Sou mulher, quero fazer
das palavras alegria, p’ra que a noite se converta em dia e elas transformem em
mim a vida que vivia.
Ecoam no meu ser
sonoridades, quentes, ciciadas, bafejadas. Toques, afagos, aconchegos, que hoje
são desejos, saudades, ecos de maternidades. Flanelas, biberões, já foram sons,
janelas, escancaradas como grades serradas, uma fuga para a frente jamais na
memória dissolvida. Era isso a vida.
Soletrada a palavra,
ainda como brincadeira e então o suave tacto do pano, livro primeiro, depois o
“ a b c “ já se vê, e seguidamente, durante a vida inteira, nunca mais a palavra foi
engano, nunca mais foi verdadeira, porquê?
Colegial precipitada
pois claro, mas poderia ter sido de outra forma? A pressa em conhecer o mundo
inteiro, os livros, o amor, a escrita, um diário, um tinteiro. A leitura à jorna,
a imaginação, delirante ! E confesso que daí por diante, uma criatura foi
moldada, no prodigioso mundo da palavra. Talvez tu desconheças, mas eu sei que
a palavra é realismo mágico, passado e futuro podendo ser trágico, também um
mundo novo que se abre. É fogo que arde, é milagre, é sentimento, é verdade, é
falsidade, e maldade.
Comovem-me as palavras,
consomem-me as palavras, amor e perversão andam abraçadas, em idílicas cenas
tão fielmente retratadas nas palavras como dor e coração, tão deturpadas que
dissecadas nos enchem as mãos de... Nada. Sou mulher, sou desejo, sedução, sou
ensejo, sou maldição. Não creias nunca no anátema, palavras são palavras, são
traição. Sou mulher, sou virtude, sou beleza e oração.
Uma bátega se abate
sobre mim, tanto melhor não quero que me vejas assim. Disfarça lágrimas escorrendo-me
pela face ácidas mas felizes, sôfrega emudeço, não há palavras que descrevam
tanto amor. Pela primeira vez não encontro palavras p’ra tanto fervor. Eu, tu,
porque não ser felizes ? Altero-te as hormonas se me passeio p’las ruas, perdes
o norte às viagens e esqueces que são simples feromonas a origem das tuas
incompreensíveis miragens. Tão fielmente retratadas nas palavras que de
fórmulas mágicas a enformam, a mulher é vertigem, é alvo das mais incrédulas
abordagens.
Desmistifica, exorciza
o teu pensar porque, qualquer mulher vai muito além do que é vulgar. Não cuides
influenciar comportamentos, as palavras, só as palavras mudarão o curso dos
acontecimentos. Vida é arrebatamento e fulgor, é também deslumbramento e amor.
Amor que é belo e cega, e para despertar uma só palavra tantas vezes lhe chega.
Não me venhas com os eufemismos usuais, pois a ficção que é a vida, torna
tantas vezes as palavras banais. Põe-me antes ternamente a mão sobre a espádua
e verás que mais que palavras, será esse teu gesto lindo que, ruborizada e
febril, me fará fugir para debaixo de água.
Deixa escorregar teus
dedos por minha face corada, afugentarás meus medos, dir-te-ei quanto desejo
ser beijada. Torna-me espiral, voluta, faz-me sentir especial, impoluta, acarinhada.
Segreda-me palavras, eleva-me nos ares até que sinta derme e epiderme
arrepiadas. Não cries entre nós desertos, não permitas desejos esmorecidos,
palavras são segredos, que se incertos paulatinamente se verão esquecidos.
Não ! Porque o amor não
esquece, e se a saudade no meu peito cresce é a tua imagem que, onírica me
surge, e sentir-me querida me envaidece. Vem, o tempo urge. Sim é verdade, não
suporto a inocência da maldade, nem a indolência e a passividade da paixão
desavinda, da saudade. O corpo arde-me de desejo, num cerco de seduções e
palavras me atormentas, dói-me não ver da tua parte ensejo de pôr cobro a tão
ardentes paixões, tão violentas.
As palavras, sempre as
palavras, a ficção que é a vida, a tua imagem, o silêncio, requerem mais
coragem que, o que penso ser-me homenagem devida, Inocêncio. Inocêncio ou
Alberto, João, António, Carlos, Augusto, que interessa? Importante é que venhas
depressa. Traço teu retrato com as mãos, com barro moldo um artefacto, um
busto, um rosto, oh ! E com que gosto.
O intimismo da memória
mente, tanto mais quanto mais tempo estás ausente. Canto vitória e ordeno-te:
corre para mim, simplesmente ! Deixo as palavras penetrar fundo em minha mente,
uma decisão que nada muda, continuo carente, de paixão, de amor ardente a que o
espírito o corpo desnuda. Por palavras a mim mesma descrevo um gesto teu, de
verdade despido, porque na razão inversa do que penso, estás longe, e estás
vestido.
E meu corpo é mar
revolto, turbilhão ansiando doce bonança, ver-te devoto, junto a mim
devolvendo-me a esperança. Faminta te deixo a boca, sedenta, álacre e louca,
pinta numa cena barroca, acre, doce e ternurenta o reencontro desejado, tantas
vezes sonhado, tão na verdade vivido quão na memória sofrido.
Sou mulher, sou mãe,
sou devoção, mas nunca serei cega para tanta emoção. Sou mulher, sou assim e
sou feliz, tu para mim amor és uma benção, amo-te, adoro-te, orgulho-me de ti.
Sou cega quanto pode ser por simpatia mulher que acima de tudo coloca a
idolatria. Eis-me algoz de amor feroz, muitas vezes as palavras são tudo, por
vezes as palavras não são nada. Na sua voragem me embeveço, a viagem começa na
primeira página, termina onde adormeço e só quando o livro tomba aprecio a miragem
que não esqueço.
Tive tempo, tive
amigos, mas saberão vocês porque escrevo? Porque o mundo me cerca e não me
atrevo a crer que alguma vez os perca. Palavras são elo de corrente, são forma
de me amarrar a vós para sempre. Modo diferente só de compensar a falta de
espaço e de lugar, sentir-me entre vocês, ficar contente.
A escrita, pois, a
escrita, o seu poder, umas vezes evasão, se ando a correr, outras, formas de
acertar horários para vos não perder. Dúbia, dúplice, enganadora, lastimável,
horrível ou confrangedora, é e será sempre sedutora, inenarrável, sofrível,
enternecedora.
Troco impressões com
Saramago, Lobo Antunes, Kundera e tantos outros, que há muito coabitam meu ser,
meu mundo, meus diálogos. Todos loucos ou não, não sei dizer, quantos
conciliábulos não se fizeram já, sempre, sempre no sentido de vos levar a ler.
Consegui-lo, quem me dera ! A palavra é uma arma cantou o poeta e se em tal não
acreditas não deites foguetes, não faças a festa. Palavras são punhais e só por
isso tanto preocupam certa gente os livros que lês ou o caminho por onde vais.
Estuga o passo, lê, troca impressões, esgrime o florete da retórica, não deixes
que te cortem cerce as ambições. Palavras, acredita, são uma das formas de não
morrer jamais.
“Assim foi que,
estando a cidade sitiada e o valoroso Constantino defendendo-a, nos baluartes,
dentro dela os monges continuavam em discussão acesa sobre qual seria o sexo
dos anjos” **
* Texto submetido a concurso
literário promovido pela Câmara Municipal de Redondo no ano 2000 e publicado em 4-8-2000 no Semanário IMENSO SUL, coluna Kota de Mulher.
** in Notícia do cerco de Bizâncio.