terça-feira, 21 de julho de 2020

O IMPACTO, AH ISSO ! O IMPACTO ! CARAMBA !



Muito senhora do seu nariz, virou-nos as costas e desandou, aliás, como sempre faz se as coisas lhe não agradam, é de gancho esta Marília, bastou o Amadeu picá-la foi-se, grunhindo disse ele que se esforça amiúde por lhe ser simpático. Tudo por dá cá aquela palha, ele perguntara-lhe qual o quadro de professores e de funcionários da U.E., coisa naturalíssima atendendo a que ela é lá funcionária do quadro superior, mas ela, para quem a universidade é o Delta e o Ómega (diz o Amadeu), como habitualmente não sabia nada de nada e muito menos do que quer que tivesse que ver com a preclara instituição onde trabalha, mal mas julgou estar ele a gozá-la, pelo que lhe respondeu como faria com o marido, que terá morrido às sua mãos, afirma o Amadeu ;

- Mas que merda tem o café e os relógios a ver com a porra da conversa ? Estás-me a gozar ou o quê ó parvalhão ?

Na minha tertúlia é assim, e a semana que passou não acabou nada bem, um deles vira ou ouvira em qualquer lado quaisquer observações sobre o impacto causado pela Universidade (U.E.) na região e foi o suficiente para que quinta e sexta-feira se tivesse desencadeado um tufão à mesa. A questão deixou-nos todos com os neurónios ligados e a ferver, teria esquecido o assunto não fossem dois deles terem voltado à carga com emails que me enviaram. A coisa é capaz de mexer com a pacatez habitual do burgo, que mexeu com a minha roda de amigos lá isso mexeu.


Foram dois dias de intensos e acalorados debates, monopolizámos as conversas do café e, antes que me esqueça ou que alguém mais assoberbado me dê com a mesa na cabeça e o balanço se me varra do disco duro vou passar para o papel as impressões finais, as que me ficaram gravadas na massa encefálica.

Em primeiro lugar, e foi opinião unânime, é muito difícil ao comum dos mortais avaliar em consciência ou com alguma exactidão esse tipo de impacto, desde logo porque a própria academia propositadamente se fecha sobre si mesma, o que já é um mau sinal, um mau indicativo ou mau sintoma. Poucos canais são por ela abertos que excedam a informação burocrato/institucional, e se o excedem é para o fazer de modo muito conciso, muito propagandístico, muito laudatório e sempre restrito. Poucos ou pouquíssimos departamentos se publicitam e ao trabalho que desenvolvem ou aos resultados obtidos, os seus mestres, os seus sábios, mantêm-se generalizada e propositadamente na sombra.

Na tertúlia foram contudo reconhecidas duas excepções, seja-lhe pois feita justiça, uma delas o Prof. António, outra o Prof. C. C. qualquer deles de vez em quando exprimem o seu saber e opinião nas páginas do Diário do Sul, a outra o Prof. José Alberto que, além de opinar diariamente na sua página do Facebook sobre diferentes temas, nos brinda de vez em quando com um texto extra e extraordinário, de sua autoria, sempre sobre algum assunto candente. É pouco, mas o pouco que esta tríade faz fá-lo a título individual, pessoal, e privado, não esclarece nem compromete a academia, portanto por pouco que seja é muito, porém nada nos diz sobre o que dela irradia.   


Diz-se, deduz-se, intui-se, supõe-se que a academia terá algum impacto sobre a região, e certamente terá, qual a sua dimensão ou qualidade é segredo que ela esconde como coisa que a envergonhe. Através dos seus sábios pouco ou nada se sabe, nem tão pouco o que pensam sobre a civitas que os acolhe, donde, à mesa do café extrapolámos o seguinte pensamento; “não vivem para a civitas, vivem da civitas”, tendo sido deduzido entre nós ser o seu impacto real muito inferior ao que o vulgo lhe atribui, o que, e ninguém o negou, constituía para todos uma vera preocupação.

Quantos professores albergará ?  Em que categorias ? E quanto a funcionários ? E o seu Orçamento Anual onde poderá ser consultado ? E o Plano de Actividades ? E o Balanço e Prestação de Contas ? E na esteira destas interrogações àquela mesa de café foram gizadas, ao longo dos últimos dois dias da semana, outras tantas para as quais não se arranjou resposta nem me recordo de que alguma vez alguém as tenha dado.

A questão levantada e que a todos tanto envolveu, a de avaliar o impacto da academia na cidade e na região, há muito deveria ter-nos colocado a todos nós arquitectando perguntas, para que não fique pedra sobre pedra, ou antes dúvida sobre dúvida. Mas no entanto também aceitámos pacificamente ser muito difícil o povo desta cidade desatar a clamar por respostas quando nem sequer o ensinaram a formular as perguntas. Os meios de comunicação da urbe, da urbe e da região, por norma, por receio ou submissão, ou talvez devido a distorcidos conceitos de educação e de deferência, ou de reverência, nunca questionaram o paquiderme, nunca ousaram interrogá-lo (1) e muito menos se atrevem a colocá-lo em causa, o paquiderme paira assim majestático sobre todos, mas o problema é que o paquiderme além de pesado tem um apetite voraz e para o trazer bem tratado andamos todos cada vez mais famintos, mais pobres. Na India as vacas são sagradas, por cá são os elefantes, em especial os de cor branca.


