MÃE *
Sim era uma Berliet, perdida no Namibe,
entre Xangongo e Ondjiva, ou Ondijiva,
sim, estava ali o camião,
nem à tua nem à minha nem à nossa espera,
mas estava ali, jazia ali, parado, a jeito.
No ar areias rodopiavam
folhas, paus, pequenas pedras,
como bátegas de chuva fustigando-nos,
chicoteando-nos o rosto.
Semicerrei os olhos,
avancei às escuras, ás cegas,
o sol teimando, vencido,
acendendo chispas nesse névoa vermelha,
traiçoeira, arenosa.
Ondas de pressão cortando os sons e
no silêncio do tumulto,
gritos mudos de aflitos, ecos de trovoadas e
pairando sobre as nossas cabeças,
espadas,
empurrando-nos contra a parede.
Peguei em ti,
recostei-te contra o rodado da Berliet,
passei o braço pelos teus ombros,
reconfortei-te, enganei-te,
os teus últimos minutos foram mentira piedosa,
contigo gritando apavorado,
espantado com a brevidade da vida.
Bem clamaste por ela, e p’la mãezinha mas,
o inferno era ali e nem uma nem outra te atendeu,
nenhuma estava, estava eu, tu lembraste a Fátima,
e a mãezinha.
Sim, eu farei por ela, sim dir-lhe-ei quanto a amavas,
as amavas,
sossega,
sossegaste.
Arfavas ao
beijar-te a testa,
abracei-te, apertei-te contra mim,
o teu corpo de cera quente ainda,
lembrando-me promessas e velas num altar,
e enquanto o barulho surdo da refrega emudecia,
tu gelavas,
calavas-te e gelavas.
Depois fechei-te os olhos,
para que não visses a natureza do homem,
a Berliet tombada,
os destroços em redor,
o adeus dos camaradas,
e chorei…
* Humberto Ventura Palma Baião in manuscrito de "MEMÓRIAS DE UM SOLDADO DESCONHECIDO", Évora, 28 de Março do ano da graça de 2018