quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

561 - O PRAZER DA ESCRITA, O PODER DA PALAVRA * by Maria Luísa Baião


Sou mulher, quero fazer das palavras alegria, p’ra que a noite se converta em dia e elas transformem em mim a vida que vivia.

Ecoam no meu ser sonoridades, quentes, ciciadas, bafejadas. Toques, afagos, aconchegos, que hoje são desejos, saudades, ecos de maternidades. Flanelas, biberões, já foram sons, janelas, escancaradas como grades serradas, uma fuga para a frente jamais na memória dissolvida. Era isso a vida.

Soletrada a palavra, ainda como brincadeira e então o suave tacto do pano, livro primeiro, depois o “ a b c “ já se vê, e seguidamente, durante a vida inteira, nunca mais a palavra foi engano, nunca mais foi verdadeira, porquê?

Colegial precipitada pois claro, mas poderia ter sido de outra forma? A pressa em conhecer o mundo inteiro, os livros, o amor, a escrita, um diário, um tinteiro. A leitura à jorna, a imaginação, delirante ! E confesso que daí por diante, uma criatura foi moldada, no prodigioso mundo da palavra. Talvez tu desconheças, mas eu sei que a palavra é realismo mágico, passado e futuro podendo ser trágico, também um mundo novo que se abre. É fogo que arde, é milagre, é sentimento, é verdade, é falsidade, e maldade.

Comovem-me as palavras, consomem-me as palavras, amor e perversão andam abraçadas, em idílicas cenas tão fielmente retratadas nas palavras como dor e coração, tão deturpadas que dissecadas nos enchem as mãos de... Nada. Sou mulher, sou desejo, sedução, sou ensejo, sou maldição. Não creias nunca no anátema, palavras são palavras, são traição. Sou mulher, sou virtude, sou beleza e oração.

Uma bátega se abate sobre mim, tanto melhor não quero que me vejas assim. Disfarça lágrimas escorrendo-me pela face ácidas mas felizes, sôfrega emudeço, não há palavras que descrevam tanto amor. Pela primeira vez não encontro palavras p’ra tanto fervor. Eu, tu, porque não ser felizes ? Altero-te as hormonas se me passeio p’las ruas, perdes o norte às viagens e esqueces que são simples feromonas a origem das tuas incompreensíveis miragens. Tão fielmente retratadas nas palavras que de fórmulas mágicas a enformam, a mulher é vertigem, é alvo das mais incrédulas abordagens.

Desmistifica, exorciza o teu pensar porque, qualquer mulher vai muito além do que é vulgar. Não cuides influenciar comportamentos, as palavras, só as palavras mudarão o curso dos acontecimentos. Vida é arrebatamento e fulgor, é também deslumbramento e amor. Amor que é belo e cega, e para despertar uma só palavra tantas vezes lhe chega. Não me venhas com os eufemismos usuais, pois a ficção que é a vida, torna tantas vezes as palavras banais. Põe-me antes ternamente a mão sobre a espádua e verás que mais que palavras, será esse teu gesto lindo que, ruborizada e febril, me fará fugir para debaixo de água.

Deixa escorregar teus dedos por minha face corada, afugentarás meus medos, dir-te-ei quanto desejo ser beijada. Torna-me espiral, voluta, faz-me sentir especial, impoluta, acarinhada. Segreda-me palavras, eleva-me nos ares até que sinta derme e epiderme arrepiadas. Não cries entre nós desertos, não permitas desejos esmorecidos, palavras são segredos, que se incertos paulatinamente se verão esquecidos.

Não ! Porque o amor não esquece, e se a saudade no meu peito cresce é a tua imagem que, onírica me surge, e sentir-me querida me envaidece. Vem, o tempo urge. Sim é verdade, não suporto a inocência da maldade, nem a indolência e a passividade da paixão desavinda, da saudade. O corpo arde-me de desejo, num cerco de seduções e palavras me atormentas, dói-me não ver da tua parte ensejo de pôr cobro a tão ardentes paixões, tão violentas.

