quarta-feira, 22 de março de 2017

423 - DUM SÓ GOLPE, COMO A UMA GALINHA *

  Eles

Cumprira a missão de que fora incumbido, não desiludira quem nele confiara, só isso poderia explicar o seu ar feliz, morreu nos meus braços e juro que nunca vira, nem voltei a ver, tão lindo morto, tão feliz morto. Morto mas feliz, e se eu vi gente morrer, e morta… Chorei claro, não sem antes ter gritado umas quantas ordens, mas chorei.

Naquele tempo, situação e lugar não havia nem houve nunca autópsias, nem o feliz morto a teve, mais a mais sabia-se do que tinha falecido, exaustão e desidratação. O soba ordenou a meia dúzia de homens que providenciassem o enterro e designou mais dois que levassem à família e aldeia do morto a triste nova e, descontada a azáfama causada pelas notícias por ele trazidas e que originaram um pandemónio, a vida continuou. 

Também ali havia que enterrar os mortos e cuidar dos vivos, não sendo banal a morte era contudo uma coisa normal, com a qual todos nascemos como nascemos com cor nos olhos, não se saber quando chegará só nos alivia e apimenta a vida, não nos exime dela, morte. Como disse não era banal morrer-se, sendo até muito chorada e lamentada qualquer morte, porém jamais temida. Como se pode temer algo que temos certo desde o primeiro minuto, desde o primeiro choro, desde o primeiro grito ?

Sessenta dos melhores de entre nós voluntariámo-nos para aquela missão, “Galinha do Mato” era uma missão arriscada mas imprescindível, essencial à nossa sobrevivência colectiva, do seu êxito dependeria o bem-estar futuro e a vida de todos na aldeia. Com o passar do tempo os recontros recrudesceram de intensidade deixando há muito de ser recontros para tomarem a regularidade e a dimensão de confrontos, urgia portanto acautelar, prever, assegurar, prevenir, garantir uma posição forte, e todos tinham ouvido bem, eram expectáveis entre dez a vinte por cento de baixas, feridos graves teriam que ser deixados ao seu próprio cuidado, Deus e o destino saberiam que fazer, seria uma operação temerária e, por certo implacavelmente perseguidos na retirada, todavia a vida tem destas coisas, força-nos a estas opções, a vida é feita de escolhas, escolhemos a segurança de todos, a segurança da aldeia, o preço poderá ser alto, só quero a meu lado quem esteja disposto a pagá-lo se necessário.

Não que por esses dias se morresse feliz, mas a morte era companheira diária e inseparável, estava presente em tudo que fazíamos, por isso nunca se pisava em falso, tudo era previsto, antecipado, estudado, planeado, e a estratégia decidida. Cada um sabia exactamente o que fazer e o que dele se pretendia, e todos conheciam o objectivo final e comum, todos sabiam que se arriscavam para o mesmo fim, o bem comum, o bem de todos, sabia-se por que se morria caso se morresse, e como tal ninguém dava um passo em falso, ninguém se desviava do plano traçado, a sorte de cada um dependia de todos e a de todos estava nas mãos de cada um.

A marcha fora penosa, no deserto caminhámos de noite descansando de dia, ao sexto dia parámos, teria que ser dado descanso ao corpo antes de lhe exigirmos o máximo, e limpar armas, rever planos, mandar batedores, esperá-los e ouvi-los, recapitular tudo de novo e de acordo com as novas por eles trazidas, sopesar as forças em presença, redefinir estratégias e tácticas, assinalar alvos e perigos prioritários, combinar uma saída de escape para fuga ou retirada, comer e beber q.b. e dormir antes do esforço final.

Toda a semana caminháramos a pé, numa operação daquele melindre veículos podiam ter-nos traído, são difíceis de esconder, são observados a longa distância e deixam rastos visíveis do ar, deixam fumos, óleos, sobretudo “gritam” mal sejam tocados por qualquer radar, por isso preferimos a marcha, mesmo carregados, e agora tratava-se também de limpar, olear e municiar as armas, ao sétimo dia esperáva-nos um trabalho de monta, o Senhor tinha descansado, mas cabia-nos fazer um bom trabalho nesse dia em que Ele decerto teria os olhos colocados em nós, como tal cada um recolheu-se em si mesmo e rezou as suas orações.
Vós

O regresso dos batedores constituiu uma surpresa de arromba, nada, não havia nada, nem um poste de pé, o próprio vento apagara todas as marcas, só a areia e a terra do chão, ainda empapadas em óleos assinalava o lugar, não fora isso e ninguém diria ter existido ali uma base do SAA, uma base perigosa, uma base ofensiva, uma base de onde partiam todas as surtidas que a nossa aldeia e todo o sul tinham sofrido no último ano. A desolação foi total, mas foi debaixo dela que o regresso se fez, por razões que todos compreenderão esta caminhada pareceu maior e mais cansativa.

