorrecções, as demonstrações da mais elementar ignorância, de falta de conhecimento, de cultura, de saber, de entendimento e de bom senso. Ainda bem que não estamos em guerra.

Vou mas é ver se apanho uma posta, dou uma dentadinha ou uma voltinha, afinal tudo aquilo é meu. Tenho que dar uma palmada amigável nas costas do Menezes e elogiá-lo. Merece. 










quarta-feira, 29 de junho de 2016

355 - DEFINITIVAMENTE q.b. igreja de S. Vicente...

 "Temeraire" um dos mais lindos quadros do pintor  inglês William Turner

Estou habituado ao ar festivaleiro com que por vezes sou recebido, agrada-me a empatia que muitos dos meus amigos me prodigalizam e procuro retribuir-lhes na mesma moeda, mas ontem, mais precisamente segunda-feira, ainda estaria a cem metros da Igreja de S. Vicente quando, repentinamente, campainhas tinindo e luzinhas piscando, de tal modo que, não fossem dez da manhã e pensaria ter entrado pelo S. João dentro.

Lesto enfiei a mota no estacionamento e desliguei a chave com brusquidão calando a charanga. Nunca tal me acontecera, e afinal tanto banzé nem festejava a minha chegada ao vicentino santuário, para visita a mais uma iniciativa levada a cabo pelos Ciclos de S. Vicente, e que até depois de amanhã, portanto 30, estará patente em exposição no dito templo. A charanga, chamando a atenção de todos sobre mim, afinal tinha que ver com a gasolina que entrara na reserva, coisa que apesar de ter a mota há dois para três anos nunca me acontecera. Raio de modernismos.

Os CS~V, Ciclos de S. Vicente são uma meritória iniciativa da Colecção B, Associação Cultural, que de uma forma inteligente e expedita procura ocupar positivamente um espaço nobre no centro do burgo e, em simultâneo, presentear-nos com mostras culturais que animem a urbe com um tipo de oferta em que ela é manifestamente carente. Não é fácil. A exposição desta vez apresentava-se como “Definitivamente q.b.” embora eu tenha ao chegar a casa aberto no pc uma pasta com um ficheiro a que dei o nome de “até sempre”. Mas vamos com calma e não dêmos o corpo pela alma, pois é a alma que a exposição ali instalada, ou a instalação ali exposta, nos quer acicatar. 

Tenho pena de vos não trazer aqui fotos, pela segunda vez no momento crucial a bateria nem um flash vomitou, pelo que me fiquei p’la contemplação dos folheto explicativos da Beatriz Agria e da Inês Gomes e, lendo os folhetos e avançando pela igreja adentro, andando isto tudo ligado cada palavra delas despoletava uma conexão entre os meus neurónios, já avivados pela charanga da indicação de reserva do combustível e portanto excitadíssimos, pulando contentes na penumbra fresca e sacra pelo que abandonei o pensamento, afim de que as ideias fluíssem entre mim e um outro ser que também eu, um de nós encafuado na sua capsula do tempo o outro tentando sair da casca, interligando-se ambos, entrecruzando-se num sistema de vasos comunicantes em que o percebido e o sabido finalmente se equilibraram devendo ter sido aqui que confidenciei ao Marco;

- Já valeu a pena Marco, só pelos folhetos já valeu a pena, “… a conexão de todo o conhecimento adquirido… “ então não é Marco que só ontem ao ler o Expresso soube, soube eu e devem tê-lo sabido uns milhares de pessoas, que aqueles céus vermelhos tão característicos nas pinturas de Turner não se devem à sua suposta vontade de impressionar, mas ao facto de na época não sabermos o que se passava na rua ao lado, quanto mais do outro lado do mundo. Conectar é somar, é saber tudo. 

O simpático Marco Miguel é o guardião da igreja, o seu anjo da guarda, ou cão de fila, cada um que o julgue que eu nada lhe devo nem sou seu confessor, a mim tem-me demonstrado bastas vezes a sua gentileza e empatia ainda que nunca me tenha pago um gelado ou sequer uma bica na Zoka, ali mesmo à frente, mas enfim, feitios.
Meia porta da igreja de S. Vicente comida pelo sol.

Mas voltando a S. Vicente, bem sei que aquilo não é o Guggenheim, a Tate Modern ou o Grand Palais, onde há pouco o nosso Amadeo de Sousa-Cardoso marcou presença, nem eu sou o prof. Jorge Calado, mas mantenho-me au pair como dizem os franciús, até deambulo por lá nas minhas visitinhas online que nem sempre são à borliú.

Parece que o nosso Amadeo Sousa-Cardoso será finalmente promovido a Amadeo, como Matisse o foi a Matisse, Picasso a Picasso, Cézanne a Cézanne e Vincent a van Gogh, Monet, Gauguin, para citar aqueles que toda a gente conhece, Amadeo sim, Amadeo simplesmente, como Bosch, Bosch, Black e Decker Black + Decker, Junkers Junkers, Mazda Mazda, que nestas coisas o nome conta, conta contra tudo e de modo singular contra os preconceitos.

Mas ia eu meditando nos folhetos da Inês e da Beatriz e pensando que valeu a pena lê-los. Dizia eu para o Marco que isto anda tudo ligado e não vale a pena a Inês condenar-me ou forçar-me à participação como o folheto observava, pois há coisas em que acreditamos mas pelas quais jamais seremos capazes de mexer um dedo, um pé, ou dar um passo. Como raio vou eu habitante pobre de uma pobre cidade provinciana fazer frente à frota baleeira japonesa operando na Antárctida e chacinando baleias ? Ou como raio posso lutar contra os machos dinamarqueses que num festival anual de excessos e sangue se fazem homens desfazendo golfinhos ? Ou como iria eu enfrentar as petrolíferas que ameaçam os mares do norte cujas plataformas, mais de seiscentas, irão ser desmontadas, mas apenas quatrocentas e setenta delas nos próximos trinta anos ?