Evidentemente todos na mesa se interrogaram; Que farão ? Que produzirão de positivo tantos departamentos e tanta gente que os contribuintes sustentam ? É que na ausência de informação cabal e insuspeita quaisquer teorias da conspiração nos acodem ao espírito, como foi quando do caso da atribuição do Doutoramento Honoris Causa ao senhor comendador Rui Nabeiro, um must na ligação entre o tecido empresarial e a academia, perdão, entre uma empresa regional exemplar, quase única e uma academia a precisar de milhões como de pão para a boca. Sabe-se que Évora terá, por alto, em época de aulas e graças à população flutuante, os estudantes, um pouco mais que cinquenta mil habitantes. Porém, mau grado a frenética vida nocturna, que a eles é dedicada e por eles economicamente animada e suportada, é uma cidade apagada, cara, sem vida para além destes focos juvenis, uma cidade sem indústrias que não pontuais, com um comércio debilitado, moribundo, uma cidade sobrevivendo sobretudo de apagados serviços. Assim sendo não admira que a faculdade surja como o sustentáculo maior de uma economia paralela, subterrânea ou informal bem estruturada e medindo meças a qualquer outro sector ou mister na cidade. Quartos, quartinhos, corredores, vãos de escada, garagens e logradouros, tudo serve para alugar a estudantes, sem recibo claro, que o governo é um sovina. Arrendamentos clandestinos e uma rede de bares, casas de pasto, tascas e tasquinhas imbricadas, entretecidas nas vielas estreitas, medievas, e a sua exploração a qualquer preço são o único contributo visível da faculdade para o enriquecimento da urbe, tudo o mais não passará jamais de boas intenções e loas académicas.


E neste item volto à carga com a falta de informação séria, e carrego na falta de informação, porque o comum do cidadão não tem net, não navega, procura retirar as dúvidas que tem através dos jornais locais, das rádios locais, daí a importância de que se reveste o canal de comunicação que a U.E. deva utilizar pois dele dependerá o público-alvo atingido, que não deve ser a reduzida elite beneficiária mas a maioria pagante, para quem o pessoal da U.E. continua a discutir o sexo dos anjos ou a entreter-se ainda com a velha questão de quantos anjos podem dançar ou dançam mesmo e em simultâneo na cabeça de um alfinete (2).

Esta foi a abordagem crucial do último dia do nosso debate e que ia provocando a queda da mesa do café, a percepção que a população em geral tem da U.E. e do trabalho que esta desenvolve, e quem diz desta diz dos seus sábios, população para quem a vida está cada vez mais difícil e que, ao olhar as estatísticas que jornais e televisões diariamente apresentam nada mais vê do que Portugal consecutivamente no fim de qualquer tabela, e a descer, e atrás dele, ou nele, o Alentejo como região mais pobre no seio da pobreza. Observando os números sérios que estatísticas e estudos ou sondagens várias nos proporcionam, forçoso se torna concluir que a academia não tem tido impacto nenhum no desenvolvimento da região, que a ter será mesmo negativo, pois a dor de um povo que sofre e cuja sina não medra não se compadece com o alheamento a que o votam, a ele que tudo paga, quando uma academia inteira pelo seu alheamento e estilo de vida mais parece estar instalada no vale do Ródano, amesendando à mesa de cada um de nó sem sequer para tal ter sido convidada.

É doloroso admiti-lo, mas se com a U.E. não podemos contemporizar, também não podemos esgrimir a nosso favor argumentos que pequem por falta de exactidão, estamos lidando com gente que por tudo e por nada puxa do método cientifico e dispara, portanto meus senhores, sabem ser as conclusões desta tertúlia evidências certas e facilmente comprováveis, Portugal e o Alentejo têm vindo a perder gentes, riqueza, oportunidades e futuro na razão directa do tempo que a academia leva aberta entre nós, o que por este andar significa terem que a fechar depressa ou estaremos todos condenados a morrer à fome…


O que provocou tudo isto foi o facto de a U.E. pretender manter-nos parcialmente informados, como quem diz atirem-lhes com umas coisitas de prestígio que eles “calarar-se-ão” e irão pagando, do que resultaram as conclusões que acabei de vos apresentar, todavia o problema não está no pretenso controlo ou descontrolo da informação por parte da U.E. que já por várias vezes meteu os pés pelas mãos, contudo avante que o assunto não é a opacidade mas sim a transparência da U.E. e qual o impacto na cidade e na região da acção de tantos excelsos e magníficos reitores, porém devemos aceitar que na prática a teoria é outra, e por mais académicos que a academia encerre pouco se sabe ou conhece da parte que a cada um cabe no sucesso total da instituição, pelo que me pergunto muito legitimamente quantas patentes a U.E. registou nos últimos trinta ou quarenta anos, a quantas empresas se ligou, quantas formou de raiz, e quantas vezes a U.E. fez ouvir a sua voz aconselhando, corrigindo, reclamando ou sugerindo uma estratégia de curto ou longo prazo para a região em que se insere e que cada vez mais ocupa o fundo da tabela, de todas as tabelas.

