Dia
de sorte, a fila para entrada no híper teria umas três pessoas, pelo que mais
de uma hora antes do que eu pensara estava aviado e de novo cá fora curtindo o
sol. Telefonei-lhe,
-
Mas Berto, porra pá, mesmo agora acabei de me sentar e de levar a primeira
tesourada, não me irrites amor, não há por aí táxis a jeito querido ?
Bem
demais sabia ela que havia táxis a dois metros, fiz sinal a um, carregámos os
sacos e ala para a Cartuxa. Não estou certo de ter sido o seu instinto de
sobrevivência ou o meu espírito de provincianismo parolo o culpado, por isso é
difícil dizer quem foi o ingénuo e o matreiro, o predador e a vítima. Ele fora
o primeiro táxi que me aparecera a rodar livre, ele, a raposa desta história e,
montado ao volante dum carro mais que aceitável entabulámos conversa directos à
Cartuxa. Depressa p’lo discurso nos identificámos como apoiantes ou não de
diversos assuntos e personalidades da nossa atribulada e desgraçada vida
politica até que, chegados, me apressei a pagar-lhe a corrida e puxei duma nota
de dez euros para pagar seis e meio. Até que não fora cara a corrida, teria ido
a pé caso estivesse em compras, de fato de treino e com vagar para uma
marchazinha de trote a galope. Eu dissera-lhe que lhe daria um euro e meio em
moedas para lhe facilitar o troco e ele, já de nota de cinco na mão estendida
para me devolver aguardava que eu pescasse as ditas moedas no meu esquisito
porta-moedas.
Demorei
algum tempo mas por fim lá as separei e lhas passei para a mão, missão
cumprida, agradeci e desci com pressa pois ainda havia que descarregar o carro,
depois, arrumar convenientemente todas as compras na despensa, garagem e
garrafeira iria ocupar-me parte considerável do dia pelo que somente passada
uma hora ou mais recordei que a mão estendendo-me a nota de 5 euros já lá não
estava quando lhe passara as moedas. Nem a mão nem a nota. Nesse entretanto,
toma troco, toma moedas, toma nota, devolve outra nota, algo mais próprio de um
ilusionista batido se passou, já repararam no que foi ou qual terá sido a
manobra ou estarão tão distraídos quanto eu estava ? E será que ele contava já
com essa distração ? Terá sido golpada ou meramente cabeça no ar, parvoíce
minha ? Sinceramente não sei. Pensando bem na coisa, e se a golpada se repetir
dez vezes ao dia, e o dia tem oito horas ou mais de trabalho, portanto muitas
oportunidades para a repetição da gracinha, o ilusionista tirará mais uma boa
renda mensal.
Mas
estou a delirar, não passou de provincianismo meu certamente, e acabei por nem
lhe levar a mal a palmada que me deu ou que lhe consenti. O mundo não pertence
a quem anda a dormir na forma, pertence a quem tem olho… Naturalmente e depois
desta manobra de que fui involuntariamente vítima colaborante veio-me à memória
um velhinho filme visto por nós há muitos muitos anos, O COWBOY DA MEIA-NOITE,
cujo personagem principal, Dustin Hoffman, interpretando a figura de Rato Ratso
tornou esse filme inesquecível, aliás inolvidável até pela banda sonora, e
recheado de personagens com os quais rapidamente simpatizei. Como levar-lhe
então a mal a golpada ou a minha distração ? Tinha o nome numa chapa no
tablier, lembrei-o e sorri.
O
futuro ficou, e mercê do vírus, do confinamento, das restrições sociais e do
medo fiquei eu repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer
contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me
fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir nem reagir violentamente à
percepção paranóica das coisas e das pessoas, todas elas agora me parecendo
perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e
imaginárias poderão ser as razões para essas sensações de sufocamento, o peito
apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os
ressentimentos.