Ao sétimo dia do regresso encontrávamo-nos a uma légua da aldeia quando amanheceu, e de imediato toda a gente pôde ver a dispersa mas alta coluna de fumo que se erguia para a sua banda, um batedor esclareceu, «aquilo ser fumo velho, ser fumo com dois dia, dois pa três pá», entreolhámo-nos e num ápice carregámos mochilas e tudo que havia a carregar, o pequeno-almoço ficaria para depois, por agora era meter uma bucha para enganar a fome e dar corda aos sapatos.
Eles

Quanto mais nos aproximávamos maior era a devastação visível, o panorama, a aldeia fora alvo de um ataque em peso na nossa ausência, da aldeia e do aquartelamento nada restava em pé, a brutalidade do ataque tinha apanhado todos completamente de surpresa, tinha sido uma autêntica chacina, pelo calibre dos cartuchos hélicanhões tinham participado, nem foram respeitados velhos nem mulheres, nem crianças e, quando conseguimos efectuar uma contagem minimamente credível calculámos duzentos e quarenta, havia corpos irreconhecíveis, partes de corpos, bocados aleatórios espalhados por toda a parte, era impossível contabiliza-los tal o modo como alguns ficaram, andei quase um mês passado da mioleira, inda assim faltariam cerca de vinte pessoas, teriam tido tempo de fugir ? E porque não regressaram já ?

A vida convive diariamente com a morte, é para a vida que devemos preparar-nos por ser ela o milagre, a morte está certa, pode surgir com mais pressa, ou mais vagar, estar demorada, mas é garantidamente a única certeza e garantia que a vida nos consente. Desperdiçar a vida e temer a morte é um absurdo. Meses atrás aquele negro que em meus braços recebera uma morte feliz salvara-nos a todos, durante dois dias correu para nos avisar, todos lhe ficámos devedores da vida, devido a si o acampamento fora desmontado e abandonado, e quando alguém viera da mata por nós tivera uma desilusão tão grande quão a nossa meia dúzia de dias atrás, encontrara a aldeia deserta, abandonada. Mas desta vez ninguém soubera, ninguém correra a avisar, a matança fora pérfida e excepcionalmente bem planeada. 

A vida é isto, quantas vezes me lembro que se estou vivo o devo a essa grande derrota e desilusão que sofri, eu e mais cinquenta e nove, viver é manter a morte numa corda bamba, a vida é um fluxo, um refluxo, poucos pensam nela mas deviam pensar, muitos pensam na morte quando precisamente esses deviam esquecê-la, descansar, ignorar o devir…

Naturalmente logo houve quem garantisse ter eu uma estrelinha, que já fora a uma guerra e saíra dela vivo, que haverá gente para quem a estrelinha não brilhe tanto como a minha. Gente há que me achará maluco, que achará andar eu ainda passado da mioleira, porém sou bastante certinho e confiável, quero dizer que podeis confiar em mim, que sou pessoa de palavra, normal, sem taras, ainda penso antes de agir, planeio as coisas, não avanço às cegas, prevejo, penso, medito e decido, só depois ajo, e não me afasto um milímetro do que planeei.

Ok, concedo não ser fácil, nem eu caso único, há bué de pessoas que o conseguem, ainda assim entendo que não devemos ser tão rígidos quanto a enfrentar a morte, sim, para alguns será mais fácil enfrentar um exército com uma arma nos braços, para outros puro terror. Como tudo na vida a coragem perante a morte aprende-se, como se aprende a calma, aprende-se e cultiva-se ao longo de uma vida, através da experiência, da sabedoria, da leitura, porque no que concerne à morte, a única coisa que te permitirá será regatear e impor-lhe digidade, a morte aceita-se ou não, nunca será uma questão do momento mas de atitude, sempre foi e será uma questão de atitude perante a vida. 

