sábado, 18 de novembro de 2017

473 - LEONOR AO CONTRÁRIO DO IMAGINÁRIO

                                    Obra de  Mairek Haiduk

Ao contrário do que muito boa gente pensa sou ferozmente apartidário, inda que simpatizante, sim, da razão e de vocábulos compostos, isto é, de sentido não único, aglutinados, junções de palavrões vários, que, dependendo da intenção ou do contexto em que se inserem ou os proferimos são ou podem considerar-se ou julgar-se dúplices, dúbios, metamorfoseados em figuras de estilo, eufemismos, metáforas, prazer que me ficou desde quando, sentado nos bancos corridos do antigo Farggi, hoje New Concept Coffee & Shop e jogando com a minha netinha Leonor à colagem de palavras como a Sandra e o José da Fonseca faziam e fazem com papel e outros materiais arrebanhados para as suas esculturas, construções ou instalações.

             Isto porque ela Leonor se prendera de amores pela obra de Marek Haiduk, cujos trabalhos versando a infância mui a tinham sensibilizado e, enquanto comíamos um mil-folhas, fugindo das coca-colas, jogando ao esconder com um velho abre-latas que em tempos recuados me oferecera um amigo ferroviário, agora reformado e engordando a pensão com uns biscates no sector rodoviário onde, num ferro velho da city, se transformara e reciclara em sucateiro, para bem-estar do mundo inteiro.

Eu, não querendo ser malcriado e fugindo ao ita não ita ita não há quem está livre livre está que ela teimava impingir-me, tratava-a por senhorita ita ita, e mostrando-lhe o horizonte, procurava distraí-la com essa linha divisória, ora recta ora inclinada, ora partida ou horizontal, raramente vertical e na maioria quebrada. 

               Assim abordámos uma manhã a Cruz-Quebrada, olhando o mar esverdeado, azul-marinho ou turquesa, do alto da falésia em meia-lua em cuja esplanada eu, qual mestre-escola, emborcava ou bebia uma sangria num instante, num pisca-pisca, diria ela, como noutras ocasiões acontecia em que, por um copo de vidro pernalta eu bebia a aguardente benfazeja que o frio da manhã me punha em falta depois de cumprida a lida na liça ou horta onde colheria as couve-flor que, osdespois, apuradas e depuradas em boiões plenos de vinagre, esse vinho acre do qual me socorro p'ra fazer os próprios pickles os tais que, além de me ocuparem salutarmente o tempo e a mente, me alimentam o amor próprio e apimentam a couve-flor com atum Bom-Petisco com que adoro regalar-me. 
Obra de  Mairek Haiduk

Posteriormente percorremos a pé o planalto sem construções frente ao café onde beija-flores esvoaçam em redor de meia dúzia de vasos que alguma alma piedosa colocou numa armação em tripé, donde arrancamos pelo pé uma qualquer linda flor antes de regressarmos ao torpor do banco corrido do café, visto ser até ali que o nosso raio de acção nos permite ir, ir em busca dos radiosos raios de sol expandidos pela luz da manhã nas mil cores do arco-íris, um passeiozito enganador para depois lhe dizer meu amor é hora de ires, está na hora de partires, e, inerentemente de terminar o papel de ama-seca, mestre-escola ou baby-sitter. Ela vive a menos de cem metros de mim mas nem sempre almoçamos juntos, digamos que cinquenta em cem será um número injusto e, quando o Justo passa na sua nova motoreta eléctrica sabemos ser meio-dia certo, exacto, pois se podem acertar por ele todos os relógios.