Como sempre andam todos, andamos todos de costas voltadas uns para os outros, a U.E. nunca se intrometeu nos assuntos da urbe, e a urbe nunca o fez nos assuntos da U.E., assim chegámos, quarenta anos depois de Abril onde chegámos. Todos gostaríamos de saber onde, em que região arranjam colocação se é que arranjam, os licenciados por Évora, e atendendo aos milhares que têm emigrado nos últimos anos, perguntámo-nos também naquela tertúlia se não estaremos nós eborenses a “dar” licenciados a outras regiões e ao estrangeiro, posto isto, e para além do impacto negativo que as praxes não deixam de acarretar é hora de perguntar, alto e bom som, sem medo;

- Que fez ou faz afinal a U.E. por Évora ou pela região ?

e não me venham com a desculpa do prestígio ou com o facto de dar emprego a 671 professores e 377 funcionários (dados de 2015, poucos funcionários e com muitos edifícios ! assim me foram cedidos, com observação, exclamação e tudo!), porque o problema não são esses mil e poucos, o problema são os largos, larguíssimos milhares de desempregados em toda a região e a quem o prestigio nem mata a fome nem as aspirações, o problema  não é quanto custam esses mil e poucos à comunidade, o problema é que o contribuinte que somos todos tem que alimentar esses, mais os milhares que foram arrastados para o desemprego porque ninguém se lembrou deles, nunca se lembraram deles pois cada um só pensa em si, na sua carreira, no fim do mês, nas diuturnidades, nos seus escalões de vencimento, porque esqueceram que o cidadão contribuinte lhes paga, e bem, mas para que devolvam à comunidade a dobrar, a triplicar ou a decuplicar  o favor que assim lhes prestamos.


E já que estamos em maré de avaliação de impactos, deixem-me dizer-vos que o resumo daquela minha tertúlia foi muito negativo, foi concluído naquela mesa redonda que os impactos não têm sido fundamentais nem na fixação de pessoas, nem de talentos, nem no desenvolvimento de quaisquer projectos ou na atractividade local ou regional, porque se o tivessem sido nem o Alentejo se despovoava nem o desemprego cavalgava as estatísticas do modo que o faz. Mais concluímos, que nem a investigação foi de molde a sentir-se proveitosa, ou produtiva, replicando os custos, nem se deu conta de qualquer transferência de tecnologia para empresas regionais ou nacionais, antes pelo contrário, empresas de tecnologia de ponta que se estão instalando arrastam atras de si tecnologias novas, pelo que concluímos, e julgo que bem, andar a U.E. beneficiando e mamando há anos e anos do marasmo português e alentejano, atrelando-se a essas empresas ao invés de as puxar, vogando ao sabor dos acontecimentos, sem uma visão para o futuro nem do futuro. Esperar que a U.E. responda às necessidades que o país e a região atravessam será para ela como tentar mudar de lugar um petroleiro soprando-lhe as velas…

Todavia é um bom lugar, dá bons empregos, poucas chatices, haverá sempre pessoal que lhe queira preencher os quadros embora o caminho seja negro e os alunos venham a faltar, afinal neste país para quê estudar ? Qualquer emprego manual promete mais futuro e não obriga à espera de mudanças políticas nem de parcerias regionais, nacionais, transfronteiriças ou internacionais que, se não se concretizaram em quarenta anos de paz e democracia daqui em diante se tornam cada vez mais impossíveis de alcançar. 




1-   A não ser em casos pontuais a professores isolados, representando e respondendo por eles somente ou quando muito pelos seus departamentos.



http://mentcapto.blogspot.pt/2015/08/269-obrigado-passos-coelho.html

O problema é que temos de certeza um elefante na sala...




quinta-feira, 9 de julho de 2020

651 - PAINÉIS, PERSPECTIVA E OBJECTIVA ...


Quando no recuado ano de 1851 Wagner compôs a sua célebre Cavalgada das Valquírias, ou em 1964 The Animals lançaram um celebérrimo álbum contendo a popular canção The House Of Rising Sun, ou ainda quando em 1969 os CCR Creedence Clearwater Revival lançaram a feroz critica Fortunate Son não imaginavam que essas canções, e músicas, excepção para Fortunate Son, uma música de protesto criticando o envolvimento americano na Guerra do Vietnam e os privilégios dados aos filhos da "elite" que não eram mandados para o combate, dizia eu não imaginavam que tais canções, uma vez retiradas do contexto em que foram concebidas e integradas num outro mudariam por completo a nossa percepção dessas mesmas composições cujo sentido ao ouvi-las num diferente ambiente muda completamente.

Foi assim que Wagner se viu conotado com a ideologia Nazi, tendo sido acusado de com essa sua composição glorificar em especial a dominadora blitzkrieg, uma cavalgada rápida e eficaz que em pouco tempo dominou a Europa, ainda que rapidamente essa cavalgada viesse a sucumbir debaixo das forças democráticas do resto do mundo. Essa reposição ou recomposição democrática não se fez sem custos, mas os milhões que por nós morreram parecem ter agora sido esquecidos, confirmando que o mundo está pejado de pobres (de espírito) e de mal agradecidos.

Essas músicas, e muitas outras, tornaram-se arma apontada, músicas de intervenção porque intervieram, mudaram o mundo e, parafraseando um poeta e cantor que não recordo agora, a canção é uma arma. Em vez de um fotógrafo, que de acordo com a perspectiva que deseja captar assim manobra ou manipula a objectiva da sua máquina, o seu olho de boi, o seu olhar, para que precisamente vejamos o que nos quer mostrar e nos alheemos de quaisquer outros contextos, o músico, a música, a canção centra-nos no alvo ao qual aponta a sua mira, num alvo pré determinado.


