sábado, 19 de maio de 2018

502 - MINHA VIZINHA, D. NATÁLIA MARIA, PIA



 MINHA VIZINHA, D. NATÁLIA MARIA, PIA


Tenho uma vizinha que nunca me via,
que nunca me olhava, que me ignorava,
até ao dia
em que o padeiro parou à minha porta,
cedo, e me entregou pessoalmente o pão do dia,
pão que alguém amassara,
ainda quente,
viera casualmente num Mercedes.

Foi este sábado, entregou-mo em mão,
parou à minha porta,
onde eu já o esperava,
Olá ta bom, Olá tudo bem, Obrigado,
Bom fim de semana,
Chau, depois faremos contas,
Obrigado.

E essa vizinha que nunca me via,
que nunca sorria,
p’ra mim não sorrira nunca,
mudou deliberadamente nesse dia,
ou depois disso;

Olá como vai o senhor,
eu vou à mercearia senhor doutor,
quererá o vizinho alguma doçaria,
alguma azevia,
fruta, legumes, pão do dia,
não se acanhe, disponha
estou ao dispor.

Eu sem saber que pensar da magana,
que não tarda até p’lo nome me chama,
e a crer no que vejo, e sinto,
não demorará a meter-me na cama,
é o que pressinto,

pois sempre que me vê afivela o sorriso,
e eu aperto o cinto,
não quero ser apanhado de calças na mão,
ou ficar na mão dela,
tão sorridente e loquaz donzela.

É assim a vida,
feita toda ela de pequenos nadas,
de surpresas,
de cenas inesperadas,
de mulheres viúvas, solteiras, ou mal casadas,

sei quão sou bonito, mas haja contenção,
e respeito, estou no meu direito,
além disso estou comprometido,
não estou à venda,
nem sou um vendido.

Quanto ao meu padeiro,
o tal que parara à minha beira,
à minha porta, num Mercedes preto claro,
reluzente, metalizado, resplandecente, transparente,
nem era dele, era emprestado.

Mas fiz um figurão eu,
ou ele, ao trazer-me o pão naquele carrão
que à minha vizinha deitou abaixo o carão,
a minha vizinha tristinha,
a tal que agora se desfaz em salamaleques,
cortesias, simpatias, empatias,
e insiste em trazer-me da mercearia, queques,
talvez por temer ficar para tia,
sei lá o que pensa a vizinha Maria.

Quis dar-me o número do telefone,
no café, um destes dias,
Depois vizinha, depois,

(vá prá cona da sua tia vizinha Maria),

que eu agora tenho que ir às mercearias,
sabe, tenho a despensa vazia,
e estou com pressa pra ir ver as minhas tias,
a Josefina, a Paquita, a Marianita, a Bia…

Pois, sim, está bem, vá lá, depois …


Poema de Humberto Baião, Évora, 19 de Maio de 2018


quarta-feira, 16 de maio de 2018

ÉTICA VERDE, VEIO UM BURRO E COMEU-A ...


Fora aquela a última vez que me empolgara. Penso que no auditório da U.E. Lembro tê-lo ouvido com atenção de cão, o normal após dez anos de quem nunca soubera o que fazer da sorte que Deus lhe dera. O pessoal estava todo em pé, aplaudindo desde que ele entrara e até chegar ao palco onde já não subiram umas figuras misteriosas que o acompanhavam como moscas. Falou, falou, não disse nada de especial mas toda a gente gostou, e aplaudiu claro, eu também.

Seria a última vez que aplaudiria alguém, Guterres foi mesmo o último a quem bati palmas, depois da desilusão de o ver fugir da responsabilidade, depois de bater a asa deste pântano donde não nos quis salvar deixando-nos atolados. A merda que se seguiria só me deixou mais convicto da minha razão, o totó do Sampaio não teve artes nem manha para se bater com Durão, que lhe fez o ninho atrás da orelha, como fez ao parvalhão do Santana, a quem deixou com o alguidar e o bebé nas mãos, tal qual durante mais de dez anos fez a todos quantos lhe surgiram pela frente. Olhar de peixe morto, um sorriso e uma palmada nas costas e nunca o “porreiro pá” rendeu tanto como nessa áurea época, em que na Tv, nas cadeiras do poder, ocupadas por Santana e por Sócrates, estes se batiam com fé e devoção pelo futebol da nação e arrebatavam multidões como Fátima nunca vira.