Carpe diem.

Nós

terça-feira, 21 de março de 2017

422- NOS BRAÇOS DE DAMIÃO COSME.................


O que é e que força tem um braço, ou um de ferro, digo um braço de ferro, ou um abraço, que tamanho, que alcance ? Fiquei matutando nisto depois da Moura, rindo, ter dito darem os meus braços quase  duas voltas em seu redor. O efeito desses abraços já o sei, ela faz-se pequenina, encolhe-se, de modo que o meu amplexo quase a submerge. Magrinha, pequenina, fazendo-se leve levezinha, sente-se segura na minha conchinha diz ela, e raro será não a levar nos braços quando tal acontece, depois, na cama larga, mete o nariz debaixo do meu sovaco ou no meu pescoço e, fechando os olhos esconde-se.

Ficara alegre quando a deixei ao sol na varanda, com a Cuca  lambendo-se junto aos vasos de Physalis, Uva Crisp, framboesas e morangueiros, as suas últimas coqueluches. Ela ao sol e eu fugindo dele, mudei-me para o lado direito da fila de bancos onde o sol não castigava inda que fosse cedo. A viagem até ao sul demoraria umas três horas, ou mais, tempo suficiente para ficar esturrado caso não me acautelasse. Ali ia eu embalado pelo doce balanço da carruagem, o comboio já não cantava pouca-terra- pouca-terra- pouca-terra, nem acusava o toque-toque do passar dos carris, pois não se ouvia, mas o balanço ficara, seria por isso que lhe chamavam pendular ? Fosse ou não por isso eu resistia ao balançar e à sonolência, olhos fechados, pernas esticadas, a mente agarrada à admiração da Moura pela extensão dos meus braços, pela extensão ou pelo aconchego, curioso é também o limite onde com ela chego, quase quase no limits.

Campos, vacas, ovelhas, cabras, um cão e um pastor, um pastor chamado David, reza a história ter dado uma coça num tal Golias, um grandalhão, uma coça é como quem diz, foi mais uma chapada psicológica, com mão, chegou-lhe as mãos à cara digo eu, porque segundo parece foi o braço que lhe valeu, o braço, um braço comprido, a funda e uma pedra com a qual segundo testemunhos lhe vazou um olho, seria no meio da testa, teria sido, seria o gigante um ciclope ? O certo é que o grandalhão tombou, grandes braços devia ter aquele David, e fortes.

Sim, que isto da força com que a pedra é arremessada depende muito dela, do seu peso, mais que da sua forma, do comprimento da funda e naturalmente do comprimento do braço, alavanca e fulcro, lembram-se ? A força que a funda aproveita é a mesma que afasta os planetas que o sol segura e Newton explicou, simplesmente física aplicada, física e pontaria, treino, a funda tornada uma simples extensão do braço, quão extenso ? Vinte, trinta metros, menos ? De qualquer modo mais que a lança do homem pré-histórico que teria no máximo dois metros, dois e meio, inda assim melhor que somente o braço, um metro o braço não ?

Melhor que a descoberta, aproveitamento ou invenção do fogo pelo homem de Neandertal foi a invenção do arco e da flecha, que alcance tem um braço armado com um arco, alcance útil, certeiro, que abata uma fera, um animal, uma ave, quinze metros ? Não seria mau não, talvez as próteses para o braço tenham começado por aí, pela lança, pela funda, pelo arco e flecha, depois a cana de pesca, a besta, a catapulta, a espada, menor distância mas mais prática, mais eficiente em determinados cenários, tão eficiente que os romanos a encurtaram, tornaram bastante curto o gládio, mais manobrável, mais mortífero, mais eficiente, mais apropriado, permitindo um melhor desempenho, incutindo maior despacho à empreitada.

Abraçada a mim como costuma abraçar-me nunca eu seria capaz de atingir a Moura com uma lança, muito menos com uma flecha, dificilmente com uma espada, mas com um gládio seria trigo limpo, era só puxar a culatra atrás, perdão o braço, recuar o cotovelo e apontar-lho, o gládio, avançá-lo e senti-lo entrando-lhe pelas entranhas, pelo ventre macio, mole, não tem barriga a Moura, Deus me perdoe, olha para o que me deu o sono, trespassar a Moura, não que nunca a tenha trespassado, mas noutros sonhos, noutras aventuras, adoro aquela miúda, magrinha, pequenina, levezinha.