Até eu sou sensível a estas aparentemente pequenas coisas que só a psicologia parece explicar, a erudita ou a de massas, tendo sido assim que passei a detestar Penny Lane dos Beatles, 1967, por a ela estar associada detestável lembrança e, depois da Tessa me ter deixado a ver navios e sozinho enquanto ela se punha a milhas com um paraquedista prenhe de tatuagens, desporto que pela mesma razão passei a abominar. Foi disco que nunca mais ouvi nem a minha vista dele sequer jamais se acercou.

Muda o contexto muda a perspectiva, ou muda a perspectiva conforme o contexto, isto é conforme a música assim será a dança, o que parecendo a mesma coisa não o é. Embora parecendo a mesma coisa não é a mesma coisa, parece não haver nunca duas coisas nem duas situações iguais a não ser nas palavras do ilustre professor doutor Francisco Ramos da Universidade de Évora, meu saudoso mestre de antropologia, e que uma vez me atirou à cara por o tentar ludibriar com um trabalho, ou melhor gritou para mim:

- Baião, a mesma coisa é meter dois dedos no cu e cheirá-los ao mesmo tempo percebe ? E quanto a esse trabalho (de antropologia) estamos conversados.

E lá tive que fazer outro trabalho, à pressa diga-se, por acaso óptimo e que veio a merecer uma nota que nem imaginam um vinte !

Dito isto imaginem o que é a vontade de regressar a casa do soldado que está no Vietname ou do filho que está no Iraque, a canção ou as canções e as próprias letras tomam nesses casos, nesses contextos, um novo sentido apesar de serem as mesmas ganhando uma dimensão gigantesca e avassaladora, como aconteceu especialmente com a canção The House Of the Rising Sun.

De Penny Lane esqueci-me com o tempo, até por ter passado a preferir a filosofia e Trafalgar Square, ou o jardim e a pedra, digo Speaker’s Corners* ou Recanto do Orador, 1855. Não a filosofia nem a Pedra Filosofal** devida a António Gedeão, uma canção de que é difícil não gostar, mas a pedra em cima da qual todos falam ou podem falar se o quiserem, ou orar, discursar, praguejar, contestar, vociferar contra tudo e contra todos e, prova de veracidade e idade da democracia da velha Albion, essa pedra designada por Speaker’s Corner é tão respeitada quanto é garantido o respeito por uma ainda mais velha tradição, A Magna Carta*** 1215, outra peculiaridade inglesa.


Ouvi quando muito jovem uma banda ou uma canção, ou música, não me lembro bem, nem de quem mas alguém cantava essa canção intitulada Magna Carta. Recordo-vos porém que com o tempo a perspectiva de quem detém o mando passa a ser outra, a objectividade talvez seja a mesma, mas o objectivo muda, hoje nada de modas como a de Speaker’s Cornner nem de imprensa livre, mas sim uma imprensa subsidiada, vendida, comprada, amordaçada, domada, manipulada. Verdade que o palrar e o ensino se democratizaram, quer dizer massificaram-se, estupidificaram-se. Hoje a escola é uma máquina trituradora que produz estupidez e estúpidos a granel, mas democraticamente iguais, democraticamente estúpidos, democraticamente parvos.

Razão tinham os Pink Floyd já há umas décadas quando escreveram ou compuseram o álbum Another Brick in The Wall, de 1979, ou Stanley Kuprik com a Laranja Mecânica, um filme de 1971, o filme e o CD, ou antes o vinil e o LP, isto para não ir mais atrás a Orson Welles, Nietzsche,  a Kafka a Muzil,  a George Orwell, a Kundera e outros do mesmo jaez que muito gritaram mas a quem ninguém deu ouvidos, por isso hoje temos a parvoíce elevada à condição máxima e a governar o mundo.

Andava eu matutando nestas coisas quando da estante tirei à sorte O APELO DA TRIBO de Mário Vargas Llosa, Nobel 2010 e de quem já li outras belíssimas obras, como A CIVILIZAÇÃO DO ESPECTÁCULO e outras. Este novo titulo, O APELO DA TRIBO, que adquiri há tempos na FONTE DE LETRAS aguardava vez para ser lido, como outros continuam aguardando, porém conseguiu prender-me desde o primeiro momento e a sua leitura está a tornar-se-me viciante. É sem a menor sombra de dúvida a melhor leitura que eu podia ter encontrado nos conturbados tempos que atravessamos, parecendo ter sido escrita para eles, não foi, mas a aposta ou o prognóstico do escritor saiu acertado. Talvez Vargas Llosa, como Kundera, nalgumas das suas obras tenham tido uma premonição ou estivessem ambos melhor preparados para, partindo de indícios aparentemente inócuos e aleatórios, estabelecerem conexões, avançarem projecções e formularem deduções.


Vinha eu meditando nisto quando o comboio que me trazia do Porto pára finalmente na estação de Évora, inaugurada em 1863. Porém foi remodelada há cerca de dez anos e a CP passou a disponibilizar quatro comboios diários Intercidades na ligação entre Lisboa e Évora, com um tempo de trânsito inferior a 90 minutos. As obras iniciaram-se em 2010. A nossa linda estação, agora renovada, mantém felizmente a sua antiquíssima, riquíssima e belíssima azulejaria. Todavia foi com desgosto que há uma semana reparei pela enésima vez em catorze placards publicitários estrategicamente espalhados ao longo dos cais, painéis duplos, de dupla face, portanto vinte e oito, eternamente vazios, parecendo mesmo estarem ainda por estrear.