As palavras, sempre as palavras, a ficção que é a vida, a tua imagem, o silêncio, requerem mais coragem que, o que penso ser-me homenagem devida, Inocêncio. Inocêncio ou Alberto, João, António, Carlos, Augusto, que interessa? Importante é que venhas depressa. Traço teu retrato com as mãos, com barro moldo um artefacto, um busto, um rosto, oh ! E com que gosto.

O intimismo da memória mente, tanto mais quanto mais tempo estás ausente. Canto vitória e ordeno-te: corre para mim, simplesmente ! Deixo as palavras penetrar fundo em minha mente, uma decisão que nada muda, continuo carente, de paixão, de amor ardente a que o espírito o corpo desnuda. Por palavras a mim mesma descrevo um gesto teu, de verdade despido, porque na razão inversa do que penso, estás longe, e estás vestido.

E meu corpo é mar revolto, turbilhão ansiando doce bonança, ver-te devoto, junto a mim devolvendo-me a esperança. Faminta te deixo a boca, sedenta, álacre e louca, pinta numa cena barroca, acre, doce e ternurenta o reencontro desejado, tantas vezes sonhado, tão na verdade vivido quão na memória sofrido.

Sou mulher, sou mãe, sou devoção, mas nunca serei cega para tanta emoção. Sou mulher, sou assim e sou feliz, tu para mim amor és uma benção, amo-te, adoro-te, orgulho-me de ti. Sou cega quanto pode ser por simpatia mulher que acima de tudo coloca a idolatria. Eis-me algoz de amor feroz, muitas vezes as palavras são tudo, por vezes as palavras não são nada. Na sua voragem me embeveço, a viagem começa na primeira página, termina onde adormeço e só quando o livro tomba aprecio a miragem que não esqueço.

Tive tempo, tive amigos, mas saberão vocês porque escrevo? Porque o mundo me cerca e não me atrevo a crer que alguma vez os perca. Palavras são elo de corrente, são forma de me amarrar a vós para sempre. Modo diferente só de compensar a falta de espaço e de lugar, sentir-me entre vocês, ficar contente.

A escrita, pois, a escrita, o seu poder, umas vezes evasão, se ando a correr, outras, formas de acertar horários para vos não perder. Dúbia, dúplice, enganadora, lastimável, horrível ou confrangedora, é e será sempre sedutora, inenarrável, sofrível, enternecedora.

Troco impressões com Saramago, Lobo Antunes, Kundera e tantos outros, que há muito coabitam meu ser, meu mundo, meus diálogos. Todos loucos ou não, não sei dizer, quantos conciliábulos não se fizeram já, sempre, sempre no sentido de vos levar a ler. Consegui-lo, quem me dera ! A palavra é uma arma cantou o poeta e se em tal não acreditas não deites foguetes, não faças a festa. Palavras são punhais e só por isso tanto preocupam certa gente os livros que lês ou o caminho por onde vais. Estuga o passo, lê, troca impressões, esgrime o florete da retórica, não deixes que te cortem cerce as ambições. Palavras, acredita, são uma das formas de não morrer jamais.

Assim foi que, estando a cidade sitiada e o valoroso Constantino defendendo-a, nos baluartes, dentro dela os monges continuavam em discussão acesa sobre qual seria o sexo dos anjos” **
   
* Texto submetido a concurso literário promovido pela Câmara Municipal de Redondo no ano 2000 e publicado em 4-8-2000 no Semanário IMENSO SUL, coluna Kota de Mulher.

**  in Notícia do cerco de Bizâncio. 


domingo, 23 de dezembro de 2018

560 - EU CUIDADOR ME CONFESSO.......................


… Outros sinais me davam conta do apelo do Universo a que ela cada vez mais correspondia, é certo que vos conto tudo isto em meia dúzia de linhas mas foram semanas, meses, anos. A duração desse apelo universal durou meses, a corte sideral lançada na sua conquista foi arteira, tudo se desenrolando tão lentamente que o olho mais apurado não notaria, não daria conta do gigantesco afastamento de planetas, estrelas e galáxias devido à constante expansão desse Universo. Como dar então conta de tão subtis manifestações nela ?