Ganhava Sócrates claro, o outro até gaguejar gaguejava, Sócrates era expedito na resposta, sempre na ponta da língua, disparava respostas prontas e eloquentes, era bem-parecido e vestia Armani, marcava presença entre o mulherio, as moscas estavam atentas, temos homem, há que atirá-lo para a frente. Atirá-lo contra as feras, está encontrado o candidato ideal, o animal feroz, tratem das coisas, abram-lhe o caminho, estendam a passadeira, escolham a música, façam que o elejam, estamos servidos, temos homem, este tipo tem muito para nos dar, espremam-no, serve às mil maravilhas, tem todas as qualidades que nos interessam, tratem da coisa p’la calada, não queremos ouvir um zumbido, todos a trabalhar para o futuro. Agora batam a asa sem alarido e atenção, nunca estivemos aqui, nunca nos vimos, nem tão pouco nos conhecemos, deixai-o ir e é esperar, aguardar, ter paciência até ver o marfim escorrendo, estas coisas levam-se com calma, demoram o seu tempo, só resultam se pela calada, o bom é inimigo do óptimo, ele é vaidoso, irá pelo seu pé, nem precisará dum empurrão, já o temos onde o queremos.

Realmente, nem que tivessem andado com uma candeia. Por isso, quando com Sócrates a coisa se repetiu, a entrada triunfal, a música celestial, o cenário preparado, mantive-me calado, olhando, vendo, observando, e lá estavam as mesmas moscas, as mesmas figuras mexendo os cordelinhos, esperando o filãozinho, aguardando o engrossar do fiozinho, é sempre assim, começa tudo de mansinho, as pessoas primeiro, as pessoas não são números, depois, depois cifrãozinho a cifrãozinho é que os rapazes enchem o papinho, não somos muitos, nem somos assim tantos, isto dá para todos, não façam ondas, o povo é sereno, já o temos onde queremos, sempre tivemos, é agora ou nunca, é aproveitar agora que está a dar, Angola nunca foi nossa mas esta merda é, tudo pelo partido nada contra o partido, aproveita Zé.

Paris, por que não ? Faz-te à vida, o futuro é teu, o intelectual és tu, sim, com certeza, uma tese, claro um livro, a malta cá está, a malta comprará, pois a Lena, e a Fernanda, a Clementina, a Natividade, a Fatinha, sorri, sorri muito, aguenta-te quieto, não te mexas agora, não mandes a barraca abaixo, tanto que custou erguê-la, soubesses tu, meio mundo comprado, concelhias, distritais, provinciais, não nos desiludas agora rapaz. 

E o povo rendido, o povo, os concelhos, distritos, províncias inteiras e eu vendo-os, já não empolgado mas ainda interessado no espectáculo, vendo os bastidores, olhando os cenários, mirando os cordelinhos, desiludido, cada vez mais desiludido, e entretanto um monarca pisa também ele o risco, espezinha a ética, um filósofo imaginem, um poeta, de malinha na mão, recheada de dinheiro, recordei de novo as moscas, os moscões, os moscardos, sempre na sombra mas sempre pairando ou poisando sobre todos, vá lá, deixas um cheque e levas contado, igual valor, não perdes nada e ajudas o partido, quem não é por nós é contra nós, e ajudei, eu, o Francisco P e mais umas largas dezenas ou centenas de outros, quem se mete connosco leva já sabes, claro que sei.

Estará arquivada a minha culpa, no banco, um cheque assinado com a minha transgressão, nem sei por quê mas assinei, sim lavei dinheiro, ajudei o partido e o partido ergueu-se quando o país se afundou, mas não, não chegou, apesar disso o partido tem dívidas, milhões, ali é tudo aos milhões, é a nossa grandeza, de pequenez chegaram cinquenta anos, agora é tudo à grande, à grande e à francesa, e quem sair que feche a porta, o último que apague a luz, e eu arrependido.