Enquanto noutras estações e noutras cidades a publicidade enxameia e é rainha, aqui o fenómeno é precisamente o contrário. Fenómeno, epifenómeno, curiosidade, aberração ? Adivinhe quem souber, puder ou for capaz, mas é assaz curioso que ninguém, nunca, tenha apostado um cêntimo em publicidade na estação de Évora. Receio de que o investimento não tenha retorno ? Será o número potencial de consumidores que não justifica o investimento ? O nível de rendimentos e de vida da população do concelho não aconselha gastos em publicidade ? O índice de desemprego é tal que o investimento é de todo desaconselhado ?

Passaram dez anos desde as obras de remodelação da estação, os vinte e oito painéis mantêm-se vazios já há dez anos porque a situação no concelho não melhorou ? Porque piorou mesmo ? Devo deduzir que do ponto de vista do Investidor publicitário e das marcas dominantes Évora não interessa a ninguém ? Nem sequer ao menino Jesus ? Há coisas que me deixam a pensar, a matutar, a remoer, em boa verdade não só agora, já ando ruminando interrogações há mais de 40 anos, e não encontro respostas para elas.

Ou encontro, mas recuso-me a aceitar o absurdo.










HOUSE OF THE RISING SUN
The Animals
Há uma casa em Nova Orleans
There is a house in New Orleans

Eles chamam o Sol Nascente
They call the Rising Sun

E tem sido a ruína de muitos meninos pobres
And it's been the ruin of many a poor boy

E Deus, eu sei que sou um
And God I know I'm one
Minha mãe era alfaiate
My mother was a tailor

Ela costurou meu novo jeans azul
She sewed my new blue jeans

Meu pai era um homem de jogo
My father was a gamblin' man

Em Nova Orleans
Down in New Orleans
Agora, a única coisa que um jogador precisa
Now the only thing a gambler needs

É uma mala e um porta-malas
Is a suitcase and trunk

E a única vez que ele está satisfeito
And the only time he's satisfied

É quando ele está todo bêbado
Is when he's all drunk
Oh mãe, conte aos seus filhos
Oh mother tell your children

Não fazer o que eu fiz
Not to do what I have done

Passe suas vidas em pecado e miséria
Spend your lives in sin and misery

Na Casa do Sol Nascente
In the House of the Rising Sun
Bem, eu tenho um pé na plataforma
Well, I got one foot on the platform

O outro pé no trem
The other foot on the train

Vou voltar para Nova Orleans
I'm goin' back to New Orleans

Para usar essa bola e corrente
To wear that ball and chain
Bem, há uma casa em Nova Orleans
Well, there is a house in New Orleans

Eles chamam o Sol Nascente
They call the Rising Sun

E tem sido a ruína de muitos meninos pobres
And it's been the ruin of many a poor boy

E Deus, eu sei que sou um
And God I know I'm one
Fonte: LyricFind
Compositores: Alan Price
Letras de House of the Rising Sun © Universal Music Publishing Group, Kobalt Music Publishing Ltd.


FORTUNATE SON
Creedence Clearwater Revival
Algumas pessoas nascem feitas para balançar a bandeira
Some folks are born made to wave the flag

Ooh, eles são vermelhos, brancos e azuis
Ooh, they're red, white and blue

E quando a banda toca "Hail to the chief"
And when the band plays "Hail to the chief"

Ooh, eles apontam o canhão para você, Senhor
Ooh, they point the cannon at you, Lord

Não sou eu, não sou eu, não sou filho de senador, filho
It ain't me, it ain't me, I ain't no senator's son, son

Não sou eu, não sou eu, não sou um afortunado, não
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate one, no
Algumas pessoas nascem colher de prata na mão
Some folks are born silver spoon in hand

Senhor, eles não se ajudam, oh
Lord, don't they help themselves, oh

Mas quando o contribuinte chega à porta
But when the taxman comes to the door

Senhor, a casa parece uma venda de remédios, sim
Lord, the house looks like a rummage sale, yes
Não sou eu, não sou eu, não sou filho de milionário, não
It ain't me, it ain't me, I ain't no millionaire's son, no

Não sou eu, não sou eu, não sou um afortunado, não
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate one, no
Algumas pessoas herdam os olhos estrelados da estrela
Some folks inherit star spangled eyes

Ooh, eles te mandam para a guerra, Senhor
Ooh, they send you down to war, Lord

E quando você pergunta a eles: "Quanto devemos dar?"
And when you ask them, "How much should we give?"

Ooh, eles apenas respondem "Mais! Mais! Mais!"
Ooh, they only answer "More! More! More!"

yoh
yoh
Não sou eu, não sou eu, não sou filho militar, filho
It ain't me, it ain't me, I ain't no military son, son

Não sou eu, não sou eu, não sou um afortunado, um
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate one, one
Não sou eu, não sou eu, não tenho sorte, não não não
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate one, no no no

Não sou eu, não sou eu, não sou filho de sorte, não, não, não
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate son, no no no
Fonte: LyricFind
Compositores: John C Fogerty
Letras de Fortunate Son © The Bicycle Music Company


ANOTHER BRICK IN THE WALL
Pink Floyd
Nós não precisamos de educação
We don't need no education

Não precisamos de controle de pensamento
We don't need no thought control

Nada de sarcasmo na sala de aula
No dark sarcasm in the classroom

Professores deixam crianças sozinhas
Teachers leave them kids alone

Ei professores, deixe as crianças em paz
Hey, teachers, leave them kids alone

Em suma, é apenas mais um tijolo na parede
All in all it's just another brick in the wall

Em suma, você é apenas mais um tijolo na parede
All in all you're just another brick in the wall
Nós não precisamos de educação
We don't need no education

Não precisamos de controle de pensamento
We don't need no thought control

Nada de sarcasmo na sala de aula
No dark sarcasm in the classroom

Os professores deixam essas crianças em paz
Teachers leave those kids alone

Ei professores, deixem essas crianças em paz
Hey teachers, leave those kids alone

Em suma, você é apenas mais um tijolo na parede
All in all you're just another brick in the wall

Em suma, você é apenas mais um tijolo na parede
All in all you're just another brick in the wall
"Errado, faça de novo! Errado, faça de novo!"
"Wrong, do it again! Wrong, do it again!"