Outro sinal foi-me dado pelo jornal, aos sábados eu levava para casa o Expresso, do qual éramos leitores desde a primeira hora, desde o primeiro número. De uma vista cuidada por todos os cadernos ela passou a abandonar primeiro o primeiro caderno, desculpai-me a redundância, depois o caderno de economia, e por fim até a revista e as suas tão caras “amigas e amigos” Ana Cristina Leonardo e Clara Ferreira Alves, o padre Tolentino, o Eng.º Jorge Calado e o imaculado Pedro Mexia, palavras dela.

Há muito descurara a música, afastara-se das redes sociais onde só de vez em quando ia para deixar uma poesia, um qualquer sinal de que neste canto da galáxia ainda havia vida, na galáxia e naquela casa onde a vida ainda palpitava. Há mais de quarenta anos que as horas das refeições eram acertadas pelos horários dos principais telejornais. A televisão da cozinha, a última a ser abandonada, deixou simplesmente de ser ligada numa fase adiantada da doença, nem a da salinha, onde por vezes inda ia, estirando-se no sofá, alheia a tudo menos à gatinha que nos últimos dias, digo dois a três meses nunca a abandonou tendo eu agora a certeza que lhe previu o fim muito antes de qualquer de nós, médico incluído, nos termos apercebido da gravidade e da velocidade vertiginosa que a queda no buraco negro do espaço sideral tomava.

Deambulo pela casa, pareço um sonâmbulo, até que me estiro, como a Luisinha gostava de se esteirar ao fim do dia, no sofá, entre as minhas pernas e com a cabeça no meu colo, eu falando-lhe, ela descansando e ouvindo, por vezes lia para ela, fecho o livro, não quero acordá-la, a Luisinha não se tinha deitado, tinha ficado a ver TV e depois de acabar o programa que estava vendo começara a ficar rabugenta. Mais tarde continuei a leitura da poesia de Amália Bautista;

                  NO FIM

No fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que nos conseguem alegrar a alma.

São também muito poucas as pessoas
que tocam o nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.

E no fim são pouquíssimas as coisas
que em nossas vidas a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

   Poema de Amália Bautista, 1999 in "Cuentamelo Otra Vez"

adormecia, ia metê-la na cama, por vezes vestida, tadinha mimei-a muito, devia tê-la mimado ainda mais. Amávamo-nos a valer, fizemos muito um pelo outro, e ela agora uma estrela no firmamento, tadinha, hoje desatei a chorar frente a uma lojista, não me contive, ainda não estou bom, tinha ido devolver os medicamentos dela para que a farmácia Paços (com ç) os encaminhasse para o lixo próprio, farmácia onde éramos bem conhecidos e bons clientes, e repentinamente toda aquela gente a dar-me os pêsames, foi triste, lá consegui fugir, para ir a uma óptica ali ao lado onde tenho um amigo apertar uns óculos Ray Ban que eram da Luisinha e a Leonor achava giros, apertar as hastes e arranjar-lhe uma caixinha bonita. Mas após alguns minutos de bla bla bla, com a funcionária desatei-me, agradeci e abalei a esconder a cara não fui capaz de evitar o pranto. Já vinha "embalado" da farmácia...

Somos humanos, é normal, penso que sim, ficaram giros os óculos, limparam-nos, pareciam novos, caixa nova, a Leonor vai rejubilar. Outros maiores ficaram para a Catea, novíssimos, a Luisinha tinha-os comprado para esconder a cara e os olhos... É a vida dizem. Verdade, e como se não bastasse eu andar mole uma antiga vizinha nossa no café veio dar-me os sentimentos e agarrou-se a mim a chorar... Ia-me rebentando o choro também, fugi dali, digo abalei, desopilei, desandei, depois esbarrei com outra…

sábado, 22 de dezembro de 2018

559 - TIRO O CHAPÉU AO SAÚL by Luísa Baião *

Podia ser o carpinteiro Saúl...
Podia ser o carpinteiro Saúl...
                                                                                                                        Podia ser o carpinteiro Saúl...     