Arrependido e desiludido, e as moscas as mesmas, a merda a mesma, o cenário, os bastidores, os cordelinhos, os senhores doutores, os louvores, os amores, as consciências, a falta delas, a ética, a desética, que será feito desse monarca que tão pouco tempo reinou ? Terá levado um rombo a sua ética ? Ou será que também ele concluiu, como a distinta Teresa Guilherme, que a ética nunca deu de comer a ninguém ? Será por isso que agora todos trazem a boca cheia dela ? Dela e de boas intenções mas o cálice, emborcá-lo, isso não, isso foi coisa de Sócrates…
“A Morte de Sócrates”, do pintor Jacques-Louis David, 1787  
                                          

quarta-feira, 9 de maio de 2018

A PRETINHA MAIS BONITINHA DA GUERRINHA




Os cambutas andavam na soltura por ali, gingando nos crescidos, xingando um o outro, chutando terra, alastrando o pó vermelho no ar, entupindo narizes, pondo mancha nas roupas secando. Brinca durava já demais, velho Baltazar enxotara eles sem proveito mas mãe lhes viera no ralhar e eles moucos, pararam não, inda aparecendo mais vez e dar logo no desaparecer por trás das cubatas, pisando lavras, assustando galinha que já num punha ovo não. Ginga durar até mãe zangar no sério e dar ralho grande neles.

Só quando Natália deu berro neles os parou, eles temer ela mas vergonha era do cão, só medo mesmo das galhetas travou eles. Cambuta maior era seu filho mesmo, dela e de flecha morto em combate no ano perto de 72. No dia mesmo que cambuta nascia e pai morria no emboscada montada em curva da picada entre Xangongo e Chitado, os de Santa Clara e Ondjiva ainda foram no ajuda mas ser tarde, embate tramou brancos todos. Nem um ficou no contar como fora morrer no abraço mortal da guerrilha.



Natália carregava filho no ventre e ao parir ele, dor estranha atravessou ela como epifania, não sabia ainda mas contado lhe foi depois, seu Abílio, flecha e cabeça de coluna da tropa que serpenteando estava na picada, caíra primeiro de todos, nem vira morte mas lhe ganhara a honra e Natália se fizera respeitada entre sordados. Cambuta ficara se chamando Abílio, como seu pai e Natália se fez flecha em sua vez e ocupou no lugar dele.

Do então adiante ter soldo certo ela, depois nem precisar foi de lavar roupa no branco ou passar ela, muito menos aturar eles deitada na esteira. Natália tinha honra própria mesma e não precisar estar de lavadeira não. No quartel da tropa foi uma cerimónia onde capitão lhe entregou mesmo a divisa e arma própria de Abílio, e desde aí nem lavadeira nem aparadeira da golpadas dos sordados.



Tenente também gostava ela, Natália era preta bonita mais que todas e ali não haver outra como ela, ter sempre sorriso bonito na cara, dente branco e malicia matreira sempre dando alvoroço nos homens e feitiço no tenente. Suas ancas duras e redondas, quando ela queria davam mesmo um requebro no andar e dar pasmar no quem estar olhando, ou lhes viam ela passar. Balanço no andar dar vontade no devorar a todos com seus olhos nele, e depois culpavam ela de deitar doença neles todos, dando sonhos parados e pesadelos abençoados nesses mesmos dias se calhava verem ela passando e se ficavam mesmo no pasmando.

Tenente um dia houve ele ter de puxar dos galões e dar ordem nela, e se não ser assim ao menos foi no parecer, certo é ele estar no mandar e mais certo ainda ser ela seguir ele como cachorro bem mandado, mais certo que ladrar p’ra ele. Aqueles dois não engana não, corpo dela dá doença e dá paz, e quando juntos os dias lhe entusiasmam e darem brilho no olhar deles mesmos.



Bocas pequenas dizer cambuta mais novo ser dele tenente, mas ao certo quem sabe que faz Deus ? Gente só saber Deus não escrever torto por linha direita, Ele é tudo direito mesmo se linha ser torta, como não se cansa de xingar nosso capelão da tropa, sempre acabando sermão com exemplo p’ra preto cumprir e branco ficando a ver, e agora com aquele sermão do não levanta boato não que ser pecado, mas meio mundo apostar cambuta ser filho do graduado nosso tenente.

Natália andar precisada de homem assim, esbelto, bonito, forte, sem medo de dar ordem nela. Tirou até dela vício de fumar tabaco dentro da boca que ser vício de velho, agora só no mato em operações de combate e p’ra inimigo não ver mesmo cigarro brilhante de aceso na noite, nem cigarro a arder nem relógio se poder levar.