"Se você não come carne, não pode comer pudim
"If you don't eat yer meat, you can't have any pudding

Como você pode comer pudim se não come carne? "
How can you have any pudding if you don't eat yer meat?"

"Você, sim, você atrás dos galpões da bicicleta, fique parado, laddy"
"You, yes, you behind the bike sheds, stand still, laddy"
Fonte: LyricFind
Compositores: Roger Waters
Letras de Another Brick in the Wall © BMG Rights Management

PENNY LANE
Os Beatles
Em Penny Lane, há um barbeiro mostrando fotografias
In Penny Lane, there is a barber showing photographs

De todas as cabeças que ele teve o prazer de conhecer
Of every head he's had the pleasure to know

E todas as pessoas que vêm e vão
And all the people that come and go

Pare e diga: "Olá"
Stop and say, "Hello"
Na esquina é um banqueiro com um automóvel
On the corner is a banker with a motorcar

E crianças riem dele pelas costas
And little children laugh at him behind his back

E o banqueiro nunca usa um mac
And the banker never wears a mac

Na chuva, muito estranho
In the pouring rain, very strange
Penny Lane está nos meus ouvidos e nos meus olhos
Penny Lane is in my ears and in my eyes

Lá embaixo do céu suburbano azul
There beneath the blue suburban skies

Eu sento e, enquanto isso, volto
I sit, and meanwhile back

Em Penny Lane, há um bombeiro com uma ampulheta
In Penny Lane there is a fireman with an hourglass

E no bolso está um retrato da rainha
And in his pocket is a portrait of the Queen

Ele gosta de manter o carro de bombeiros limpo
He likes to keep his fire engine clean

É uma máquina limpa
It's a clean machine
Penny Lane está nos meus ouvidos e nos meus olhos
Penny Lane is in my ears and in my eyes

Quatro tortas de peixe e dedo
A four of fish and finger pies

No verão, enquanto isso de volta
In summer, meanwhile back

Atrás do abrigo no meio da rotatória
Behind the shelter in the middle of the roundabout

A enfermeira bonita está vendendo papoilas de uma bandeja
The pretty nurse is selling poppies from a tray

E embora ela se sinta como se estivesse em uma peça de teatro
And though she feels as if she's in a play

Ela é assim mesmo
She is anyway
Em Penny Lane, o barbeiro depila outro cliente
In Penny Lane, the barber shaves another customer

Vemos o banqueiro sentado esperando por uma guarnição
We see the banker sitting waiting for a trim

E então o bombeiro corre
And then the fireman rushes in

Da chuva, muito estranho
From the pouring rain, very strange
Penny Lane está nos meus ouvidos e nos meus olhos
Penny Lane is in my ears and in my eyes

Lá embaixo do céu suburbano azul
There beneath the blue suburban skies

Eu sento e, enquanto isso, volto
I sit, and meanwhile back

Penny Lane está nos meus ouvidos e nos meus olhos
Penny Lane is in my ears and in my eyes

Lá embaixo do céu suburbano azul
There beneath the blue suburban skies

Penny Lane!
PENNY LANE!
Fonte: LyricFind
Compositores: John Lennon / Paul McCartney
Letras de Penny Lane © Sony/ATV Music Publishing LLC



sábado, 20 de junho de 2020

650 - CHEGA - TROPAS DE COMBATE OU CARNE P'RA CANHÃO * ............

               


Tenho observado o CHEGA desde que apareceu. Surgiu rápido e crescendo depressa, creio não me enganar se lhe prognosticar uma votação considerável no próximo acto eleitoral.

Portanto o CHEGA chegou, encontrou o seu lugar entre uma abstenção composta maioritariamente por desiludidos com os partidos do sistema, os tais partidos instalados, acomodados e incapazes de mudar, um nicho de eleitores considerável, perto dos cinquenta por cento do eleitorado. Mas será o CHEGA capaz de crescer, de os convencer e manter a todos ?

Surripiando votos quer aos desiludidos, quer aos partidos instalados, quer aos abstencionistas convictos e descrentes, o CHEGA cresceu depressa e mais depressa ainda subiu nas sondagens mas, há sempre um mas, quantos mais desses eleitores virá com o tempo a conquistar, a convencer, a fidelizar ou a perder ?



É certo que cresceu depressa, mas as pressas por vezes dão em vagar, o CHEGA por mor dessa pressa com que se guindou à celebridade cresceu desorganizadamente, atabalhoadamente, pisando muitas vezes os princípios que diz defender e não cuidando de acautelar a democracia interna, democracia que portas fora diz querer vender-nos. Tenho observado cuidadosa e acauteladamente o seu percurso, o caminho trilhado e, neste momento diria que o meu prognóstico apontaria para o arame, para a balança ou seja quanto a mim o CHEGA é neste momento mera atracção circense balanceando perigosamente no arame e alvo de potentes holofotes.
  