                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

        Usa uma boina coçada um novo amigo que fiz. Encostado a uma bancada o encontrei numa festa onde, feliz saltitava, de uns p‘ra outros até que, num golpe de sinestésia (vai buscar o dicionário amigo Saúl), ultrapassou o rogado e me dirigiu palavra.

        Cavalgando um alazão um tudo-nada etilizado, nem perdeu por isso o condão de, em modos de João-ninguém, solícito se apresentar, numa postura em que, implícito, eu deduzia, um carácter em que luzia, trémula, uma alma íntegra, talvez até à medula.

       Exteriorizando alegria, não estudada mas sincera, qualquer uma enxergaria que, apesar das negras nuvens que lhe toldavam o andar, ser vera essa alegria espraiada no seu olhar.

        Percebi ter mãos de mago e obra feita na terra, não ser o drago que o pintam nem fazer guerra aos que o tentam, pois apesar de fruir uma vida mal-amada, este homem é um portento. Mal-amada vos disse eu, talvez errada no lance por obra de outro plebeu que mo confessou de relance. Uma impressão me pareceu naquele lídimo dono de um nariz de judeu, um arrimo de profeta, que mau grado a bruma dos dias o é de coisa nenhuma mas que da vida é um esteta.

        E quando com minudência lhe divisei bem o rosto, de aparência sempre calma, reparei em cicatriz que, não se ostentando por gosto, me levou a perguntar-me quantas mais não guardará na matriz da sua alma. Como pode não ser bom, não ser bondoso e vaidoso quem de coração aberto nos apresenta, baboso, desperto da névoa etílica, um filho de feição idílica, moço bonito, espadaúdo, e como o avô, espigado, que por certo de donzelas se verá sempre cercado.

          Dizendo-se velho o Saúl, mais não faz que se enrolar nas voltas que a vida dá, a sua história é a estória duma vida a que não terá querido dar qualquer vitória, por mais que ela seja fútil. Por mais que o negue, o Saúl, nem é velho nem inútil, e não me sai da cabeça que só é tão áspero consigo por pensar que perdendo-se sacudirá de cima o destino.

          Maldiz o mundo porque o sente, não o ama porque o não pensa. Será que ele desconhece que em tudo pomos um tino ? Não que não o aparente, parece ser um ser feliz a quem o passado persegue e eu espero, sinceramente que um dia em algum pagode, olhando dentro de si, exulte como quem descobre a ponta dum qualquer novelo, ser a vida um atropelo a que nos cabe pôr cobro, descobrindo se o malogro é sonho ou pesadelo.

         Não foi um velho que eu vi, foi um ser inteligente que teima, não sei porquê mirar-se em espelho passado, quando o que deve fazer é, à força de um carretel, subtrair-se a essa toleima que afunda tanto indigente. Não há nenhuma entre nós que não seja em algum momento, escrava das circunstâncias, viver tem altos e baixos, é carrossel de alternâncias, como uma noz num tormento, o fiel numa balança, o sorriso num pensamento.

         E é na perseverança, não no gesto simples e fácil de elevar uma garrafa que acharemos a adiafa que por direito nos pertence, ela é uma ténue esperança, qual porta só acessível a quem em vida se esforça, que quer, que luta e que vence.

         Hoje afoga-se n’outras águas, mas tempos houve, decerto, em que depois de afundado nos olhos de uma mulher, se viu perdido no deserto.

        Com um velado respeito p’la progenitora, presente, por quem levou a mão ao peito, o Saúl é muito afável, simpático, nunca ausente, cultivando um velho saber, mais próprio de um povo asiático. Bom fadista e dançarino, evocou-me três mulheres; uma muito mal casada, uma simplesmente casada e outra que não chegou a casar.

         Aqui vos deixo uma pista do que é um estere, um decastere ou decistere de um nada vulgar destino.

   Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                 
* Escrito em  25 Agosto de 2003 por Maria Luísa Baião‎ e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER

Podia ser o carpinteiro Saúl de S. Miguel de Machede...
                                   


