terça-feira, 27 de junho de 2023

789 - BERTINHO, O COWBOY DA MEIA-NOITE !!!

 

 

Dia de sorte, a fila para entrada no híper teria umas três pessoas, pelo que mais de uma hora antes do que eu pensara estava aviado e de novo cá fora curtindo o sol. Telefonei-lhe,


- Mas Berto, porra pá, mesmo agora acabei de me sentar e de levar a primeira tesourada, não me irrites amor, não há por aí táxis a jeito querido ?


Bem demais sabia ela que havia táxis a dois metros, fiz sinal a um, carregámos os sacos e ala para a Cartuxa. Não estou certo de ter sido o seu instinto de sobrevivência ou o meu espírito de provincianismo parolo o culpado, por isso é difícil dizer quem foi o ingénuo e o matreiro, o predador e a vítima. Ele fora o primeiro táxi que me aparecera a rodar livre, ele, a raposa desta história e, montado ao volante dum carro mais que aceitável entabulámos conversa directos à Cartuxa. Depressa p’lo discurso nos identificámos como apoiantes ou não de diversos assuntos e personalidades da nossa atribulada e desgraçada vida politica até que, chegados, me apressei a pagar-lhe a corrida e puxei duma nota de dez euros para pagar seis e meio. Até que não fora cara a corrida, teria ido a pé caso estivesse em compras, de fato de treino e com vagar para uma marchazinha de trote a galope. Eu dissera-lhe que lhe daria um euro e meio em moedas para lhe facilitar o troco e ele, já de nota de cinco na mão estendida para me devolver aguardava que eu pescasse as ditas moedas no meu esquisito porta-moedas.


Demorei algum tempo mas por fim lá as separei e lhas passei para a mão, missão cumprida, agradeci e desci com pressa pois ainda havia que descarregar o carro, depois, arrumar convenientemente todas as compras na despensa, garagem e garrafeira iria ocupar-me parte considerável do dia pelo que somente passada uma hora ou mais recordei que a mão estendendo-me a nota de 5 euros já lá não estava quando lhe passara as moedas. Nem a mão nem a nota. Nesse entretanto, toma troco, toma moedas, toma nota, devolve outra nota, algo mais próprio de um ilusionista batido se passou, já repararam no que foi ou qual terá sido a manobra ou estarão tão distraídos quanto eu estava ? E será que ele contava já com essa distração ? Terá sido golpada ou meramente cabeça no ar, parvoíce minha ? Sinceramente não sei. Pensando bem na coisa, e se a golpada se repetir dez vezes ao dia, e o dia tem oito horas ou mais de trabalho, portanto muitas oportunidades para a repetição da gracinha, o ilusionista tirará mais uma boa renda mensal.


Mas estou a delirar, não passou de provincianismo meu certamente, e acabei por nem lhe levar a mal a palmada que me deu ou que lhe consenti. O mundo não pertence a quem anda a dormir na forma, pertence a quem tem olho… Naturalmente e depois desta manobra de que fui involuntariamente vítima colaborante veio-me à memória um velhinho filme visto por nós há muitos muitos anos, O COWBOY DA MEIA-NOITE, cujo personagem principal, Dustin Hoffman, interpretando a figura de Rato Ratso tornou esse filme inesquecível, aliás inolvidável até pela banda sonora, e recheado de personagens com os quais rapidamente simpatizei. Como levar-lhe então a mal a golpada ou a minha distração ? Tinha o nome numa chapa no tablier, lembrei-o e sorri.


O futuro ficou, e mercê do vírus, do confinamento, das restrições sociais e do medo fiquei eu repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir nem reagir violentamente à percepção paranóica das coisas e das pessoas, todas elas agora me parecendo perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias poderão ser as razões para essas sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos.