Manipulando causas fortes e fracturantes de grande efeito mediático, mobiliza as suas hostes mas não toca fundo nos reais problemas do país, ou se toca fá-lo pela rama, nem sempre apresentando as melhores soluções, como no caso da TAP acerca da qual afirmo há muitos anos que dada, oferecida, seria cara para quem ficasse com ela e, se assim já era há anos, o tempo confirmou o dito. O recém-chegado CHEGA não pode limitar-se a perseguir, secundarizando e secundarizando-se, a agenda conjuntural do governo, dos mídia, da esquerda ou da direita e atiçar-lhes os cães danados, o CHEGA tem que propor medidas estruturais de vanguarda e solução para os problemas que compõem o desastre da nação.



Nem o CHEGA pode ser o partido de um homem só, André Ventura e o CHEGA são inseparáveis e indispensáveis mas não chega, o CHEGA não pode ser um partido de breve crescimento e breve existência, como aconteceu com o PRD de Hermínio Martinho, o CHEGA tem que chegar longe porque lhe cabe uma missão quase impossível, pelo menos jamais possível de ser levada a cabo pelos partidos do sistema que à saciedade nos demonstraram não estar interessados em fazê-lo mas somente neles mesmos apostarem ou por eles mesmo fazerem.

Agora corre o CHEGA atrás da inútil causa da esquerda, da agenda da esquerda e do racismo, tendo convocado para dia 27 uma manifestação a decorrer debaixo desse tema. É uma causa perdida, não há racismo em Portugal, nunca houve, isso é coisa dos States e da África do Sul, nós temos focos de violência rácica pontuais, choques localizados, não existe entre nós uma doutrina ou prática racista generalizada e, queixas apresentadas por pretos são-no igualmente por brancos, são problemas do país, radicam no caminho para a miséria que trilhamos, pretos e brancos, e não em quaisquer animosidades de cor contra cor ou de raça contra raça.

Quanto a uma estratégia de crescimento sustentado do CHEGA diria que tarda em chegar, os sound bites lançados até agora têm mobilizado o seu eleitorado básico e instintivo, de revoltados a desiludidos, têm sobretudo apelado à classe baixa, a que mais sofre com os males da desgovernação que há décadas tomou conta do governo da nação. Não vejo o CHEGA preocupado com os problemas estruturais do país e que possam mobilizar a classe média e alta, sabido não podermos sobreviver sem elas, sabido quão elas têm sido também cilindradas pela estupidez que tomou assento no parlamento, nos ministérios, direcções gerais e tutti quanti nos desgoverna.



O percurso apressado do CHEGA não está a construir alicerces ou a prometê-los, está a acicatar as tropas de combate, carne para canhão que lhe garantirá uma vitória ou duas, dois ou três anos de sucesso, mas nunca lhe conferirá solidez para se manter confortável nas sondagens e no poder, criando mesmo um risco acrescido de, entre classe média, média alta e alta, cavar ainda mais fundo a generalizada descrença nelas existente.

A fasquia terá que ser colocada mais alta ou o CHEGA não passará da colheita do breve benefício do populismo que não de todo erradamente tem vindo a ser acusado. Sobretudo não pode continuar sendo o partido de um homem só, terá que convencer, não aliciar mas convencer intelectuais, artistas, académicos, cientistas, investigadores, professores, enfermeiros, carpinteiros, serralheiros, empresários, quadros médios e superiores, e não pode acudir automaticamente a todas as causas pontuais mas dedicar-se sim a problemas globais, estruturais, dando de si uma imagem sólida, eficiente, capaz, responsável, íntegra, e gerar confiança, no futuro, nos portugueses, em Portugal. Nem tão pouco deve acudir ou lamentar a falta de autoridade mas exercê-la, sem medo, quem tem medo compra um cão, e exercê-la é fazê-la cumprir, nem que para isso tenha que distribuir bastonadas à direita e à esquerda, seja sobre pretos ou sobre brancos.  

Abracei o CHEGA mas, em demasiadas situações não me sinto identificado com as suas posições nem com algumas atitudes de militantes seus, de topo e de base, deixando-me por vezes mesmo desconfortável, diria que envergonhado pois quanto a mim o ser humano há muito abandonou as cavernas e, se o adjectivo sapiens que caracteriza hoje o homo significa alguma coisa, é tempo do CHEGA demonstrar a todos que essa sapiência é também uma sua particularidade, quando não será mero epifenómeno e daqui a meia dúzia de anos esquecido para ser meramente lembrado a título de anedota.

Por favor, chega, não me envergonhem, dêem-me causas nobres pelas quais combater, causas pelas quais valha a pena bater-me, batermo-nos, causas que devamos defender, basta de pão e circo, chega de jogos de coliseu.  


* NOTA: Sob o lema CHEGA  ler também os textos, 648, 647, 646, 644, 643, 639a  O CHEGA E A MÁSCARA DO ZORRO... , 635, 631, 630a  CHEGA, O RENASCER DA FÉNIX ...  e outros ....

domingo, 14 de junho de 2020

ARRASTAR MULTIDÕES, OU ARRASTAR OS PÉS * inédito, por Maria Luísa Baião



Desde que em 73 ou 74, ano em que obteve algum sucesso com o aluguer de um monte a um grupo de escravos da colónia que a vida lhe sorria. De tal modo que, sem dar nas vistas e mantendo embora a mesma casinha simplória que alugara quando aqui assentara arraiais, mandou erguer no meio da serra um monte nada modesto que hoje não venderia a ninguém por menos de cinquenta ou setenta mil.

