Amigo
meu solicitou-me um dia destes, cortêsmente, uma breve explicação sobre este
personagem. Verdade que, entretido com outras coisas li superficialmente a sua
mensagem e dei comigo pensando de mim para mim o que quereria o caramelo saber
sobre Carlos Gardel... Por quê ?
Com
delicadeza chutei-o para depois, para ocasião em que o vagar e a disposição
sobrassem e a paciência sobejasse, as duas coisas, o que não deixa porém de ser
uma e a mesma merda. No day after ou no outro acedi a responder-lhe e fui
novamente olhar a sua mensagem. Afinal a rapidez e leviandade com que eu a lera
induzira-me em erro, não era sobre Carlos Gardel que ele manifestara curiosidade,
mas sim sobre Carlos Martel, o que alterava todas as premissas em especial a da
oportunidade do tema e a pertinência da observação.
Essa
mudança de apelido mudara radicalmente o panorama, de um cantor de tangos, naturalizado
argentino e dançarino, para uma das figuras de maior relevo da história medieval
europeia que, por um triz milagroso evitou que hoje todos nós adorássemos Alá… Como
sabemos da história o islão ocupou a Península Ibérica, teve califado em
Córdova e os pés assentes nas terras transtaganas (as a sul do Tejo), terras de
onde só foi expulso no reinado de D. Afonso III, o Bolonhês, em 1249.
Reza
a história que por volta do ano de 700 da nossa era, e pujante na península, o
islão tentou a expansão para a Europa, tendo avançado pelos reinos francos,
actual França, após ter conseguido ultrapassar com êxito a barreira natural e defensiva
que os Pirenéus constituem. Contudo o sucesso perdeu-os, perdeu-os a eles
homens do islão, e digo que o sucesso os perdeu pois de sucesso em sucesso, reinos francos adentro, foram indo cantando e rindo até se confrontarem com as
tropas de Carlos Martel que em Tours, ou em Poitiers, aqui as opiniões dividem-se,
lhes infligiu uma memorável derrota.
Digo
que as opiniões se dividem porque então, como agora, as opiniões podem ser
tantas quantas as cabeças que as emitem ou formulam. À falta de jornais e
televisões, máquinas fotográficas, telemóveis e selfies que provem a veracidade
da coisa, os de Poitiers puxam pela brasa à sua sardinha, fazendo os de Tours o
mesmo. Um pouco à imagem do nosso Vasco da Gama, 1.º Almirante-Mor dos Mares da
Índia, que nos afirmam ser natural da terra dos bons vinhos, a Vidigueira (e o
Gama era um apreciador do néctar dos deuses), enquanto outros afirmam com a
mesma convicção ser o Gama natural de Sines, terra e águas onde terá aprendido
as lides de marear e a não temer o rei Neptuno nem o mar
tenebroso, certeza que inequivocamente conhecemos.
Apesar
de também eu ser um apreciador dos vinhos da Vidigueira, se me perguntarem
direi que sob o patrocínio deles o Gama não teria ido mais longe que o sofá da
sala, já quanto a Sines, chamo à colação António Sérgio * e Orlando Ribeiro ** (obrigado professora Elsa), não terei a menor dúvida em aceitar as explicações
destes dois grandes mestres em como a vila piscatória terá sido o seu berço,
seu do Gama. A morte ocorreria em Cochim, India, nas vésperas de Natal do ano
de 1524, cidade que foi a sua honrosa tumba. Em 1539 os restos mortais foram
transladados para Portugal, mais concretamente para a Igreja de um convento
carmelita, conhecido actualmente como Quinta do Carmo, próximo da vila
alentejana da Vidigueira. Aqui estiveram até 1880, data em que foram
trasladados de novo para o Mosteiro dos Jerónimos. Há quem continue defendendo que os
ossos de Vasco da Gama ainda se encontram na vila da Vidigueira, e daí a
polémica existente quanto à sua naturalidade.
Mas
voltando a Carlos Martel e ao sucesso que perdeu os islamitas, tal deve
ficar-nos na memória como exemplo para que não sejamos invejosos, ambiciosos ou
materialistas. Os soldados do islão irromperam pelos reinos francos numa
campanha vitoriosa que contava anos e anos de lutas, e anos de lutas significam
anos e anos de proveito de saques, de despojos, que é como quem diz toneladas e
mais toneladas de despojos, a sua riqueza, a sua fortuna pessoal. Resumindo, desfizeram-se
do essencial (armamento) para manter o acessório, que
contudo lhes garantiria uma reforma digna. No ano de 732 Carlos Martel investiu contra um
exército de soberbos a quem faltava o elementar, o tal armamento, e apesar da
diferença numérica chacinou-os obrigando-os a recuar para aquém Pirenéus, até
hoje.
Até
hoje ou de véspera, em que bem vestidos e alimentados e melhor municiados
chegam de avião a Paris, ou já por lá vivem nalgum apartamento arrendado, como
fizera o 44, para no dia seguinte estarem fresquinhos e robustos a fim de
continuarem a sua gesta. É tudo uma questão de logística, a logística ditou a
sorte de Carlos Martel, a logística ditou a desdita de Paris.
Há
pormenores, particularidades, detalhes, elementos e circunstâncias de que
raramente nos lembramos, ou desconhecemos, mas que se revestem de crucial
importância. Naquela época não se viajava de avião, nem de TGV ou ferryboat,
naquela época os exércitos arrastavam-se penosamente sobre estradas por
construir, em carroças rudimentares puxadas por cavalgaduras e carregadas de
trigo, aveia, cevada, favas, alfarroba, tecidos, panos, toldos, tendas,
vasilhame, pregos, ferramentas, pedras de esmerilar, fogões, fogareiros e
forjas, carne salgada e fumada, cestos de costura, temperos, ervas medicinais,
poções, amuletos, etc, etc, etc …
As
carroças lá seguiam guinchando, ladeadas de carpideiras profissionais,
“parteiras”, “enfermeiras”, poetas e trovadores, jograis e escribas, os
soldados atrás carregando todo o seu armamento e o seu espólio, ou os seus
despojos, e atrás destes as mulheres, as suas e as outras, e as crianças, os
sapateiros, os ferreiros, os físicos (médicos), os ferradores, e evidentemente
o putedo, as putas, a mais velha profissão do mundo e presença incontornável
pois havia que manter o exército permanentemente animado e entusiasmado, nem
todos eram casados ou amigados e o casamento como hoje o conhecemos nem sequer
tinha nascido por esses dias… Quem já viu o filme “Aníbal e os Elefantes”, ou
leu “A Viagem do Elefante” de José Saramago, terá uma ideia da dificuldade com
que os exércitos se debatiam enquanto marchavam.
Hoje,
apesar dos esforços de Carlos Martel, agraciado pelo Papa Gregório III e a quem
este concedeu o título de Herói da Cristandade, hoje dizia eu, com passaporte
ou sem passaporte, movemo-nos quase à velocidade da luz se comparando com essa
época recuada, depois de jantarmos num restaurante de luxo, num qualquer
boulevard perto da Ópera do Fantasma, ou do Bataclan, retiramos as ferramentas
da mala do carro e vamos “trabalhar”… o mundo está a ficar impossível…
* António
Sérgio – Ensaios, Geografia de Portugal, cito de cor
** Orlando
Ribeiro – Portugal o Mediterrâneo e o Atlântico, cito de cor