É curioso, agora que penso nisto concluo que toda a nossa evolução mais não tem sido que um esforço enorme em estender o braço, em chegar mais longe, chegar onde os outros não cheguem, o longo braço da lei, o braço da morte, o braço do terrorismo, até do terrorismo de estado, a verdade é que quanto mais longo o braço mais gente morre, mais gente morta, mais e mais depressa, mais eficientemente, com maior rentabilidade, rendibilidade, no fundo trata-se de ser ou não ser competitivo e de fazer render o braço, o comprimento do braço.

Os meus braços são mais curtos mas chegam onde chegam os teus, sussurra-me por vezes a Moura encavalitada em mim, abraçada a mim, o peito pressionando-me as costas, aquecendo-me, mimando-me, depois na ponta do braço a mão percorrendo-me, agarrando-me e reinando comigo, pouca-terra- pouca-terra- pouca-terra, como se tivesse na mão um brinquedo, um comboio a vapor, até lhe sentir o xxxxxxsssssss, como se uma válvula libertando a pressão, expelindo vapor, soprando, apitando, ela rindo, eu doida, doidinha, sim, os braços dela chegam onde chegam os meus, os braços e as mãos, compridas, espalmadas, magras, de unhas cuidadas, umas vezes encarnadas outras vermelhas.

O braço da justiça, o braço da Moura, o braço do amor, o barco do amor, bem e depois, depois da alabarda seguiu-se a pólvora, o mosquete, o canhão, o fuzil, o rifle, a carabina, a metralhadora, o revólver, a pistola, e a tudo isto meteram rodas, ou asas, ou meteram tudo isto num barco, num submarino, Neil Armstrong (Nelo Braçoscompridos) o primeiro homem na lua, o comprido braço da ciência empunhando um V1, ou V2, e Titans, e Saturnos, o meu braço é maior que o teu, mas eu mijo mais longe, e eu mais alto, isto enquanto outros simplesmente se mijam, ou se fodem.

Coimbra, este comboio descendente já deve ir a meio da jornada, jornada ou caminhada, é relativo, tudo é relativo pois foi isso mesmo que disse Einstein, e dispensou os Armstrongs, mas não os V1 nem os V2, nem os Titans, nem os Saturnos, nem a balística, não lhes deu asas mas deu-lhes átomos, átomos e núcleos, neutrões, neutrinos, protões, positrões, tudo capaz de nos apertar os colhões em segundos, e agora  ? Agora ou sim ou sopas, dez marcas de tabaco em trinta segundos, quem diz marcas de tabaco diz de automóveis, ou de cervejas, estamos agarrados pelos tomates, não abraçados nem mimados, mas fodidos percebem ?

Entroncamento, dois terços do caminho feitos, percorridos, andados, entroncamento, cruzamento, púbis, umbigo, adoro beijá-la no ventre, liso, a pele macia, fofinha, cheirosinha, primavera, maçãs verdes, flores, lindos campos, sol, tulipas, lírios, tulipas não, tulipas são as que ela gosta ter à cabeceira numa jarra, numa floreira, à mão, para me oferecer quand je arrive, quando me abraça, e só larga ao despir-se, despe-se sempre com pressa, a correr, como se os dias, e os braços, tivessem fim…

Aproximamo-nos da Funcheira, o comboio soluça e pára num estertor, olho pela janela os campos reverberando, resplandecentes, a uma sombra dois cavalos, uma charrete, alguém segura um pano, um panejão onde se lê “Damião Cosme”, sou eu, esperam-me, óptimo, uma rodada de abraços e pomo-nos a caminho, chegarei a tempo de jantar. 


segunda-feira, 20 de março de 2017

421 - UM CAMPO DA COR DOS TEUS OLHOS ...


              UM CAMPO DA COR DOS TEUS OLHOS ...

Gostava levar-te onde o campo fosse da cor dos teus olhos,
e não houvesse besouros assustando-te,
nem vento sibilante despenteando-te.

Só nós dois, olhos nos olhos,
coração no coração,
pele com pele,
emoção.

Delírio entre os lírios do campo,
onde houvesse giestas e flores de colorida pétalas,
e voassem abelhas sobre o mel e as colmeias,
inebriando-me o teu olor florido de maçã.