Foi o primeiro agente imobiliário que a terra conheceu, alugar o monte abrira-lhe horizontes conhecimentos e contactos que nunca pensara vir a abarcar, tanto que se dá mal com o protocolo e nunca se sentiu à vontade entre gente normal. Os recalcados complexos de inferioridade com que aqui chegou depressa lhe passaram, só não reparou que o rodeavam tolos que o incensaram mas que agora lhe não são capazes de acudir.

A favela estava carente, fez umas gracinhas e brilhou, tendo caído no goto de quem nunca soube o que querer e ainda não sabe, embora tenha passado tanto tempo que já lhe chamam avô. Foi apostando sempre no imobiliário, sempre devagar, que os excessos de oferta nunca foram bons para o negócio e é sabido que a procura é mais mansa se não tiver muito por onde se afirmar. A par dos negócios que ia controlando com mão de ferro fazia umas obrinhas de melhoramentos na favela, o que fez com que, para onde quer que fosse, arrastasse invariavelmente atrás de si uma multidão agradecida, ainda que cada vez mais empobrecida.

Depois descobriu acidentalmente que essas multidões estavam ávidas, há muito ávidas de consideração, coisa banal barata mesmo, que começou por distribuir parcimoniosamente, ainda que a baixo preço e hoje dissipa por altos valores. Negócio é negócio mas as coisas não vão bem. A turba é ingrata e a horda não lhe sai já nada barata. Uns exigem cada vez mais obras, a consideração passou de moda e atingiu uma cotação que anda pelas ruas da amargura, outros já não vão lá por menos e só lhe gritam;

- Fiquemos !

Ou uns ou outros diremos, não vai já decerto contentar ambiciosos há trinta anos desejosos e muito menos os gananciosos que lhe apertam o cerco, lhe tolhem o passo, roubam o espaço e dele tentam fazer um palhaço. Não deixa nem se queixa, vai andando, mirrando, a consciência não lhe pesa, a coerência ! Ah! A coerência ! Essa sim que coincidência ! Que ambivalência ! É um homem de sucesso a quem o processo avilta, mas em qualquer entrevista, se pelo progresso lhe perguntam, não hesita;

- Ah ! O progresso ! Não seria má ideia não !

E por aí se fica.

Amealhou um capital nada desprezível durante todos estes anos, pena que o ande a desbaratar em atitudes senis que já não convencem ninguém. Morrerá pobre se por este caminho teimar, pobre e sem glória, já que vassalos, gonçalos e outros que tais, mais dados aos vis metais, dele fizeram o bezerro de oiro que uns tolos adoram e outros ignoram. Como deus não terá grande sucesso neste mundo de mitos, como fetiche acredito mesmo que venha a ser empalhado ou melhor, embalsamado, se no entretanto não ficar emparedado.

É este profano que querem consagrar quem fica mais pequeno a cada dia que passa, em simultâneo passam-se os dias, acumulam-se os dias em que nada se passa, há-de até chegar o dia em que nesta cidade virtuosa, nem uma passa, o que não deve demorar muito até que aconteça, visto que todos se afadigam para que nada se faça, mas tudo pareça. Dos tempos de rapaz ficou-lhe o hábito de andarilho ou não tivesse ele corrido meio mundo para aqui chegar, por isso está velho dizem uns, que não dizem outros, está apenas gasto por baixo de tanto andarilhar, e a gente sem saber no que acreditar.

No entanto quando passa deixa já no ar um excessivo cheiro a naftalina, enquanto as criancinhas, somente as criancinhas ou outros inocentes, divisam já em seu redor seráficos querubins, anunciando o abandono da alma, gulosa de ascender à eternidade e posar desnuda nos frescos da abobada que o espera, que a todos espera.

Já não arrasta multidões, um fenómeno sociológico que a economia o desenvolvimento e o progresso futuros hão-de explicar para o ano faz com que já não arraste multidões. Vagarosa e penosamente arrasta os pés por estas calçadas que esventrou e só as crianças lembrarão um dia aquele andarilho que por aqui passou.


* NOTA: Vasculhando uma pouco usada gaveta dei com um nítido primeiro rascunho deste inédito de Maria Luísa Baião, impresso numa folha A4 já amarelecida pelo tempo, não datado e entalado entre dois livros que em tempos idos agitaram a urbe, ambos do mesmo autor ainda que separados cronologicamente por dúzia e meia de anos, ESTA CIDADE E EU do ano 2000 um deles, e UM PROJECTO PARA O FUTURO o outro, de 2016. Atendendo ao lugar em que o rascunho se encontrava diria que o mesmo reportará alegadamente ao autor das obras mencionadas. Tive o cuidado de nada alterar, cuidei somente da pontuação e de um ou outro pormenor de somenos importância. Eu próprio que com ela privei ignoro o sentido de alguns parágrafos, talvez o leitor faça deles uma leitura mais completa que a minha, por esse motivo impunha-se que o texto fosse minimamente remexido por mim, facto que respeitei em memória e respeito pela sua autora.A seu tempo darei a minha opinião sobre este pequeno livro que somente agora comecei a ler.