Pois o que
sucedeu, muito antes ainda do nascimento desta fulcral e primordial Júlia se
tornar imprescindível à nossa história, é que passado o estado de graça do amor
e uma cabana, Manuel Mestre e Perfeita da Anunciação começaram, também eles,
olhando à sua volta e interrogando-se acerca disto e daquilo, e por que não
tinham eles direito a trabalho certo se eram tão jovens, fortes e
voluntariosos, prestáveis e disponíveis, ou por que não lhes chegava a jorna
para mais que meio pão, um casebre digno de um cão e, depois de contados e
recontados os tostões nem um deles, nem um tostãozinho ficava para uma
segurança do amanhã, um pecúlio para a menina, uma extravagância para uma saia,
um capote ou umas botas, já que não fora o relógio da igreja anichado frente à
sua porta, sua deles, nem as horas saberiam por falta de verba para uma
corrente quanto mais para uma geringonça daquelas, geringonça com a qual
Perfeita da Anunciação embirrava desde que uns dias atrás, pela matina, ouvira
nitidamente as badaladas do dito cujo assinalando as oito menos um quarto no
preciso momento em que, ao acercar-se da porta do moiral da Herdade dos
Safados, ele moiral a convidara a entrar e lho garantira, lho, o trabalho, sempre
que ela quisesse e o aceitasse, a ele moiral, isto é, trabalho sempre garantido
mas desde que ela consentisse em que ele, Fortunato Encarnação, lhe desse uma
badalada de vez em quando pois também ele era humano, um ser humano, um homem
de carne e osso, e não de ferro, ele mesmo reconhecia ali ante ela as suas
fraquezas, fraquezas dele, mormente ante ela Perfeita da Anunciação, sublinhou,
uma mulher linda e perfeita como nunca nem alguém lhe anunciara outra.
Por momentos
custou a Perfeita da Anunciação acreditar no que os seus ouvidos lhe garantiam
estar ouvindo, apanhada de surpresa que fora. Sabe a ciência que em situações
assim o nosso cérebro puxa à mente em milésimos de segundo um bilião de coisas,
de lembranças, de memórias, de hipóteses que possam explicar o que se está
ouvindo mas não acreditando, qual a reacção ou resposta adequada, e fá-lo tão
rapidamente que o melhor computador não foi ainda capaz de processar tão grande
quantidade de informação em menos tempo, pelo que Perfeita da Anunciação teve,
embora aos nossos olhos, caso lé tivéssemos estado e assistido, tal não tivesse
sido nem miraculosamente possível na fracção de segundo que um piscar de olhos
ocupa, mas foi., foi e teve ela tempo para depois de refeita de tal choque, ou
surpresa, ajuizar com algum humor, melhor dizer com alguma ironia quão melómano
este Fortunato lhe saíra se comparado com o primo Xico Estevão, um adepto
confesso das mocadas, entendida a palavra como acto de percussão, mocada,
pancada, batida, de longe muito mais forte e violenta que a badalada, esta mais
melódica que aquela, mais dispersa no ar, menos invasiva, intrusiva do pavilhão
auditivo e respectivo canal, logo menos ofensiva, ofensiva no sentido de
agressiva, ofensiva no sentido de um corte ou de um rasgão, uma concussão ou
laceração, portanto impossível de comparar com mocada, que deriva de moca,
sinónima de pancada e de batida, cousas que por certo não deixariam de
provocar, originar, golpear, ferir, fazer mossa, ainda que Perfeita da
Anunciação nunca tivesse sido vitima do seu rude primo Estevão que nós agora e
mercê desta exaustiva explicação quase pintámos como um troglodita armado de
clava e cabeludo, primo com quem aliás há uns anitos atrás namoriscara uns mesitos
sem contudo trilhar caminhos que a impedissem de chegar casta ao casamento.
Não que
pretendesse passar por santa ou por ingénua, nem uma coisa nem outra,
simplesmente sublinhar que sempre soubera aparar o jogo ao primo Xico e evitar
que as por ele chamadas ou designadas mocadas fossem aparadas, amparadas ou
amortecidas, de molde a não deixarem amolgadela, abalo, comoção, testemunho ou
cicatriz, a única defesa possível num mundo de malvadez e preconceitos que uma
jovem casadoira nunca deve descurar antes do casório, ma sim levar
convenientemente a peito.
E por falar em
peito, ante o olhar lúbrico e deslumbrado de Fortunato Encarnação de imediato
Perfeita da Anunciação buscou agarrando-as as pontas do xaile que sobre os
ombros levava despreocupadamente e o repuxou de aconchego a si e de modo a que
melhor a cobrisse, terminando este repentino cuidado e amparo com um cruzar de
braços sobre o móbil de tanta observação e no momento em causa, tanta celeuma,
tanta agitação, podendo nós concluir que ser generosa, se de peitos, pode ao
invés do vulgar e licitamente esperado, perder uma mulher.