O tipógrafo que lida com a máquina linotipo ajustando-lhe os ritmos e os humores, o Canelas, passa apressado, como sempre, vemo-lo quase correndo do outro lado da vedação de vegetação quando ele, tropeçando numa qualquer coisa, ao invés de cair sai correndo ainda mais depressa do que viera até ali e foi aqui que nos rimos a valer, demos duas gargalhadas, apontámos ao destino e regressámos do safari que dia a dia ou dia sim, dia não fazemos ali, ao planalto florido e que nos deixa estender a visão entre os prédios da urbanização, do bairro, distendendo as pernas pelos atalhos cavados nas ervas conducentes ao tal decente tripé atraindo os beija-flores, com suas flores mais coloridas que coloridos são os namoros e as paixões de apaixonados embriagados e de aldrabões efeminados que, como nós, se passeiam por estes campos ou sertões imaginários deixados em herança precisamente a esse, adivinharam, ao nosso amigo Imaginário.

Bom almoço :)

Obra de  Mairek Haiduk


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

472 - TER OU NÃO TER PEITO, OU MAMAS .........


Naquela época a estrada vinda de Beja ou de Reguengos não tinha a diversidade de variantes onde desembocar que hoje lhe conhecemos, pelo que, quando delicadamente travei para, cordialmente lhes ceder a passagem estava mesmo sendo gentil e prescindindo do meu direito de passagem pois apresentava-me pela direita. Mais que o código fiz valer a deferência. 

Correria o ano de 80 ou 81 do século passado, no máximo 82, a manhã radiosa, eu abrira o tejadilho da Dyane novinha em folha e, mesmo não querendo, juro ter tentado a todo o custo porém ao vê-los, o rosto, sem que o conseguisse dominar não evitou o largo sorriso que me aflorou aos lábios, provocando neles uma notória e visível atrapalhação, por não conseguido impedir-me tanta satisfação ao vê-los, mau grado todo o esforço posto nesse sentido a Fernanda corou que nem um pimentão não tendo eu podido deixar de pensar no por quê de tanto embaraço.

Apesar dos nossos olhos terem embatido uns nos outros contornaram na minha frente e sem me olharem a rotunda onde lhes cedera a passagem, não me cumprimentando sequer, fingindo nem me verem, sem que me apercebesse quanto aquele acaso me viria a custar, me viria a sair caro. No Num movimento repentino guinaram a meio da rotunda saindo dali como se alguém lhes tivesse pisado os calos, ou levassem fogo no rabo, eu, uma vez mais fiquei sem perceber tanta pressa, tanta precipitação, tanto mais que tinha o professor Nuno por pessoa calma e moderada, contida, comedida, circunspecto, prudente.

De nada me serviriam doravante os conhecimentos adquiridos ou tidos, lembro aqui ser eu uma dezena de anos mais velho que a média de idades da turma, das colegas, delas e deles, ser mais experiente, mais vivido, mais viajado. Aquele ocasional encontro à rotunda da Repsol ditara a minha sorte mui antes de eu mesmo o saber. E por falar em saber, saber onde ficava o estreito de Dardanelos, o Bósforo, o Mar de Mármara ou o Mar Negro e qual a sua importância histórico económica e até estratégica foi coisa que nada me deu a ganhar, inda que fosse dos que mais précuras respondidas contabilizasse no jogo do Quem Quer Ser Milionário, bem antes pelo contrário, facto de que somente mais tarde me viria a aperceber.

O professor Nuno leccionava-nos duas ou três cadeiras, História Económica do Ocidente, História Económica Social e Politica e Geografia Histórico Económica isto se a memória me não falha e se falhar não andarei muito longe da verdade, já lá vão uns bons trinta e tal anos.

Verdade verdade é que aquela estrada era linda antes do arranjo levado há uma meia dúzia de anos e do corte do arvoredo, uma recta alcatroada, ladeada de eucaliptos mal percorridos dois ou três quilómetros, um pulmão mentolado encostado à cidade, ar fresco, puro, caminhos rurais de terra batida atravessando os campos e pela qual poderíamos imergir numa encantada floresta de eucaliptos, tendo sido por mor deste encantamento que comecei a perceber o prof Nuno, o seu embaraço, a sua confusão, a sua aflição, a sua embirração para comigo, as minhas notas descendo como nunca esperara quando eu nem namorava, era tudo tempo ganho, já era casado e trabalhava, nem me distraía por aí além.