E tu, uma flor aberta,
me oferecesses essa flor, um ramo, um ramalhete,
deixando-me alegre, girando como torniquete,
ébrio e feliz,
farto, satisfeito, peito pleno, plexo, amplexo.

Pele com pele,
peito com peito,
coração com coração,
coração no coração,
batida, batimento, vida,
minha vida,

tu …




Humberto Baião - Évora, segunda feira, 20-03-2017 - 15:17h

segunda-feira, 13 de março de 2017

420 - TRÊS DE AREIA E DOIS DE CAL .....................


Hoje fui surpreendido, bem não fui surpreendido, surpreenderam-me, e considero não só agradável essa surpresa, como terei que a considerar uma inaudita surpresa, daquelas que de todo não esperamos e que, embora nos deixem de cara à banda, nos deixam feliz o coração. Tanta felicidade porque hoje trouxe para casa um almoço que era uma trampa. Vamos por partes, primeiro a sopa, depois o segundo e por fim a sobremesa.

Quando eu e a Luisinha andamos mais atarefados, assoberbados ou incapacitados, por falta de tempo, de paciência seja o que for, socorremo-nos duma cantina e refeitório de funcionários públicos aqui próxima de casa. Hoje, umas lulas mal feitas como a merda e a saberem mal como o caraças acabaram por gerar uma conversa interessante entre nós, e coisa incrível, entre essas lulas intragáveis e um leite creme flutuando em canela houve tempo para a gente, ela ter-me-ia repreendido aqui e obrigado a usar o nós, ela, a Luisinha, mas ia eu dizendo que entre as duas coisas ainda houve tempo para nós nos descobrirmos, ou eu descobrir coisas novas e surpreendentes sobre ela depois de quarenta anos de casados.

- Pois é Bertinho, esta coisa da cozinha, de cozinhar, não é um dom que Deus tenha concedido a algumas, ou alguns, evidentemente há quem tenha mais jeito para a coisa, mais habilidade, mas isso acontece com electricistas, médicos, médicas, canalizadores, enfermeiras, etc., o problema é que muita gente esquece que cozinhar envolve compreender as ciências físico químicas que, pelo menos num aspecto básico todas estudámos na escola.

- Sim, eu também as estudei mas nunca as liguei à cozinha Luisinha.

- Pois é mas tu tinhas a Mocidade Portuguesa, e o dia do Lusito, e a Bufa, e eu tinha Lavoures e uma coisa que salvo erro se chamava Economia Doméstica a que muita gente nem ligava, não apreciava, calhei estar desperta, não tanto por a minha avó Joaquina ser uma excelsa cozinheira, como sabes, ou até a minha mãe que Deus tem, mas sobretudo por ter tido como mestra, naquele caso dizia-se mestra e não professora, uma mulher genial, ainda há-de aparecer perante mim um homem tão genial como essa mestra Dominica sabes ?

- E eu pá ?? E eu ? EU ????? Olha que tu também…

A mestra Dominica não ensinava, só falava, contava histórias, mas aquela mulher tinha o dom de ensinar, constava até não ser lá muito boa cozinheira, a verdade é que jamais a esqueci, a ela e às suas soluções, solutos, solventes, concentrados, reacções e reagentes, proporções, ocorrências, saturação, densidade, tempo e temperatura, física pura Bertinho, física e química filho, era termodinâmica, ou seja é física, é o estudo das causas e efeitos das mudanças que a temperatura potencia, ou antes propicia Bertinho, quer quanto à temperatura em si quer quanto à pressão e ao volume, por isso em cozinha nos socorremos de panelas de pressão, e se não tivermos cuidado com elas a pressão faz aumentar as coisas e sai tudo pelo fuinho de segurança, por esta válvulazinha, já me tens ajudado a limpar a porcaria dos azulejos da cozinha… Calor é energia querido, energia dinâmica, movimento, a termodinâmica essa energia não só coze, cozinha os alimentos, os transforma, como cria movimento, cozinha mas também fez andar as primeiras máquinas a vapor, aquela dona ou mestra Dominica era um must, eu ficava duas horas de boca aberta ouvindo-a, babando-me, e para ser justa só uns anos mais tarde a apreciei bem e fui capaz de reconhecer quanto de excepcional aquela mulher era.