Por isso paz sorrir na cara deles dois ambos e felicidade fazer sua caminhada como lavra na tonga, ela não largar ele nunca e ser seu braço direito no arriscar, na mata ou na picada, mas lhe dar três passos sempre no avanço do caminhar, mulher de respeito vai na esteira de seu homem e nunca atravessar no caminho dele, não ser bonito.

Ao certo nenhum saber se tenente ter mulher branca bonita na metrópoles esperando ele, mas estes dois dando cambão dá gosto de ver eles, sempre no protegendo, sempre no amando, sempre na paz e no descansar da alma que Deus dá. Eles se esconder e se enrolar na noite da mata p’ra ninguém olhar, p’ra ninguém ver, p’ra ninguém saber seu segredo bem sabido e no toda gente conhecido. Até lá no quartel nosso graduado p’ra um lado Natália bonita no outro lado, nã se misturando, nem sequer falando p'ra não for revelado esse tal segredo de todos sabido e por todos ouvido.

Dá no gosto vê-los no voto cumprido, coração ligado, amor escondido, fado cantado que todos cantá menos nosso tenente que ser o felizardo. No futuro que sina vai no dar nem Deus lhes saberá.

Por agora bem está tudo e todos, Nzambi no dorme.







segunda-feira, 7 de maio de 2018

SE NÃO PODES VENCÊ-LOS ALIA-TE A ELES ...


Apesar de cedo e do cacimbo caindo, em redor do povoado a vida seguia o seu curso normal, com as populações alheadas e entretidas nas lavras, em especial as mulheres, cujo ritmo e batida das enxadas nas tongas coincidia com o bater do pilão moendo a mandioca, ou o caju, ou martelando a fuba em almofarizes improvisados de igual modo há séculos, tocos de troncos cujo interior era pacientemente escavado.

Aos homens cabia caçar, traziam de vez em quando uma pacaça, e de quando em vez um vinho turvo e grosso que nem sei como e de que seria feito. À noite era certo gingarem em volta da fogueira brandindo lanças e catanas, catanas que por vezes erguiam à altura do pescoço simulando um golpe rápido, um golpe só, único, fatal, e que não podíamos deixar de ver como dirigido a nós brancos, somente não sabendo quando, talvez quando deixasse de ser sentida a nossa necessidade. A este frenesim escapavam as metralhadoras por lhes estarem nessas ocasiões solenemente vedadas.

Eram estes homens que se despiam de preconceitos e segredos quando banhados no vinho, gingando e saltando sobre as labaredas, quem tínhamos de instruir, formar, acompanhar, com quem lutávamos lado a lado, em quem confiávamos, inda que por vezes nos aparecessem nem sabíamos de onde, e depois desaparecessem de igual maneira como se alguém que não nós, alguém desconhecido, tal coisa lhes ordenasse, e ordenava, pois tantas foram as situações que a regra acabaria por confirmar a norma, isto é as nossas impressões.

Não era fácil conviver lado a lado e repartir perigos com aqueles que dia a dia se amparavam, nos acompanhavam, mas de noite vituperavam destilando contra nós o ódio ao branco, além de perigoso era um dilema sobre o qual dificilmente nos equilibrávamos, pelo que vivíamos na corda bamba, quer nós quer eles, pretos, pois se estávamos lado a lado após treze longos anos de guerra aberta, que deixara feridas insanáveis, raivas e ódios a pedir vinganças, não deixava de ser um legado que não nos permitia dormir descansados mesmo sabendo que a necessidade de nós lhes amolecia as vontades. Enquanto nos mantivéssemos uteis e vitoriosos as nossas vidas estariam asseguradas, a menos que valores mais altos se levantassem… 

Por precaução, mais vale prevenir que remediar, elevámos para seis os ninhos de metralhadoras em redor do acampamento, digo do aldeamento, da povoação, uma dúzia e meia de cubatas outras tantas tendas de campanha outros tantos abarracamentos e todos eles equipados com as fiáveis Bredas novas, bem oleadas e melhor municiadas, além disso foram distribuídas caixas com fitas de munições, cunhetes e granadas defensivas. O perímetro dos raids sul-africanos tendia cada vez a aproximar-se mais e prevenir não custa.   