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

558 - ENTRAI PASTORES ENTRAI by Luísa Baião *


          Se há alguém que conheço muitissímo bem é o meu marido. E ao contrário do que é normal, chegar a casa sem grande alarido, tornou uma destas sextas-feiras excitadíssimo, mostrando um espanto pouco habitual.

Logo ali quis saber o motivo de tanta euforia, tirar-me de cuidados, para isso me bastara o dia, por certo para tal alguma razão forte haveria;

- Não acreditas ! Me disse;
- Acabei de ver num militar a rebeldia !

E lá me contou, como foi capaz, ofegante que estava, estupefacto;

- Assisti agora mesmo a uma linda batalha pela paz !

O que vira ele então, que o deixara em tamanha excitação? O testemunho de um guerreiro, de uma vida dedicada a tácticas e estratégias militares, de um duro, que trilhara outro carreiro. Nada mais nada menos que a história de uma vida coroada de estrelas mas trilhada a pulso, a que o destino, talvez por capricho ou impulso, “tocara” como em suave milagre.

Essa vida, essa carreira militar, tornara-se repentinamente álacre, a julgar pelo facto, constatado, e pelo adiante visado comprovado, de que não há regra sem excepção. “Dar de Si antes de pensar em Si“, palavra de ordem ou divisa do julgado, foi um lema pelo próprio completamente adulterado, alterado, foi norma por ele magistralmente subvertida.

Acredito que, quando em algum momento da sua vida aquela maravilhosa colecção foi concebida, o terá sido pensando em si mesmo, de forma egoísta e atrevida, mas nem por isso menos querida, como tantas de nós, que nuns ou noutros aspectos não somos menos egotistas e circunspectas. Pois o bom homem terá por certo descoberto que não valeria a pena amealhar o que não pudesse partilhar. Vai daí, e sem qualquer pudor, “tocado” que foi talvez pelo Divino, abriu-nos os braços deixando escoar por eles essa torrente de amor que lhe tolhera o caminho.

Não é caso único, conta a história que, já em remotos tempos, Constantino,** homem certamente menos pudico, reunira todos num abraço, tão temerário que o tornou Magno, também conhecido por Valério, e cujo gesto, não imaginário, traçou de novo nos mapas um antigo império.


“Entrai Pastores Entrai”, é uma excelsa colecção de presépios a decorrer nas igrejas de S. Vicente e do Convento da Graça, sobre o que é considerado o símbolo apaziguador do Natal e mostra-nos presépios artesanais de todo o mundo. Expressão da “alma dada às pequenas coisas... Que podem ter a dimensão de uma noz ou de uma estrela, e que nós simples mortais... ”Partilhamos com enlevo”.

Desde presépios em madeira de choupo ou salgueiro, de tal modo rendilhados que mais parecem filigrana, a outros construídos dentro de lâmpadas ou frasquinhos não maiores que o meu polegar e que por certo exigiram paciência de marinheiro, de tudo há nesta exposição, que mais parece viveiro de um milhar de fulgores p’ra nos encantar.

Um catálogo de excepcional qualidade, que só peca por não ter mil páginas, tantas quantos me pareceram os presépios, ilustra a capa com uma representação orbitando em torno do amor dos pais pelo Menino que veneramos, concepção de artistas eborenses realizada na “Oficina da Terra”, a mesma terra de onde provém o barro de que é feita a obra.

Parabéns a todos os intervenientes no evento. Para o senhor Major General F. Canha da Silva, um beijinho solidário pelo carinho mercenário com que conquistou para a nossa terra o seu mundial mostruário.


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em 06-01-2003 no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER


** Constantino I, Constantino Magno, César Flávio Valério Constantino Augusto. Deu liberdade aos Cristãos, o nome a Constantinopla e reunificou o Império Romano cerca de 300 d.C.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

557 - O MEDONHO CAPITÃO AHAB by Luísa Baião


É provável que todas (os) conheçam a história do famoso capitão Ahab, figura terrível, empedernida, que aos poucos foi ficando sem amigos, tendo o seu fim sido ditado pelo isolamento a que se votou, a que o votaram. Julgando-se senhor da razão, melhor, da vida e da morte, logrou arrastar consigo muitos que só por temor o seguiam já, quais marionetas despidas de sentido e de vontade, e muito menos da integridade que lhes devia aconselhar antes mortos que domados.
  