- Essa não sabia eu Luisinha, nem fazia a mínima ideia, sabia que tinhas tido essas disciplinas claro, todas vocês tinham, mas que te tivessem impressionado tanto nunca teria acreditado. Mas essa do tempo e da temperatura alterarem sabor e textura ta boa, alteram a química, ta bem visto sim senhora, e o segredo no saber dosear a coisa, e mais um cadinho disto e daquilo, ter mão no acafrão...

- Não é uma questão de impressionar, foi antes uma questão de saber ensinar, a tal ponto que quando tive ciências já estava familiarizada e conhecia os termos, foi-me portanto mais fácil aprender ciências, ao mesmo tempo facilitou-me a compreensão da matéria de Economia Doméstica e do acto de cozinhar, acto velho como o homem, que só depois da descoberta do fogo e de começar a cozinhar ainda que toscamente os alimentos viu as calorias durarem mais tempo, o estômago despender menos esforço a moer tudo, moer e desfazer, e lá está a química a funcionar, os sucos solventes, os ácidos reagentes, a enterogastrona, a gastrina o suco pancreático, a bílis injectando química naquilo, a solução transformando-se em quimo, depois em quilo, o cérebro crescendo, a raça evoluindo, não sei já bem a ordem das coisas e alguns nomes me hão-de falhar aqui mas no essencial era isto, era e é isto que se passa, no estômago, nos intestinos, mas muito antes numa panela, numa caçarola, num tacho, numa frigideira, é alquimia, cozinhar é ciência e alquimia, claro que também um pouco de bom senso e intuição q.b. a própria expressão q.b. deriva de deitar ou acrescentar a quantidade e o reagente certos, ou a coisa dá porcaria… 

- Tenho que confessar que me surpreendes, caraças Luisinha, quarenta anos depois e quando pensava não seres novidade nenhuma para mim sais-me com uma aula de ciências físico químicas que me deixa de cara à banda, esta trampa já arrefeceu, antes assim, está intragável não está Luisinha ?

- Bertinho, até quando eu deito bicarbonato de sódio na panela para ajudar a cozer os grãos nada mais estou fazendo que antecipando trabalho que caberia salvo erro ao intestino, por isso quando tu comes os grãos irás ter menos trabalho a digeri-los, d’outro modo o bicarbonato de sódio só entraria em acção quando o “bolo” o quimo chegasse ao intestino, e assim quando fores à casa de banho graças a este meu truque de magia alquímica até fazes mais molinho amorinho eheheheh !  

- Para quem comeu um almoço de caca estás muito bem-disposta, bem, tu na verdade nem comeste, insiste na fruta querida, não podes passar em branco, logo lanchamos mais cedo querida.  

- Estou sim, bem-disposta e grata àquela mulher que já não recordava há muitos anos, estávamos em 73, em 73 ou 74 mas lembro bem que foi antes do 25 de Abril, o que não recordo bem foi se ainda na Escola de Santa Clara ou já na Preparatória da Rua Mendo Estevens, frente ao jardim do Bacalhau, e lembro que foi antes do 25 de Abril porque com o 25 de Abril ela desapareceu, desapareceu de Évora, levou sumiço, quero dizer levou o ano até ao fim, até Julho, depois nunca mais ninguém a viu por cá, a mim deixou-me saudades, saudades e uma dívida da qual somente passados anos tomei conhecimento, talvez porque se vivia no velho regime ela ao dar uma receita jamais chamava os bois pelos nomes, nunca nos deu uma receita de frango em tomate, as receitas dela eram sempre Frango à Anne Frank, Espargos à Catarina Eugénia, Cação à maneira de Carolina Beatriz Ângelo, Pezinhos à moda de Ana Castro Osório, Peixinhos da horta como os de D. Teresa Horta, Rolo de Carne de Emmeline Pankhurst, Polvo à Maud Watts, Os Mil Bolinhos de Millicent Fawcett ou Ensopado à maneira de Emily Wilding Davison, curiosamente nunca mas nunca deu a mais pequena explicação quanto a quem eram todas aquelas mulheres que tomámos naturalmente por excelsas cozinheiras de fama mundial.

- E afinal não eram ? Se não eram cozinheiras o que eram então ?