Para o bem ou para o mal os negros tinham sido instigados durante décadas contra o branco, o colono, o usurpador, o ocupante de quem havia que libertar a pátria mãe, esta terra amada, se agora éramos aliados tal não passaria duma situação conjuntural, se não podes vencê-los alia-te a eles, e na verdade o principal inimigo continuava sendo o branco, o branco do sul, o branco austral, mas branco, mais que o negro de outras facções ou etnias. Por enquanto éramos irmãos, não de sangue mas de luta. Todavia nas noites de vinhaça à volta da fogueira ou naquelas em que circulavam de mão em mão cachimbos de bambu atacados com mais liamba que tabaco, as mentes e as línguas soltavam-se, sendo natural ouvi-los destilar a verborreia habitual contra os brancos.   

Durante quinhentos anos o branco conquistara tudo e todos a chicote e a tiro, a sede de vingança fervilhando por baixo das aparências tinha mais que razão de ser, um dia explodiria, sabíamo-lo, havia que evitar os salpicos a tempo porque Angola nunca foi nossa apesar da soberba dos colonos, mas Angola também ainda não era deles, dos pretos, dos negros, dos angolanos, Angola seria de quem a apanhasse e bem no meio da jiga joga estávamos nós, agarrados aos tomates, aflitos com a flor do congo, * com a ética, com a moral, todos nós, de conselheiros militares a instrutores e formadores, quantas vezes tão crédulos quão incrédulos quanto ao lado dos bons, quantas vezes prenhes de dúvidas, e a quem as circunstâncias levavam as nossas próprias consciências a apelidar-nos, se não a acusar-nos de mercenários…  

Não fosse a nossa presença em África ter sido sempre negociada ao abrigo de protocolos e acordos multilaterais entre o nosso governo e o governo angolano, e através desses contratos ao nível dos dois países a descansarmos as consciências e cedo teríamos arredado pé. (Desde uma época anterior à independência que existiam convénios do género estabelecidos nas colónias, agora com uma continuidade mais justificada que nunca e abrangendo áreas variadas, do ensino à medicina, indústria, comunicações, transportes, formação, instrução militar etc…) Não era festa onde se desejasse estar e a concentração de forças e de meios em Cuíto Cuanavale, a algumas léguas de nós, embora secretamente não deixava dúvidas quanto ao facto de alguma panela de pressão estar prestes a rebentar. (Rebentaria decorridos oito anos).

Nós, que não temíamos o cheiro a pólvora, nem emboscadas nem operações de campanha alimentávamos contudo um medo de morte contra as mudanças súbitas dos ventos da politica, das mentes obnubiladas, das raivas e dos ódios disfarçados de amor, por temermos sentir um vácuo estranho nas tripas, um vazio que o medo aquecia fazendo borbulhar o mesmo suor quente que nos escorreria gelado pelas fontes abaixo… Tanques soviéticos e aviões cubanos não nos davam mais protecção nem descanso, só nos tiravam o dormir…





sexta-feira, 4 de maio de 2018

APITA O COMBOIO E REGRESSA AO FUTURO*…

Estação de Évora, velha automotora sem serventia


Quando menino, merencório, por vezes ficava ali na brincadeira, depois do jogo, porque de xis em xis horas adorava ver as despedidas, os beijos, abraços e choros de quem partia, ou chegava, mas sobretudo por haver três coisas que sobremaneira me impressionavam, entre elas uma gorda sempre presente, como que ali presa, com as chaves, a corneta, a lanterna e uma bandeira verde enrolada no pau enquanto guardava uma outra, vermelha, debaixo do braço. Outra delas o mistério simples da cancela que ao abrir-se, mal a largassem voltava sozinha ao lugar de repouso como tendo uma mola, um elástico, qualquer coisa que na verdade não tinha e eu me esfalfava por descobrir, sendo a última impressão que retive e me retinha a buzina roufenha da grazine, o seu andar vagaroso, bonacheirão, o desacerto das horas a que calhava passar, contudo sempre esperada pela gorda.                                                                                                                                                                                                                                              
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Sempre a mesma mulher gorda que ali presa sem o estar ora os cumprimentava com amigável aceno, ora se desviava para que um deles descesse em andamento reduzido ao mínimo mas não chegando a parar, o homem medindo distâncias e velocidades, pondo um pé no chão e acabando numa curta corrida de meia dúzia de passos porque ao sétimo afocinhava, estendia-se e espalhava pelo chão o conteúdo da caixa marmita em folha de zinco cuidadosamente pintada de amarelo, o mesmo amarelo da grazine, o mesmo amarelo com que o meu vizinho ferroviário e reformado nas horas de ócio pinta e repinta os portões da garagem e do quintal.                                                                  
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983

