quarta-feira, 28 de março de 2018

MÃE, MEMÓRIAS MANUSCRITAS DE UM SOLDADO DESCONHECIDO *

               

MÃE *


Sim era uma Berliet, perdida no Namibe,

entre Xangongo e Ondjiva, ou Ondijiva,

sim, estava ali o camião,

nem à tua nem à minha nem à nossa espera,

mas estava ali, jazia ali, parado, a jeito.

 

No ar areias rodopiavam

folhas, paus, pequenas pedras,

como bátegas de chuva fustigando-nos,

chicoteando-nos o rosto.

 

Semicerrei os olhos,

avancei às escuras, ás cegas,

o sol teimando, vencido,

acendendo chispas nesse névoa vermelha,

traiçoeira, arenosa.

 

Ondas de pressão cortando os sons e

no silêncio do tumulto,

gritos mudos de aflitos, ecos de trovoadas e

pairando sobre as nossas cabeças,

espadas,

empurrando-nos contra a parede.

 

Peguei em ti,

recostei-te contra o rodado da Berliet,

passei o braço pelos teus ombros,

reconfortei-te, enganei-te,

os teus últimos minutos foram mentira piedosa,

contigo gritando apavorado,

espantado com a brevidade da vida.

 

Bem clamaste por ela, e p’la mãezinha mas,

o inferno era ali e nem uma nem outra te atendeu,

nenhuma estava, estava eu, tu lembraste a Fátima,

e a mãezinha.

 

Sim, eu farei por ela, sim dir-lhe-ei quanto a amavas,

as amavas,

sossega,

sossegaste.

 

Arfavas ao  beijar-te a testa,

abracei-te, apertei-te contra mim,

o teu corpo de cera quente ainda,

lembrando-me promessas e velas num altar,

e enquanto o barulho surdo da refrega emudecia,

tu gelavas,

calavas-te e gelavas.

 

Depois fechei-te os olhos,

para que não visses a natureza do homem,

a Berliet tombada,

os destroços em redor,

o adeus dos camaradas,

e chorei…


Humberto Ventura Palma Baião in manuscrito de "MEMÓRIAS DE UM SOLDADO  DESCONHECIDO", Évora, 28 de Março do ano da graça de 2018