Eu estava sendo entalado como se o tivesse apanhado com as calças na não, não tinha, mas estava começando a ver o filme todo, a cena, e entendendo melhor a sua aversão por mim cujos segredos não lhe adivinhara quando do “embate” na rotunda mas agora eram traduzidos pelo meus olhos espantados.

De um teste que me correra excepcionalmente bem saí respondendo-lhe que nem que as perguntas tivessem sido o dobro, que me correra bem, e que melhor ainda teria sido caso pudéssemos ter respondido a todas elas uma vez que a opção era de cinco em dez à nossa escolha. Galgámos duas ou três semanas em que nem nos vimos e um dia, descendo eu a escadaria em caracol para o bar vinha ele subindo-as, ao ver-me nem aguardou que eu abrisse a boca e disparou:

- Então Baião, tão bem que lhe correra o teste e tira-me uma nota daquelas ?

- Stor, não leve a mal se abandonar alguma ou todas as suas cadeiras, para o trabalho que me dão não estou vendo resultados correspondentes, talvez por ser trabalhador estudante não ande a dar o rendimento que a mim mesmo exijo por isso, se tal vier a acontecer não estranhe nem me leve  a mal, ficarão para fazer mais tarde, nas calmas.

O doutor Nuno não se deu por perdido nem achado, virando-se para mim arengou durante mais de meia hora para me dizer o que posso resumir nisto:

- Baião, nunca dou mais que 10 a um trabalhador estudante, se você agora teve 8 no próximo teste levará com um 12. Oito com doze dará média de dez, irá com essa média a exame, onde lhe darei naturalmente outro 10. Fique bem.

Nunca um qualquer outro filho da puta tinha sido tão claro para mim, o meu destino estava traçado, verdade que nunca mais estudei a sério nas cadeiras dele, verdade que tudo e sempre foi como ele, qual oráculo, afirmara ou prometera. Para ele era uma questão de rectidão, ser recto, isso, recto.

Eu não tinha boas mamas, nem grandes nem pequenas, nem coxas que cobiçasse, comi e calei-me, ele comeu e fartou-se, acabou ministro dum qualquer governo que já nem lembro, a Fernanda directora de uma qualquer escola alentejana, terminara o curso com média de 18 ou 19, outras que por lá andaram com cotas de 36 umas, maiores outras e mais pequenas bem poucas, rabo alçado e pernas de morrer deixaram-me pensando quanta sabedoria caberia naqueles cus, perdão cérebros.

Eu nunca gostara dele, e então desde aí é normal, natural, nunca deixei de gostar de mim, cada vez mais, isso é o principal. 


quarta-feira, 1 de novembro de 2017

471 - ORA PONHA AQUI O SEU PÉZINHO ..............


  Há muitos anos já ensinou-me mestre Sena,* saudoso professor de economia que a morte levou de imprevisto e demasiado cedo para tanto que ainda teria para nos dar, nos porque era eu e a Luisinha e mais uma sala cheia de maltinha, mas ensinou-me ia eu dizendo, não ser a economia coisa de coca-bichinhos, sendo até uma bola fácil de rebolar, mais fácil arrastar esta que o escaravelho a sua, sua dele, dado cientificamente confirmado visto depender ou basear-se a economia na lei dos grandes números, coisa facinha de manusear e entender. 

 Bom bicho, digo bom tipo aquele José Sena, quando se punha a falar nunca mais se calava dando imenso gosto ouvi-lo. Tornava tudo fácil, pelo menos fácil de entender, de compreender, assimilar, e sobre as contas nacionais o deve e haver do estado, a despesa e a receita, eu diria agora o orçamento de estado, sobre o qual diria ele não ser mais do que uma conta de somar e subtrair, mal indo as coisas caso dessem em aritmética de sumir…

Sumiço levou ele antes de tempo coitado, ainda foi convidado a cumprir o seu dever cívico como presidente da Câmara Municipal de Estremoz mas foi sol de pouca dura, morreu no exercício do cargo, Deus é mais exigente que a contabilidade do estado, tendo-o requisitado quem sabe se para elaborar alguma auditoria às nuvens do céu ou a anjos e arcanjos.