É dos livros, quem não leu nem imagina ter perdido a história do vilão vencido que unicamente para o seu sonho vivia, sonho de tal modo nele empedernido que não distinguia noite e dia, a verdade da fantasia. Gritando ordens do convés, fazendo-se senhor da verdade absoluta e exigindo para ontem o que ordenava hoje, achincalhando quem de entre os marinheiros ousasse estar entre os primeiros, fez da vida uma afronta aos outros, uma tormenta tal, que só de forma casual os elementos alguma vez chegaram a conseguir igual.

 Errou julgando-se imortal, e tanto errou que hoje só a morte lhe evitou a banal sorte de qualquer de nós. O irascível o perpetuou, a imoralidade o transformou em história, a falta de escrúpulos o sequestrou ao esquecimento, exemplo do que não devemos ser, do que não devemos fazer, daquilo em que não podemos crer.
  
Levou a vida perseguindo quem ousara opor-se-lhe à arbitrária vontade, tombou caindo nas profundezas dos desígnios que desafiara. Esqueceu quão grande é o mundo e o destino, esquecera o que aprendera em pequenino. Moby Dick a baleia branca o consumiu em vida, se lhe tornou túmulo de algo que era maior que ele, a arrogância desmedida, a indiferença desprendida, a malvadez feita vida.
  
Sabido que é que só os verdadeiros amigos nos chamam a atenção quando temos a cara suja, nunca houve ninguém que tivesse dito a Ahab quanto a sua precisava ser lavada. Ahab nunca teve ninguém com quem partilhar tristezas sonhos e desejos, muito mais que imoral, Ahab era amoral. Ahab vive entre nós, pela mão de Herman Melville, como Dantas vive sob a pena de Almada Negreiros;“ Morra o Dantas, morra ! Pim ! O Dantas é o escárnio da consciência ! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa ! O Dantas é a meta da decadência mental ! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas ! E ainda há quem lhe estenda a mão ! E quem tenha dó do Dantas ! Morra o Dantas ! Morra! Pim !

  Melville legou-nos a saga de Ahab e da baleia branca para que possamos tomar consciência de quanto a alma pode ser negra, Almada deu-nos o Dantas para que possamos conhecer até onde pode ir a falta de pudor, o manobrismo, a ambiguidade, a manipulação. Quer com um quer com outro é difícil distinguir o absoluto do definitivo, o consciente do inconsciente, o bem e o mal, o primitivismo e a selvajaria. São combates simbólicos entre homens e monstros numa interpenetração entre os seres que lhes deram vida e o tempo em que a viveram.
  
Os tempos são hoje outros, hoje a vida compõe-se de soluços, fungadelas e sorrisos, com predominância de fungadelas, nenhuma de nós é tão esperta como todas nós juntas, Melville sabia-o, Almada sabia-o, mas há ainda muito quem o não saiba. Melville, viveu entre 1819 e 1891. A sua obra vende-se hoje aos milhões, mas morreu pobre e obscuro, incompreendido pelos seus pares. Foi tripulante desde muito novo em navios veleiros, cedo se tornou imediato e depois capitão de um baleeiro. As agruras da vida e do destino levaram a que tivesse perdido o estatuto de capitão num tempo em que a sociedade se hierarquizava de uma forma muito rígida atirando-o para o fim da escala social.
  
Diz a lenda que antes de morrer terá perguntado a quem lhe roubou a inocência “se o queriam como amigo ou inimigo?”, consta que ainda hoje a sua alma vagueia atormentando os descendentes de todos quantos estiveram do lado do capitão Ahab.  

NOTA: * By Maria Luísa Baião,‎ publicado em 29-09-2002 no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, como sátira a uma primitiva senhora que há muitos anos pontifica na política eborense. (o adjectivo primitiva é de responsabilidade minha).