Não
é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão ou recuso a temida morte. Quantas
noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão terei
capacidade para suportar veremos, quanto martírio me torturará ainda nunca
saberei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e atribulação colocarei na
conta do deve e haver desta catarse que abnegada ou resignadamente aceito mas
contra a qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação
e aspiração à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro
o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor
desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser
condenado e por ficar livre. A maçã comida no Paraíso saiu-nos cara. Era
agreste este mundo, pior ficou assim repentinamente virado de pernas para o ar,
cresta-nos toda uma vida, todo um futuro. Nem é mundo que queiramos, nem vida
que desejemos, sabemo-lo.
Tão
bem o sabemos que tudo fazemos por ignorar tanta parvoíce, tanta estupidez,
precisamente o que não podemos fazer, precisamente o que de mais errado
poderíamos fazer. Quanto mais nessa ignorância e alheamento teimarmos mais a
coisa parecerá afundar-nos. Ilusão. Quão gritante e desesperante ilusão.
Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas parecem
recusar-nos até em sonhos. Medo, desconfiança e desesperança parecem unir-se
pra que não nos realizemos p’ra que jamais se concretize a nossa mínima
esperança.
Cerceia-nos
o desânimo e, o desespero mais frustrante torna toda a vida social parada, vidas
paradas, carreiras paradas, maternidades adiadas, maiores idades adiadas, o
establishment instalado está fazendo dos homens crianças tontas, incapazes e
irresponsáveis. Repentinamente a minha vida, a nossa vida tornou-se tão
frustrante quanto o calor dum sol benfazejo sob o qual buscamos comprazer-nos em
dia tímido de céu azul em que nos atrevamos a sair à rua, dar dois passos no
jardim do bairro, respirar o ar puro, sem máscara, um ar saudoso onde nem pontilham
flocos brancos, algodoados, antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e
prenúncios exasperantes dos dias jamais cumpridos mas por cumprir por neles se
alojarem as metas que almejamos atingir.
Não
sonhes, não sonhemos, recusa sonhos, ilusões e devaneios, pois isso é tudo
quanto o futuro tem para nos dar por estes dias. Para cada um de nós o futuro
traçou um caminho a seguir, um silício, um suplicio imposto como via única,
solução única, e força-nos a cumprir esse mandamento único debaixo da dureza
dos dias que se vivem, no tempo e vida que nos resta, que o soframos na pele
com a mesma abnegação, intimidade e segredo com que guardávamos para nós os
sonhos de esperança outrora contemplados, pior que tudo o futuro espera de nós
uma rendição incondicional. E onde o lugar para a coragem e a esperança ? Não,
não podemos soçobrar nem desistir, nem nos pode ser consentido acreditar nem
aceitar a pressão desta força invisível nem o caminho imposto, o mundo nunca
foi isto, este negrume qual nevoeiro rasando o chão e envolvendo a plebe, o
lumpemproletariado, a escumalha, a ralé, a classe, o mundo sempre foi e terá
que voltar a ser a esperança pendendo da mesma frondosa árvore cuja sombra os
nossos sonhos sempre acoitou e terá que continuar acoitando.
Não
aceitemos este mundo bivalente e dual mais curto que extenso de agora, nem éden
nem utopia oferecendo-se-nos como uma maçã no paraíso, ele nem foi feito para
nós nem tem espaço para que nos cumpramos. Sim aceito, é ressentimento e dor
também por não conseguir esquecer-te, é como um feitiço sobre mim caindo e
revolvendo-me numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te
ofendi por palavras e actos, nem quantas te relembro ouvindo e sorrindo
nostálgica numa ternura impaciente tudo que eu dizia. Sonhemo-nos como quando
enamorados e a tua respiração quente no rosto me enternecia, leva-me de novo a
olhar-te no fundo dos olhos, a beijar-te terna, docemente, e, num longo e
aconchegado abraço chega a mim o teu peito arfando no qual desejo de novo perder-me
e afogar-me. Deixa que as mãos vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas,
aperta-as como fazias, aperta-as agora com mais força, como quem prende o
futuro e o desejo numa avidez não saciada que me faça esquecer o exasperante e sofrido
passado que nos infligimos, solicita-me que avance e te descubra tal como
quando eras para mim um oceano por desvendar e me perdia deslumbrado, extasiado
na premência de ti e de mim, e te percorria suavemente as curvas dessa imagem
que ainda me tolhe, que ainda me tolda os sentidos.