Passados tantos anos parece-me ainda estar a ouvi-lo, eu e ele de barba rala, ele de sorriso sempre pendurado nas orelhas e eu com as ditas sempre espetadas a fim de não perder pitada do que dissesse. Afirmava ele e estou a citá-lo de memória, haver sempre em qualquer economia de um qualquer país minimamente organizado, sectores ou áreas por natureza geradoras de permanente prejuízo, afirmava-o referindo-se à justiça, ao ensino, à saúde, à segurança, áreas criadas para garantirem bem-estar e não para darem lucro, o que não significava que não o pudessem dar, daí serem por natureza permanentemente deficitárias.

Mas quem quereria abrir mão das vantagens que esses prejuízos e essas áreas nos traziam ? Ninguém quereria claro, embora nessa altura nenhum de nós adivinhasse quão caras nos viriam a ficar no futuro, futuro que é o hoje. Mas… acrescentava. Para além dessas áreas outros sectores da economia há igual e naturalmente deficitários e, dando uma volta sobre si mesmo rodopiando sobre o tacão de um dos sapatos adiantava:

- Os transportes, a administração pública, a cultura por exemplo, já não vivemos nos tempos gloriosos da revolução industrial em que o lumpemproletariado vivia lado a lado com as usinas, as machines, os empregos, hoje há necessidade de deslocar em movimentos pendulares dos dormitórios para as cidades e vice-versa milhares ou milhões de trabalhadores e se os bilhetes reflectissem o custo real do serviço de transporte ninguém os compraria, portanto a sociedade subsidia o sector dos transportes de molde a tornar suportável e acessível o seu custo fomentado a sua utilização, ela também e por sua vez vantajosa em termos económicos, sociais e ambientais, o mesmo acontecendo com a cultura ou a administração pública.

Naturalmente há que idealizar e projectar estradas, conceber e produzir ou adquirir material rolante, idem para portos e embarcações, bibliotecas, teatros e anfiteatros, palácios da justiça, edifícios camarários, hospitais, escolas, aeroportos, cais, pontes, tuneis, salas de chuto e complexos desportivos, polivalentes para arraiais, carruagens, autocarros, kimboios, portanto imensos sectores e áreas deficitárias, buracos e buracos para encher e preencher, e com tanto buraco onde ir buscar dinheiro, o muito dinheiro necessário para os alimentar ?

Mais um sorriso malandro, mais uma voltinha sobre o tacão do sapato, desta vez sobre o outro e em sentido contrário ao da volta anterior, para desfazer tonturas, rebentar nós, e naturalmente desatar o karma e desenlear o mantra, ficando de sorriso pendurado até algum de nós aventar uma resposta, uma hipótese ou uma asneira.
 
Informalmente a resposta certa era encontrada depois de uma algaraviada entre todos, vulgarmente achada após um longo intervalo e uma vez esvaziadas as bexigas e sorvidos os cigarros. Essas aulas eram animadas e participadas como nenhumas outras, e a resposta para um milhão era nem mais nem menos que a sugerida por uma balança cujo fiel era um porquinho desses que aparecem aleatoriamente como mealheiros no qual ele Sena, ele senhor professor espetava ou equilibrava um facalhão que para o efeito traria na pasta.

         Confuso ? Nem por isso, a explicação era simples, a colecta dos impostos (mealheiro/poupança) teria que chegar para quitar as despesas, não chegando havia que recorrer a uma de duas soluções, ou ambas em simultâneo, metia-se a faca ao pescoço do contribuinte e sugavam-se-lhes mais impostos, por isso a faca na ranhura do mealheiro, ou sacavam-se os lucros às empresas do estado. Portanto na balança do deve e haver, o que havia num prato teria que ser suficiente para equilibrar o prato contrário.