Ali ficava sentado, mergulhado em solitude, olhando o sem fim da linha à esquerda e à direita, pegando-se lá longe, fundindo-se, impressionando-me e confundindo-me, como se aguentaria o comboio nos carris assim unidos, ele que passava ante mim resfolgando, assustando, nunca parando, sem vagar nem embalagem para parar. E quem diz o comboio diz a automotora, pesada, grande, sempre cheia de gente mas que embora bufando parava a horas certas no apeadeiro, pingando água, óleo, carregando e pingando gentes, de onde viriam, para onde iriam, que mundos haveria para lá do ponto mágico e misterioso onde as linhas se fundiam ?                                                                                                                                               
O comboio descendente de Zeca Afonso **


No dia dos meus doze anos senti-me confiante o suficiente para enfrentar o desconhecido, desbravar o fim da linha como quem se dispõe a descobrir o pote de oiro no fim do arco-íris ou, como o professor Pulga dizia, descobrir a magia no fim da viagem do Gama. Era manhã e avancei nascente adentro andando ao ritmo das travessas de madeira até que deslumbrado dei com a estação, um viveiro de gentes, mais linhas, mais comboios, um dia a coragem me levaria mais adiante, e levou, anos mais tarde, até o comboio me despejar no Évora, um cacilheiro enfrentando as ondas Tejo adiante em direcção à outra banda.

Ganha coragem com o nascente aventurei-me dias depois com o poente, barrou-me a altura da ponte-de-ferro do Xarrama e de onde se avistavam veados e corças na quinta do Menino de Oiro, os pomares de laranjeiras, a barragem enorme, a larga curva que a linha descrevia ao tombar para os lados de Azaruja. Desbravando caminhos estaria para mim como muitos para Maimônides quando da leitura do Guia dos Perplexos, o caminho faz-se caminhando, a luz encontra-se indo ao seu encontro, inda que eu soçobrasse em confusão e estivesse mui longe de mim o significado de racionalismo...                                                                                                                                 
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Quando abalei daquele bairro parecia-me ter passado ali a vida inteira, todavia fui-me embora no preciso dia em que caiaram novamente o apeadeiro já de si sempre branco, sempre asseado, sempre concorrido. Lembro bem esse dia por os magalas reclamarem não poderem sentar-se, estirar-se, mas na semana seguinte estourou-lhes nas mãos uma festa de cravos e, aos poucos, de eufóricos e em magotes, passei a ver cada vez menos magalas, tal qual passados anos passeando-me por ali casualmente com a Vitória esbarrei no apeadeiro sem cor, na passagem sem cancelas, na linha sem comboios, no país sem magalas, algumas linhas sem linha e em vez de comboios, automotoras ou grazines, ciclistas, peões, marchantes, atletas, corredores, andarilhos, cavalos, cães, até desportistas.                        
O monstro previsto para a nova linha Sines - Caia com passagem por Évora  


Ouvi que se preparam para reactivar a linha, agora que não há magalas nem gentes nem apeadeiro, esbarrondou, esboroou-se, como o país, dizem que serão comboios sem fim, a perder de vista, só comboios sem automotoras nem grazines, nem homens descendo à velocidade mínima, mas comboios, muitos comboios sem fim, seguindo-se uns aos outros, sem pararem, embalados à velocidade máxima, ligando o principio e o fim do mundo.

Deito a cabeça no regaço da Vitória, adormeço e sonho, sonho-nos aos dois aqui vendo-os passar, pouca terra pouca terra. Nefelibata, estico as pernas, faço rodar as estrelas das esporas na relva, o antigo oeste ainda é como sempre o pintaram, lá longe um comboio espuma fumo e espirra baforadas de vapor, apita, apita três vezes, ouvi-lo-ão e persegui-lo-ão os índios ? Bandidos já temos, estará o meu sonho andando para trás no tempo como no Regresso Ao Futuro ?

Que histórias da carochinha nos contarão agora ? Será que ao menos os ouviremos apitar ? Será que irão apitar ? Três vezes ? Será ? 


Vista da linha na direcção de Estremoz