Não é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão ou recuso a temida morte. Quantas noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão terei capacidade para suportar veremos, quanto martírio me torturará ainda nunca saberei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e atribulação colocarei na conta do deve e haver desta catarse que abnegada ou resignadamente aceito mas contra a qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação e aspiração à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser condenado e por ficar livre. A maçã comida no Paraíso saiu-nos cara. Era agreste este mundo, pior ficou assim repentinamente virado de pernas para o ar, cresta-nos toda uma vida, todo um futuro. Nem é mundo que queiramos, nem vida que desejemos, sabemo-lo.


Tão bem o sabemos que tudo fazemos por ignorar tanta parvoíce, tanta estupidez, precisamente o que não podemos fazer, precisamente o que de mais errado poderíamos fazer. Quanto mais nessa ignorância e alheamento teimarmos mais a coisa parecerá afundar-nos. Ilusão. Quão gritante e desesperante ilusão. Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas parecem recusar-nos até em sonhos. Medo, desconfiança e desesperança parecem unir-se pra que não nos realizemos p’ra que jamais se concretize a nossa mínima esperança.


Cerceia-nos o desânimo e, o desespero mais frustrante torna toda a vida social parada, vidas paradas, carreiras paradas, maternidades adiadas, maiores idades adiadas, o establishment instalado está fazendo dos homens crianças tontas, incapazes e irresponsáveis. Repentinamente a minha vida, a nossa vida tornou-se tão frustrante quanto o calor dum sol benfazejo sob o qual buscamos comprazer-nos em dia tímido de céu azul em que nos atrevamos a sair à rua, dar dois passos no jardim do bairro, respirar o ar puro, sem máscara, um ar saudoso onde nem pontilham flocos brancos, algodoados, antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e prenúncios exasperantes dos dias jamais cumpridos mas por cumprir por neles se alojarem as metas que almejamos atingir.


Não sonhes, não sonhemos, recusa sonhos, ilusões e devaneios, pois isso é tudo quanto o futuro tem para nos dar por estes dias. Para cada um de nós o futuro traçou um caminho a seguir, um silício, um suplicio imposto como via única, solução única, e força-nos a cumprir esse mandamento único debaixo da dureza dos dias que se vivem, no tempo e vida que nos resta, que o soframos na pele com a mesma abnegação, intimidade e segredo com que guardávamos para nós os sonhos de esperança outrora contemplados, pior que tudo o futuro espera de nós uma rendição incondicional. E onde o lugar para a coragem e a esperança ? Não, não podemos soçobrar nem desistir, nem nos pode ser consentido acreditar nem aceitar a pressão desta força invisível nem o caminho imposto, o mundo nunca foi isto, este negrume qual nevoeiro rasando o chão e envolvendo a plebe, o lumpemproletariado, a escumalha, a ralé, a classe, o mundo sempre foi e terá que voltar a ser a esperança pendendo da mesma frondosa árvore cuja sombra os nossos sonhos sempre acoitou e terá que continuar acoitando.


Não aceitemos este mundo bivalente e dual mais curto que extenso de agora, nem éden nem utopia oferecendo-se-nos como uma maçã no paraíso, ele nem foi feito para nós nem tem espaço para que nos cumpramos. Sim aceito, é ressentimento e dor também por não conseguir esquecer-te, é como um feitiço sobre mim caindo e revolvendo-me numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te ofendi por palavras e actos, nem quantas te relembro ouvindo e sorrindo nostálgica numa ternura impaciente tudo que eu dizia. Sonhemo-nos como quando enamorados e a tua respiração quente no rosto me enternecia, leva-me de novo a olhar-te no fundo dos olhos, a beijar-te terna, docemente, e, num longo e aconchegado abraço chega a mim o teu peito arfando no qual desejo de novo perder-me e afogar-me. Deixa que as mãos vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas, aperta-as como fazias, aperta-as agora com mais força, como quem prende o futuro e o desejo numa avidez não saciada que me faça esquecer o exasperante e sofrido passado que nos infligimos, solicita-me que avance e te descubra tal como quando eras para mim um oceano por desvendar e me perdia deslumbrado, extasiado na premência de ti e de mim, e te percorria suavemente as curvas dessa imagem que ainda me tolhe, que ainda me tolda os sentidos.