O sector empresarial do estado era e é, na maior parte do mundo que não nesta terra e neste momento, contemplado com monopólios altamente lucrativos como a electricidade, as comunicações, os combustíveis, a distribuição postal, e muitos muitos outros cuja importância estratégica aconselhava a sua posse nas mãos do estado, não só por serem estratégicos, como a energia por exemplo, mas por serem demasiado importantes para ficarem ao sabor das leis do mercado, leis implacáveis para com os de menos posses, o estado cuidava de que fossem lucrativas sem contudo nos esmifrarem sem qualquer arroubo de sentimentalismo serôdio. O dinheiro ganho por elas, os seus lucros, iriam colmatar os buracos na justiça, na saúde, no ensino, nos transportes etc etc etc…

Ora sucede que paulatinamente temo-nos desfeito de dedos e de anéis, isto é, já não temos essas empresas, aliás já quase não há empresas nas mãos do estado, pelo que quando haja necessidade de tapar buracos ou reforçar meios a solução é apertar o pescoço ao contribuinte. Nós ganimos, os chineses e muitos outros rejubilam com os lucros, culpa nossa, ninguém nos mandou vender as galinhas dos ovos de ouro. Hoje não temos EDP, nem REN, nem CTT, nem Telecom, nem estaleiros, nem SETENAVE nem LISNAVE, nem portos nem ANA nem aeroportos, nem OGMA, nem TAP, nem seguradoras nem bancos, a bem dizer nem temos as estradas do país, elas também entregues às celebérrimas PPP…

Que esperar do futuro ? Não sei, estamos a morrer mais e a nascer menos, emigramos, definhamos, não temos futuro nem segurança, um descuido e o emprego vai-se, e vai-se a casa, não há quem nos defenda, são só bluffs e faz de conta, e fico eu imaginando que se Puigdemont corre o risco de cumprir 30 anos pela brincadeira ou aventura catalã, quantos anos deviam apanhar os nossos políticos por andarem há 40 anos a gozar com este povo e a vender a pataco o país ? 

E termino deixando um agradecimento saudoso e sincero ao prof. José do Nascimento Dias Sena, homem animado dum modo de ensinar peculiar, ensinava brincando, e todos sabemos ser a brincar que se dizem as verdades e ter sido a brincar que o macaco foi ao... Pois foi com o prof. José Sena que muito aprendi, e aprendemos coisas que nem o Passos Coelho nem a Maria Luís Albuquerque nem o A. Costa sonham, ou nem sabem ou parecem nem saber, nem esses nem tantos outros antes deles, decididamente estamos entregues aos bichos…  

Amigos, façam as malas ou matem-se… Não vejo outro caminho…



* José do Nascimento Dias Sena (1953-1994), professor emérito da Universidade de Évora e último presidente da Câmara Municipal de Estremoz, falecido durante o exercício do cargo.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

470 - RETRATO DE RICARDINA QUANDO JOVEM



Não posso deixar de lembrá-la cada vez que sinto no côncavo da mão aquela meia bola cheia, nem leve nem pesada, sem a sofisticada leveza do Molotof ou das Farófias nem a densa gravidade duma fatia de Salame de Chocolate ou dum Bolo de Bolacha.

É assim todas as manhãs ao pequeno-almoço, onde, sem estar, Ricardina está presente todos os dias na minha mesa, repartindo as minhas memórias enquanto eu divido com a Luisinha a manteiga p’las fatias e vaso o chá preto duma antiquíssima chaleira de esmalte chinês, cujo apito adoro ouvir e não raro serve de móbil para dar por terminada qualquer conversa de circunstância com a Maryzinha.

O cheiro das torradas está no ar, como está o da canela na compota de abóbora, ou o da madeira na sala quando crepita na lareira, mas é o cheiro de Ricardina, mais intuído que sentido a tolher-me o raciocínio mal sinto, como vos disse, o côncavo da mão preenchido.

Nem é uma questão de um qualquer fenómeno fenomenal nem de vazio existencial, enfim, já lá vão umas décadas, cada um de nós tomou o seu rumo e refez a vida, sem traumas, sem taras, ela foi guardar rebanhos, ou aprender a bordar, já nem me recordo, e eu meti-me a aprendiz de pintor de automóveis, de quadros, de cenas ou de paredes, não interessa.