Sim
amor, salvemo-nos enquanto é tempo querido, acaricia-me o peito, que a tua boca
de novo me sugue num ímpeto que juro te devolverei, faz-me tremer novamente de
emoção, afaga-me sofregamente os seios endurecidos cujo odor sempre adivinhaste
e adoraste enquanto os teus dedos por mim passeavam colhendo o cheiro
inebriante duma oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas jurámos
e cumprimos, porque afinal, e não o neguemos, existem sonhos, desejos, ilusões,
sentidos e emoções a partilhar.
-
Berto, que jamais sejam por nós travadas as promessas, nem as esperanças, falam
numa nova ordem social e embora sabendo contudo quanto de difícil, senão
impossível se nos depara, recusemos todavia abdicar, reneguemos o momento,
sonhemos a realidade, sacudamos do jugo as novas imposições com que montando o
medo do vírus nos querem albardar. Cada um de nós tem um caminho a seguir,
sigamo-lo sem nenhuma ilusória intimidade, antes concreta e assumida,
partilhemos e cumpramos conscientes o pouco que de inolvidável possamos ainda
viver e jamais esqueçamos tudo a quanto platonicamente aspirámos e viemos a
cumprir. Querido aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos,
porque ainda que confinados, condicionados, a verdade é que desde sempre nos pertencemos.
Porque embora o não queiramos, aceitemos que afinal há longe e há distância mas
também futuro e esperança, reconheçamos quanto de impossível nos separa e não
deixemos que um vírus, um mero vírus nos vire um contra o outro e muito menos a
vida. Bertinho amemo-nos. E vivamos sem tormentos e plenamente felizes vidas
cheias, preenchidas, vidas ! Chegou a Primavera tempo de luz e de esperança,
que seja como sempre foi, de criação e abastança, de planos, sonhos e quimeras.
Sim,
também eu fiz planos, que planifiquei e organizei, pois saibam ter eu comprado também
uma agenda p’ra apontar os sonhos, sonhos, desejos, tudo que planeei. Sim, ouvira
na esplanada alguém, penso que um ilustre magistrado, dizendo que, desde que as
partes o desejem, até em cima de uma agenda, ou deitados… Deitados, em pé,
coitados de nós querido. Coitada de mim e do meu sonho, desejo inventado, sonho
e desejo de gnomo. Fossem gnomos ou elfos, qual o interesse agora, depois de dar
ouvidos a Delfos e por não querer vê-los a todos deitados borda fora.
Tende juízo augurara a pitonisa, liga a
bateria, os piscas, as luzes, dá corda aos sapatos, aos patins, piramiza,
dedica-te à poesia, ironiza. Ironiza e brinca, esquece, distrai-te, nunca afies
o dente que não trinca, vai para o café mandar bitaites. Apaga a luz, esquece a
musa, não mates a cabeça, usa-a, entala o pescoço numa eclusa, exorta a vítima
em ti, exorta-a. Castiga-te, bebe um café, sê masoquista, narcisista já és, e
convencido, e egotista.
Berto
tens muito por onde te entreter, a Primavera é grande, mortifica-te a valer e
poupa-nos, sai desta land. Desopila, emigra, não atormentes, faz-te à vida, dá
paz às gentes. Já se não vendem agendas meu querido parvalhão, só tablets,
notebooks, vives ainda no tempo das gregas calendas, detestas o McDonald’s, o
Starbucks.
Apesar
da noite de breu que sobre nós se abateu, de toda a vida que nos mudaram,
alteraram, do medo, do controlo, das imposições e explosões de fúria, amo-te
ainda e ainda te sonho minha querida. Quantas vezes te sonho apertando-te
egoisticamente contra mim, protegendo-te, defendendo-te desta sina ameaçadora
pairando sobre nós, nuvem escura, polvo, monstro em fuga ante o meu grito, aqui
neste mar de tristeza mando eu, eu e tu meu amor a quem cegamente amo, porque tu
albergas no teu sorriso um mapa de viagem, o teu olhar perde-se em distâncias
prometidas, na tua tez, beleza e coragem de jovem pajem, tua flor tomo por
jazida de riquezas e mistérios mil.