O meu amigo Nuno não, não é
assim, raramente o vejo preocupado, pelo menos preocupado com o que dele
pensem, só duas coisas lhe interessam e o fazem sair do sério ou nele entrar,
o telemóvel GS5 e as bisnagas, as paletas, os aerossóis, as telas, muros, portões,
paredes, haja pano e tintas e é vê-lo feliz. Ela não, ela é mais a imagem, a
postura, o olor, os quebrantos ou requebros muito à séc. XIX e nem duvido que ainda um dia me
apareça de bustle, aquela armação de arame, vime ou madeira sob os vestidos, vestidos que adora, como adora os chapéus e as cores em especial pela manhã !
- Mas que estão vocês para aí
cochichando, ou estão a cascar em mim ?
Era a Mariazinha, essa amiga que
também abraçou a arte, faz restauros, tem bom gosto e gosta muito de mim. A malta pensa que o restauro é só tintas e pincéis mas enganam-se, mas foi aí que ela
lhes tomou o gosto e depois é ela quem faz tudo em casa, tudo no que aos restauros artísticos concerne, menos a parte da
electricidade, da qual tem um medo que se pela, pela de ficar com os cabelos em
pé, ou sem eles, ora está a coisa explicada, a coisa é a paixão dela, os
restauros. Até os materiais e a sua natureza ela tem que conhecer, e quando
foram e não foram usados, o que muitas vezes permite até identificar quem há quinhentos ou mil anos os usou, e quem pintou ou não pintou isto ou aquilo. Como eu
a entendo, e entendo-a por já ter sentido ser a ignorância um empilhador que
nos tira o fardo de cima, o saber ocupa lugar e pesa, mas infelizmente nos nossos dias há muito boa gente, demasiada
gente que não alimenta vontadinha nenhuma de o carregar...
Ora tendo ela chegado mais tarde
que todos à tertúlia da mesa do “Café Com Todos” lá lhe expliquei ao ouvido
quem era o Silva, o que se tinha passado, há quantos anos, aquela coisa da espinha
atravessada, e não fosse o suave perfume que dela emanava e ter-me-ia ficado certamente por
ali mas assim, quem resiste, eu não e vai daí contei-lhe a história e a vida
do Silva quase desde pequenino.
Há perfumes que nos entopem as
narinas, que nos provocam até dificuldades de respiração e dos quais pelo menos
eu tenho o cuidado de me afastar, deixam-nos de bom senso e de raciocínio embotados,
mas outros há meus amigos que dá gosto inalar, leves, insinuantes, uma emanação
que queremos absorver, sorver, um tapete mágico em que a gente flutua, flutua e
esquece, as horas, o lugar, o motivo, a razão, o móbil, e ficamo-nos por ali,
presos a não sei que inexplicáveis aromas, ou aroma, os sentidos tomados, os
sentidos tolhidos, fascinados, deslumbrados, narinas dilatadas, o cogito
inebriado, o tempo parado, a alma divagando no éter como as ondas hertzianas,
sim essas, as da rádio, e nós embevecidos ante o mundo a nossos pés. Eu nunca
soube ou não me lembro do significado de Rosebud, lembro o filme, vi-o até ao
fim umas dez vezes, e agora perdi-me, falávamos de perfumes e da Mariazinha mas
a que propósito já não sei de todo, ela tem destas coisas, tem classe, tem
patine, tem, tem, tem. Mas de que falava eu, quem souber ou adivinhe que mo
recorde. Para que tenham uma ideia desta Mariazinha é uma amiga de infância de Benedita,
ali nada e criada e que eu conheci quando comecei a namorá-la, namorá-la à
Luisinha pois Benedita era, como disse, a terra onde morámos em crianças. Está
divorciada, teve um casamento que nunca funcionou bem, ele era como ela é,
ele era e é, e ambos ainda são, verdadeiros casos disfuncionais, desgraças e todos os filhos
acabaram sendo como eles, disfuncionais…
Naquela casa nunca havia horários para nada,
regras para nada, ele funcionava sem lhe dar cavaco, ela fazia o mesmo, uma vez
no mesmo sábado apareceram com dois Audi A4 novos que tinham comprado,
separadamente, porque cada um deles sabia por conversas ligeiras entre si que
aquele era o carro preferido e ideal para a família... Outra vez ela, já depois
de divorciada, foi ao stand da Rover tentar a substituição dos pneus a um
outro carro que então tinha, um carro já com três anos, portanto velho, velhíssimo,
acabou vindo de lá com um carrão novo que custou a pagar mas lamentava-se de
não saber como a coisa tinha acontecido… Era tudo assim. Sendo professora
imagino o respeito, o descanso e a concentração dos estudantes, se vos ponho a
par destes pormenores é tão só para termos uma ideia do género da madame Bovary
que encarna esta Mariazinha Bustle Rosebud ou antes como esta encarna aquela…
Mariazinha era louquinha e
fisgou-me o coração muito cedo, numa tarde de verão em que, atrás de um molhe de estevas no
quintal da “Padaria Zambujal” onde brincávamos me puxou pelos suspensórios e, como quem levava as coisas a brincando se virou para mim e me disse:
- Bertinho se um dia formos para
a cama tratas-me por meu capitão ?
- Claro que sim capitão Maria,
mas olhe meu capitão ou fazemos da cama um barco ou vamos precisar dum barco a
sério ou no mínimo dum bom mastro !
- Eu sei meu marujinho eu sei, e quero
um mastro bem em pé, pois deitado não vale de nada não serve para nada, e eu quero
sentir as velas bem enfunadas Bertinho. Gosto de navegar devagarinho querido.
-Tu mandas Maria, és o capitão, perdão
o senhor manda é o capitão, sabes capitoa, bem sei que não és preta mas gosto desse
teu cabelo, dessa carapinha desgrenhada, sabe Deus por causa de quê minha capitã.
Há coisas no nosso subconsciente
de que por vezes nem nos apercebemos, gaiatos já nos adorávamos, depois
crescemos, eu segui Veterinária e ela Arte & História, quem sabe se
influenciados por brincarmos às vaquinhas e aos iogurtes, aos pais e às mães, aos médicos e
enfermeiras, porém tantas vezes brincámos à Florbela Espanca, e ao Túlio Espanca,
mas nenhum de nós seguiu literatura, ou poesia, seguiu ela a especialidade de restauro,
quem sabe se impressionada pelos frescos decadentes das igrejas onde nos
acoitávamos, quem nos explica o subconsciente, quem além de Freud, que eu saiba
ninguém cabalmente, apenas sabemos haver para tudo e todos razões que a razão
desconhece.