- Não imaginas Bertinho o choque que tive quando pelos meus quinze ou dezasseis anos ouvi ou li pela primeira vez o nome de Anne Frank, claro que quis logo saber tudo sobre a tal cozinheira da receita de frango, imaginas o meu espanto quando vi quem era Anne Frank, o espanto virou curiosidade, corri a saber quem eram as outras cozinheiras e nessa tarde chorei baba e ranho agarrada a uma enciclopédia nova que chegara à biblioteca, tantos anos depois D. Dominica acabara de me dar a sua última lição de culinária e nesse momento amei-a tanto quanto à minha mãe e à minha avó Joaquina.

Confesso que também eu fiquei impressionado com esta mulher, esta D. Dominica, professora Dominica de quem a Luisinha nem o apelido recorda, é bom, é reconfortante saber que mesmo nos tempos mais fumegantes do velho regime, fumegantes pois de cozinha e cozinhados tratamos, houve gente que não se rendeu, que não temeu, que foi exemplo quando ser exemplo era raro e exemplar, era sobretudo perigoso e exigia coragem inaudita, ao invés de agora que se calam, que comem e calam, que engolem e calam, que podiam gritar e se calam, todos, ou quase todos, no mínimo muitos, demasiados…  

Três de areia e dois de cal, não me ocorreu dar outro título a esta história em que o almoço servido parece ter sido confeccionado tal qual a massa dos mestres, dos trolhas, a balde, devem ter atirado para o caldeirão as lulas, cebolas e pimentão, uma mão cheia de sal, um saquinho de cravinho, um frasco de noz moscada, uma mão cheia de salsa e outra de coisa nenhuma, tudo ao molhe e fé em Deus, ignorando as reacções destes reagentes perigosíssimos, piores que nitroglicerina e a usar com parcimónia. Por isto, por cozinhar ser perigoso me lembrei de escrever e vos deixar de sobreaviso após esta conversa c’a Luisinha, e continuo a reiterar ter em boa verdade ficado estupefacto, 40 anos depois ainda aprendo coisas sobre ela, coisas que, juro-vos, não sabia nem imaginava, e olhem que até com a canela é preciso muito cuidado e cautela. Esta vida …  

segunda-feira, 6 de março de 2017

419 - MARIAZINHA BUSTLE ROSEBUD ...........



O meu amigo Nuno não, não é assim, raramente o vejo preocupado, pelo menos preocupado com o que dele pensem, só duas coisas lhe interessam e o fazem sair do sério ou nele entrar, o telemóvel GS5 e as bisnagas, as paletas, os aerossóis, as telas, muros, portões, paredes, haja pano e tintas e é vê-lo feliz. Ela não, ela é mais a imagem, a postura, o olor, os quebrantos ou requebros muito à séc. XIX e nem duvido que ainda um dia me apareça de bustle, aquela armação de arame, vime ou madeira sob os vestidos, vestidos que adora, como adora os chapéus e as cores em especial pela manhã !

- Mas que estão vocês para aí cochichando, ou estão a cascar em mim ?

Era a Mariazinha, essa amiga que também abraçou a arte, faz restauros, tem bom gosto e gosta muito de mim. A malta pensa que o restauro é só tintas e pincéis mas enganam-se, mas foi aí que ela lhes tomou o gosto e depois é ela quem faz tudo em casa, tudo no que aos restauros artísticos concerne, menos a parte da electricidade, da qual tem um medo que se pela, pela de ficar com os cabelos em pé, ou sem eles, ora está a coisa explicada, a coisa é a paixão dela, os restauros. Até os materiais e a sua natureza ela tem que conhecer, e quando foram e não foram usados, o que muitas vezes permite até identificar quem há quinhentos ou mil anos os usou, e quem pintou ou não pintou isto ou aquilo. Como eu a entendo, e entendo-a por já ter sentido ser a ignorância um empilhador que nos tira o fardo de cima, o saber ocupa lugar e pesa, mas infelizmente nos nossos dias há muito boa gente, demasiada gente que não alimenta vontadinha nenhuma de o carregar...
 
Ora tendo ela chegado mais tarde que todos à tertúlia da mesa do “Café Com Todos” lá lhe expliquei ao ouvido quem era o Silva, o que se tinha passado, há quantos anos, aquela coisa da espinha atravessada, e não fosse o suave perfume que dela emanava e ter-me-ia ficado certamente por ali mas assim, quem resiste, eu não e vai daí contei-lhe a história e a vida do Silva quase desde pequenino.