Mais de 600 ! Quer dizer, nem me atrevo a imaginar ou a ligar a menor importância às três ou quatro que querem erguer no Allgarve, quem me dera petróleo mais barato que já não ganho para a gasolina. Confesso estar fartinho de assinar petições online pelas baleias, pelos golfinhos, pelas girafas, pelo Mar do Norte, contra a destruição do ambiente, contra a Monsanto, contra o Japão, contra a Dinamarca, a Noruega a Finlândia a Suécia a Rússia a China a Austrália, pelo Tibete, pelo Butão, pelos linces, pelas abelhas, pelos magriços, pelo Zico, pelo Palito, e contra o Palito, contra o Vale e Azevedo o Joe Berardo o Salgado, o Jardim Gonçalves e o outro Jardim, o da Madeira, o Catroga e o Mexia, o Vara, o Guterres, o Barroso, o boca de favas, o piquinino, e nada se mexe, o mundo está condenado a ser consumido, condenado à avidez, à destruição, e ainda o Marco Miguel se preocupa com o património e as portas da igreja, mas é precisamente por isso mesmo que gosto dele estão vendo ?

Os folhetos da exposição estão bons, gostei de os ler, provocam, lembram, relembram, despoletam, criam, motivam, a Beatriz e a Inês deviam apostar nos folhetos, dedicar-se aos folhetos. Já vos disse que por falta de bateria não tirei fotos ? Ao menos valha-nos isso, mas deixo-vos aqui ideias, meditações, invocações, ilustrações, visões, impressões, opiniões, e à borla, que mais poderiam desejar ?

Ainda a propósito de William Turner, o tal que se mandava amarrar aos mastros dos navios durante as tempestades para não perder pitada do espectáculo da mãe natureza e poder depois replicá-la fielmente na tela, o vermelho dos seus céus tem que ver com o que o padre bracarense José Manuel Tedim nos conta sobre o ano de 1815, chuvoso e frio, com as vindimas a fazerem-se somente nos fins de Novembro e os frutos a amadurecerem em Janeiro seguinte. Hoje temos uma visão completa e sincrónica do mundo, nessa época porém muito reduzida, parcial e diacrónica, hoje sabemos ou conhecemos os efeitos mundiais, i.e. por todo o planeta, da eruptiva convulsão do Tambora em 1815, e sabemos pelo registo dos anais dos estaleiros que o “Temeraire” foi pintado em 1815, ano em que esse navio veleiro foi rebocado para ser desmantelado após uma vida gloriosa ao serviço da esquadra de Lorde Almirante Horatio Nelson tendo participado na célebre batalha de Trafalgar. Turner pintou o céu vermelho porque o Tambora espalhara por toda a atmosfera e estratosfera o seu pernicioso efeito, que o fiel pintor captou para a tela. Contrastando com o dito hoje sabemos o que se passa no mundo e desconhecemos o que fazem na nossa própria rua. 

Quanto à exposição/instalação em si, e já apreciei algumas cuja critica neste blogue se encontra*, bem, vamos lá, diria que não é de bom tom desmoralizar a juventude e que a Inês e a Beatriz são ainda novinhas e coiso e tal, acrescentarei ser a arte cousa de sua natureza altamente subjectiva, para acabar recomendando-lhes poisarem os olhos na Áurea, também ela frequentadora do curso de artes da UE, portanto uma ex-colega, e sobre quem já ficcionei neste blogue, é verdade que a Áurea às tantas acreditou saber mais que os mestres, ou o suficiente, mas a Áurea arriscou, arriscou aquilo que se diz couro e cabelo, singrou, trabalhou, vingou, porque era boa no que fazia, a Inês e a Beatriz que tentem o mesmo, porque não vale andar a brincar às exposiçõezinhas, alguém tem que dizer alguma vez às jovenzinhas que melhor que aquilo até a exposição de garrafas recicladas com que as criancinhas fazem as árvores de Natal que expõem na Praça do Geraldo na época indicada. Para terminar, se ainda não foi ver aquilo não vá, nem perca tempo, espere que elas cresçam, elas as artistas.

PS: Procurei o normal livro de presença dos visitantes para deixar a impressão da minha desilusão, mas tinha sido retirado ou nunca lá tinha estado, então pensei que a Beatriz e a Inês poderiam não ter culpa naquilo e ter sido simplesmente manobradas e levadas ao engano, aliciadas a preencher o verbo encher. Como diz um amigo meu bem informado e por dentro destas coisas, as miúdas podiam ter sido instadas a tal, e todo aquele estaminé poderia não ter outro propósito que fazer número, a fim de serem preenchidos os requisitos exigidos pelos concursos de acesso aos subsídios para as artes, para a cultura. Todavia conheço demasiado bem esse meu gárrulo amigo, demasiado bem para não lhe dar o devido desconto. Contudo não adianta muito perquiri-lo inquisitorialmente pois é um tipo com uma imaginação muito fértil e muito maus fígados. Recuso-me acreditar no que diz, mas a gente vê tanta coisa, e cada porcaria…

Quadro de Amadeo Sousa-Cardoso, chamariz da sua recente Expo em Paris.