Badaladas ou
mocadas, o certo é que Perfeita da Anunciação não ficou para ouvir a música em
que Fortunato intentava embalá-la e, ainda cinco segundos não tinham decorrido já ela se virava bruscamente. Ainda a
geringonça da torre sineira não acabara de bater a oitava badalada e Perfeita
da Anunciação ruborizada e atrapalhada deitara correndo em direcção a casa,
casa essa, ou esta, onde vive, onde agora escuta sempre com um misto de
indignação e revolta as badaladas que anteriormente tanto gosto lhe dava ouvir,
mas que se lhe tornaram insulto insuportável desde que deixara o desafortunado
do Fortunato de discurso por acabar e com o badalo nas mãos, sendo que estas
últimas palavras não passam de força de expressão minha pois o bom do Fortunato,
tal qual já acontecera com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, descontada
a compostura, que nunca haviam abandonado nem perdido ante Perfeita da
Anunciação, o único aspecto em que se viram desarmados foi na cobrança, já que
nem a um nem ao outro foi pago o preço da borrega que intentaram cobrar junto
da jovem, bela e roliça Perfeita da Anunciação. *
E se nas suas
divagações e interrogações Perfeita da Anunciação questionava o porquê das suas
amigas, ou pelo menos algumas delas serem preferidas e terem as jornadas
garantidas, enquanto outras eram preteridas e quase atiradas para a
mendicidade, a dependência, a pedincha e até a prostituição, estava a
lembrar-se de Luna Maria, e enquanto indagava para si mesma quantas, quais e
quem se teria já deitado a ouvir as badaladas que lhe haviam de assegurar o
trabalho no dia e dias seguintes, Manuel Mestre ponderava quanto do seu caracter
não estaria a prejudicá-lo, já que não era dado a bajulações, ao beija-mão, à
graxa, sendo que reflectia igualmente quanto o facto de falar muito e fazer demasiadas
perguntas o estaria a lesar, tido como era por ser um individuo revoltado.
O seu amigo
João M. Carrajola tinha-o mesmo uma vez acusado de subversivo, coisa sem pés
nem cabeça, acusação sem fundamento e que de todo nem fazia parte da sua
personalidade. Mas como dizem os sábios mais vale sê-lo que parecê-lo, Manuel
Mestre nem estava a ser, nem fazia por o parecer, e fosse como fosse o
resultado era o mesmo, uma maioria dos dias sem ser escolhido para completar a
jornada, o regresso a casa cabisbaixo, a vergonha sentida ao encarar Perfeita
da Anunciação que, calada e de olhos pequenos, mortiços, o olhava já sem nada
lhe perguntar, antes adivinhando o sofrimento abafado por ele e impossível de ser
escondido, interrogando-se nestas circunstâncias e cada vez que ele galgava o
umbral da porta quando, quando seria que a fome a obrigaria a deitar-se
escutando as malditas badaladas, e já nem diferença lhe faria fosse com o
senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão ou com o bom malvado e afortunado Fortunato
Encarnação.
Num tal
ambiente, que o casal não tivesse filhos acabava sendo uma felicidade, a vinda
de um rebento, menino ou menina, só agravaria todos os problemas vividos e não
vividos ainda mas de que o casalinho começara a aperceber-se, como ampliaria a dependência
de que ficariam prisioneiros, ou reféns, e bem podemos dizê-lo pois já o
pensámos, lá teria, ou não teria Perfeita da Anunciação que pagar o preço da
borrega se quisesse ter com que alimentar mais uma boca quando duas já eram difíceis
de contentar.
De tamanhas
atribulações ia escapando João Carrajola que, depois de pintar a manta bem
pintada e quanto quis e lhe aturaram, ou permitiram, logrou padrinhos que o tivessem
enfiado à pressão nos quadros da GNR uns escassos dias antes de completar
trinta e seis anos e antes de o limite de idade para a sua admissão ser
atingido. Penso que já aqui o disséra, o que não vos disse foi que
enquanto cabo do posto se distinguiu pelas sevicias proporcionadas
a quem tivesse o azar de lá cair, lugar onde o nosso cabo, ciente da sua hombridade
e sentido de justiça tentava moldar todos à sua imagem e semelhança, se preciso
fosse à força, o que bastas vezes lhe trouxe contrariedades quase chegadas a
vias de facto e, quando os confrontos com a população, que não escondia a sua
antipatia nem o seu desagrado por ele nem quão pouco era estimado atingiram proporções
desaconselháveis foi finalmente corrido dali.
Mas Deus
escreve torto por linhas direitas, e algures alguém houve que tomou por bons ofícios
o interesse e a dedicação do nosso amigo Carrajola pela manutenção da ordem e da
disciplina, da autoridade, a ponto de, na hora H o terem transferido para uma
cidade das Beiras onde o esperava o curso de sargentos, o que lhe valeu ter-se
furtado ao desagrado das gentes que se preparavam para lhe fazer a
folha, que seria o mesmo que fazer-lhe sentir o seu pesado sentimento de
repulsa e nojo. Foi muito depois disto, destes acontecimentos, deste tempo de
trevas que Júlia veria finalmente a luz, sim, esteve para se chamar Maria da
Luz, mas não calhou, o destino não quis, mas essa é outra história que adiante
vos contarei.
* Ver Galopim de Carvalho, in “O Preço da Borrega” Lisboa, Edições Âncora.