Sim amor, salvemo-nos enquanto é tempo querido, acaricia-me o peito, que a tua boca de novo me sugue num ímpeto que juro te devolverei, faz-me tremer novamente de emoção, afaga-me sofregamente os seios endurecidos cujo odor sempre adivinhaste e adoraste enquanto os teus dedos por mim passeavam colhendo o cheiro inebriante duma oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas jurámos e cumprimos, porque afinal, e não o neguemos, existem sonhos, desejos, ilusões, sentidos e emoções a partilhar.


- Berto, que jamais sejam por nós travadas as promessas, nem as esperanças, falam numa nova ordem social e embora sabendo contudo quanto de difícil, senão impossível se nos depara, recusemos todavia abdicar, reneguemos o momento, sonhemos a realidade, sacudamos do jugo as novas imposições com que montando o medo do vírus nos querem albardar. Cada um de nós tem um caminho a seguir, sigamo-lo sem nenhuma ilusória intimidade, antes concreta e assumida, partilhemos e cumpramos conscientes o pouco que de inolvidável possamos ainda viver e jamais esqueçamos tudo a quanto platonicamente aspirámos e viemos a cumprir. Querido aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos, porque ainda que confinados, condicionados, a verdade é que desde sempre nos pertencemos. Porque embora o não queiramos, aceitemos que afinal há longe e há distância mas também futuro e esperança, reconheçamos quanto de impossível nos separa e não deixemos que um vírus, um mero vírus nos vire um contra o outro e muito menos a vida. Bertinho amemo-nos. E vivamos sem tormentos e plenamente felizes vidas cheias, preenchidas, vidas ! Chegou a Primavera tempo de luz e de esperança, que seja como sempre foi, de criação e abastança, de planos, sonhos e quimeras.


Sim, também eu fiz planos, que planifiquei e organizei, pois saibam ter eu comprado também uma agenda p’ra apontar os sonhos, sonhos, desejos, tudo que planeei. Sim, ouvira na esplanada alguém, penso que um ilustre magistrado, dizendo que, desde que as partes o desejem, até em cima de uma agenda, ou deitados… Deitados, em pé, coitados de nós querido. Coitada de mim e do meu sonho, desejo inventado, sonho e desejo de gnomo. Fossem gnomos ou elfos, qual o interesse agora, depois de dar ouvidos a Delfos e por não querer vê-los a todos deitados borda fora.


 Tende juízo augurara a pitonisa, liga a bateria, os piscas, as luzes, dá corda aos sapatos, aos patins, piramiza, dedica-te à poesia, ironiza. Ironiza e brinca, esquece, distrai-te, nunca afies o dente que não trinca, vai para o café mandar bitaites. Apaga a luz, esquece a musa, não mates a cabeça, usa-a, entala o pescoço numa eclusa, exorta a vítima em ti, exorta-a. Castiga-te, bebe um café, sê masoquista, narcisista já és, e convencido, e egotista.


Berto tens muito por onde te entreter, a Primavera é grande, mortifica-te a valer e poupa-nos, sai desta land. Desopila, emigra, não atormentes, faz-te à vida, dá paz às gentes. Já se não vendem agendas meu querido parvalhão, só tablets, notebooks, vives ainda no tempo das gregas calendas, detestas o McDonald’s, o Starbucks.


Apesar da noite de breu que sobre nós se abateu, de toda a vida que nos mudaram, alteraram, do medo, do controlo, das imposições e explosões de fúria, amo-te ainda e ainda te sonho minha querida. Quantas vezes te sonho apertando-te egoisticamente contra mim, protegendo-te, defendendo-te desta sina ameaçadora pairando sobre nós, nuvem escura, polvo, monstro em fuga ante o meu grito, aqui neste mar de tristeza mando eu, eu e tu meu amor a quem cegamente amo, porque tu albergas no teu sorriso um mapa de viagem, o teu olhar perde-se em distâncias prometidas, na tua tez, beleza e coragem de jovem pajem, tua flor tomo por jazida de riquezas e mistérios mil.