Há perfumes que nos entopem as narinas, que nos provocam até dificuldades de respiração e dos quais pelo menos eu tenho o cuidado de me afastar, deixam-nos de bom senso e de raciocínio embotados, mas outros há meus amigos que dá gosto inalar, leves, insinuantes, uma emanação que queremos absorver, sorver, um tapete mágico em que a gente flutua, flutua e esquece, as horas, o lugar, o motivo, a razão, o móbil, e ficamo-nos por ali, presos a não sei que inexplicáveis aromas, ou aroma, os sentidos tomados, os sentidos tolhidos, fascinados, deslumbrados, narinas dilatadas, o cogito inebriado, o tempo parado, a alma divagando no éter como as ondas hertzianas, sim essas, as da rádio, e nós embevecidos ante o mundo a nossos pés. Eu nunca soube ou não me lembro do significado de Rosebud, lembro o filme, vi-o até ao fim umas dez vezes, e agora perdi-me, falávamos de perfumes e da Mariazinha mas a que propósito já não sei de todo, ela tem destas coisas, tem classe, tem patine, tem, tem, tem. Mas de que falava eu, quem souber ou adivinhe que mo recorde. Para que tenham uma ideia desta Mariazinha é uma amiga de infância de Benedita, ali nada e criada e que eu conheci quando comecei a namorá-la, namorá-la à Luisinha pois Benedita era, como disse, a terra onde morámos em crianças. Está divorciada, teve um casamento que nunca funcionou bem, ele era como ela é, ele era e é, e ambos ainda são, verdadeiros casos disfuncionais, desgraças e todos os filhos acabaram sendo como eles, disfuncionais… 

Naquela casa nunca havia horários para nada, regras para nada, ele funcionava sem lhe dar cavaco, ela fazia o mesmo, uma vez no mesmo sábado apareceram com dois Audi A4 novos que tinham comprado, separadamente, porque cada um deles sabia por conversas ligeiras entre si que aquele era o carro preferido e ideal para a família... Outra vez ela, já depois de divorciada, foi ao stand da Rover tentar a substituição dos pneus a um outro carro que então tinha, um carro já com três anos, portanto velho, velhíssimo, acabou vindo de lá com um carrão novo que custou a pagar mas lamentava-se de não saber como a coisa tinha acontecido… Era tudo assim. Sendo professora imagino o respeito, o descanso e a concentração dos estudantes, se vos ponho a par destes pormenores é tão só para termos uma ideia do género da madame Bovary que encarna esta Mariazinha Bustle Rosebud ou antes como esta encarna aquela…

 Mariazinha era louquinha e fisgou-me o coração muito cedo, numa tarde de verão em que, atrás de um molhe de estevas no quintal da “Padaria Zambujal” onde brincávamos me puxou pelos suspensórios e, como quem levava as coisas a brincando se virou para mim e me disse:

- Bertinho se um dia formos para a cama tratas-me por meu capitão ?

- Claro que sim capitão Maria, mas olhe meu capitão ou fazemos da cama um barco ou vamos precisar dum barco a sério ou no mínimo dum bom mastro !

- Eu sei meu marujinho eu sei, e quero um mastro bem em pé, pois deitado não vale de nada não serve para nada, e eu quero sentir as velas bem enfunadas Bertinho. Gosto de navegar devagarinho querido.

-Tu mandas Maria, és o capitão, perdão o senhor manda é o capitão, sabes capitoa, bem sei que não és preta mas gosto desse teu cabelo, dessa carapinha desgrenhada, sabe Deus por causa de quê minha capitã.

Há coisas no nosso subconsciente de que por vezes nem nos apercebemos, gaiatos já nos adorávamos, depois crescemos, eu segui Veterinária e ela Arte & História, quem sabe se influenciados por brincarmos às vaquinhas e aos iogurtes, aos pais e às mães, aos médicos e enfermeiras, porém tantas vezes brincámos à Florbela Espanca, e ao Túlio Espanca, mas nenhum de nós seguiu literatura, ou poesia, seguiu ela a especialidade de restauro, quem sabe se impressionada pelos frescos decadentes das igrejas onde nos acoitávamos, quem nos explica o subconsciente, quem além de Freud, que eu saiba ninguém cabalmente, apenas sabemos haver para tudo e todos razões que a razão desconhece.