O pequeno-almoço transforma-se como por artes mágicas num momento de análise do passado, uma pausa de rememoração e em simultâneo de introspecção, pois a relembro e me recordo tentando analisar-me e recapitular onde falhei, onde falhámos, enquanto sem dar por isso pego na meia bola de queijo e, sopesando-a com uma mão, abro com a outra a partir de duas patilhas, duas abas deixadas para o efeito na colagem a vácuo e à pressão, a folha superior dessa embalagem, levantando-a e olhando com apetite a massa cremosa do queijo com a mesma apetência ou concupiscência com que abria o decote da Ricardina e, maravilhado, lhe olhava com deleite as bolas brancas dos seios.

  Vaso o chá da chaleira com o mesmo cuidado e lentidão com que a ajudava a posicionar-se de encosto à cabeceira da cama, tanto cuidado ou mais que aquele que inda hoje tenho com o pão, o qual me obriga a persignar-me arrependido se calha deixá-lo cair, distraído, e que num repente levanto e beijo. Assim me ensinaram e assim procedo, faço-o já irreflectidamente, num acto intuitivo, quase inato, um reflexo condicionado digamos, e muito longe da minha velha, maturada, manhosa e premeditada atitude tratando-se da Ricardina.

O respeitinho é muito bonito. Bonitinho.

Coisas de rapaz, tempos que já lá vão, já lá vão e não voltarão mais como diz uma célebre canção. Pego nas abas da embalagem e abro-a devagar, abre facilmente e, mais uma vez lembro a Ricardina e os seus fechos de velcro com abertura fácil, sempre soube quão eu embirrava com colchetes e, mal apareceu essa moderna e maravilhosa invenção foi das primeiras a adoptá-la, nos ténis, nos blusões, nas blusas, nos sutiãs. Mas continuando, abro a embalagem facilmente, tão facilmente quão abria as dádivas que Ricardina me prodigalizava, primícias dizia-me ela, frutos proibidos respondia-lhe eu, antevendo e ante saboreando as dentadinhas. 

Com a ajuda da impressão digital do polegar levantava a ponta da casca de cera vermelha da fatia cortada ao queijo removendo-a facilmente, a fim de a meter entre duas fatias de pão da “Padaria Primavera” das Alcáçovas, diariamente trazido do “New Concept Coffee Shop” com a pontualíssima abnegação dum frade cartuxo cujo convento dali se avista. Faço-o com o mesmo dedo que lhe passava nos lábios molhados antes de os beijar, antes das dentadinhas, antes de a trincar acompanhada duma chávena enorme de chá preto, quentíssimo que é como o aprecio, ele também comprado em saquetas de abertura fácil. O que complica irrita-me, daí adorar o velcro e abominar os colchetes. *

Ao longo dos anos tentei outras, gosto de experimentar e de comparar, algumas senão a maioria das vezes todas me pareceram iguais acabando por me manter fiel às mesmas marcas, cliente satisfeito é cliente que volta, e eu voltei, voltei sempre, e sendo o sabor idêntico, ou o mesmo, optei contudo pela abertura fácil, por ser mais prático, por ser mais rápida a satisfação da gulodice, da gula, do prazer ou do que quiserem chamar-lhe, por isso voltei sempre ao “Terra Nostra”, aos Açores, sim, estive lá uma vez com a Ricardina, voltei lá anos, ou décadas mais tarde com a Luisinha, a vida é assim, as lembranças são como as cerejas e como as conversas, umas atrás das outras.

Perdi o rasto à Ricardina, coloquei de parte o queijo Agros, o Limiano e as bolas do Pingo Doce, pela dificuldades na abertura, impossíveis de abrir, irritantes, exasperantes, a casca de cera vermelha inamovível, fininha, fui sempre incapaz de a destacar das bolas cremes desses queijos, um problema irresolúvel, premente, urgente, e que só tinha sentido em toda a minha vida quando ainda novo callhou deparar-me e debater-me  com um colchete, nunca tive jeito ou fui capaz de abrir um só colchete, daí a minha predilecção pelo fácil, pela abertura fácil, curiosamente não me cativaram as aberturas fáceis da Ricardina, acabei casado com a Luisinha que não tinha aberturas fáceis, não usava velcros, nunca me facilitou a vida e se manteve sempre fechadinha e caladinha.

A vida tem mistérios que nunca compreenderemos, não entenderemos ou não aceitaremos. A outros sucumbiremos com a mesma facilidade com que abrimos a carteira e puxamos do cartão de crédito. A vida fácil, o facilitismo, o sectarismo, o amiguismo, o laxismo e o nacional porreirismo estão a complicar-nos a vidinha até ao infinito… 


sexta-feira, 13 de outubro de 2017

469 - BARREIRA INVISÍVEL - THIN RED LINE ...


Albino Tavares da ANPC

Não casual mas propositadamente este texto leva o nome de um filme que ao contrário do que vem sendo habitual deu posteriormente e por sua vez origem a um livro homónimo. Curioso é o facto de que, quer vejamos o filme quer tenhamos lido o livro, qualquer deles demasiado extenso, poderemos não dar à primeira vista com o significado moral da obra, tão longa, permeável e inconsequente nos parece por vezes ser o fio invisível que nela nos conduz do início ao final, como se caminhássemos passo a passo sobre instáveis dunas ou velozmente numa montanha russa. Assim me fizeram sentir as rápidas sequências da fita correndo lentamente, ou as suas lentas cenas passando rapidamente. A leitura de que depois me socorri não viria a mostrar-se mais visível mas deu-me a vantagem de poder rebobinar as páginas, voltar atras e repetidamente reler as partes cruciais até completamente as esclarecer.

Todavia que a velocidade da fita ou da vida não nos tire nunca o discernimento, pois essa linha invisível estará sempre lá, está sempre presente e toda a obra, como toda a vida, todas as vidas giram em torno de quem a pisa, a ultrapassa ou mui singelamente e quantas vezes com sacrifício pessoal a respeita. Sim, no caso presente trata-se de um filme, ou de um livro de guerra, porém daí só releva ser sobretudo em situações limite que a tentação se nos coloca de forma mais exigente ou tentadora, pondo-nos à prova no limite, sabido ser em situações extremas que melhor se pode testar a fibra de um caracter, de uma personalidade, de uma qualquer pessoa.


Dispomos actualmente de uma panóplia de instrumentos científicos que, desde o tempo à geologia d terra, à medicina ou à física, mesmo à astrofísica, nos permitem medir, aferir e apreciar ou aquilatar o que observarmos mas, contudo o insondável mistério da mente continua fechado a sete chaves, quantas vezes deslumbrando-nos pela negativa, quando não de modo quotidiano. Basta-nos olhar para os exemplos de Albino Tavares, triste figura do dia, pejado de condecorações, homenagens, considerações, e no entanto um individuo sem escrúpulos, como um vulgar assassino. Sem pestanejar mandou ocultar as provas da sua incompetência e culpa nas mortes trágicas de Pedrogão Grande, quando o que deveria ter feito era devolver o tacho de boy ao Instituto da Juventude ou ao partido que o pariu.

Muitas honrarias tem este país proporcionado a mafiosos, eu poria nesse leque Zeinal Bava, Granadeiro, Sócrates e tantos outros que há muito pisaram, cortaram, desviaram ou simplesmente puseram de lado para evitar incómodos essa linha invisível que vínhamos seguindo e traçando neste texto.

É a consciência e o racional que nos separam dos animais, porém, perdido o pudor, ultrapassada a linha vermelha da ética a raça humana só tem para oferecer animalidade, pior que isso, bestialidade, brutalidade. Nada, nadinha, nada substitui a moral e a ética por muito bom corte que tenham os fatos dos predadores ou aqueles que vistamos…