Em
boa verdade ninguém sabe dizer com exactidão donde eles apareceram, eles o
grupo, e pelo que foi apurado não seriam mais de meia dúzia. Todos de kispos enormes
e escuros, vestimenta precoce para a época, mas ninguém estranhou, habituados
que estamos a ver aparecer excursões turísticas eclécticas, até
esquimós em pleno verão.
Não esqueçamos
que estou tentando reconstituir minuciosamente os acontecimentos com base nas informações
colhidas, que embora escassas e contraditórias nessa manhã, se vieram a mostrar
numerosas e coincidentes na sua plural ambiguidade. Já lá vão uns cinco meses
mas a memória não irá falhar-me, tenho o meu canhenho de apontamentos.
Ao
certo ninguém parece saber por ou qual o lado por onde perpetraram o acesso à
praça do Geraldo, inda que tudo leve a crer ter sido subindo a Rª da República
ou descendo a 5 de Outubro ou da Selaria, digo isto por o agente em frente ao
Banco de Portugal ter sido o primeiro a cair e fruto das primeiras
contradições. Uns que ele tombou sem um pio e nem se terá dado conta de quem o
degolou, outros que embora de boca abafada terá dado luta ao atacante que só
dificilmente o subjugou, coisa a que não foi alheia a superioridade do
armamento e superior pujança física do agressor. Esta é a versão que corre na
esquadra e entre os agentes, o respectivo sindicato já aproveitou o ensejo para
lembrar que há mais de dois anos reclama novas pistolas invocando como obsoleto
o modelo que equipava o agente barbaramente assassinado (e todos os outros).
De
certo apenas se sabe que o agente nem teve tempo de lançar a mão ao coldre e
que sangrou como um cordeiro pascal, caído na calçada frente ao Banco de
Portugal, o que dá relevo à heroicidade e ao patriotismo do seu sacrifício.
A
segunda vitima desta brutal agressão foi um infeliz e colateral acaso, trata-se
de Estevão Horácio, setenta e dois anos, agente reformado e que por ali
atalhava caminho vindo do mercado em direcção a casa. A mulher ainda lhe gritou:
- Não
te metas Horácio !!
Mas
o bom do Horácio ao ver o colega caído no chão e sangrando, não se conteve e
espumando de raiva atirou-se de peito aberto ao meliante enquanto respondia à
mulher:
- O
dever primeiro o dever primeiro...
o terrorista,
segundo testemunhos não confirmados, simplesmente terá desencravado o facalhão
da goela do agente que atacara, erguido a mão e esperado e aguentado que o
precipitado Horácio nele tivesse enfiado a proeminente barriga. Estevão Horácio ainda terá tido
um último pensamento para a devota esposa e balbuciado:
- Ai
Ester e agora ?
Ficou
cadáver no mesmíssimo instante e no local onde tombou, nem terá sequer
sangrado.
O
resto é por demais sabido de todos. Ter-se-ão dirigido ao centro do tabuleiro
da praça onde as esplanadas cheias àquela hora foram um alvo fácil, o
matraquear das metralhadoras nem foi de monta, diz quem ouviu. Gente no outro
extremo da praça junto à igreja de Stº Antão ou vinda da Rª João de Deus nem se
terá apercebido dos tiros, que começaram exactamente ao meio dia, apenas viram
o estardalhaço dos corpos, mesas e cadeiras pelo ar, tendo ficado por largos
momentos expectante quanto ao motivo do estranho alarido e confusão.
Segundo
testemunho não corroborado de Luís Martins, mais conhecido por Beato Salú,
depois da matança, que levaram a efeito na maior das calmas, um deles ter-se-á
aproximado da agência de Turismo local e disparado uma rajada contra quem de
dentro se encostava aos vidros das portadas para ver o espectáculo e atirado
uma granada, que os peritos vieram a classificar de ofensiva, e que não deixou
vivo nenhum dos curiosos funcionários que no minuto anterior haviam sobrevivido à rajada que estilhaçara as vidraças por, no calor da bizarra cena, esta ter
sido disparada demasiado alta, alegaram os mesmos peritos.
Ainda
segundo Luís Martins, que especado no meio do tabuleiro aguardava expectante
o que se seguiria, um dos elementos do grupo de presumíveis meliantes ter-lhe-á perguntado
onde se situava a igreja de Stº. Antão, ao que ele respondeu com um gesto
designando e apontando o edifício no outro extremo da praça, para onde os
então alegados autores do atentado se dirigiram, armas ainda fumegando, o que não
deixou de nos explicar o citado e surpreendido Luís Martins, por acaso o tipo
de pessoa a quem nada surpreendia.
https://www.facebook.com/Turismoevora/?fref=ts
Segundo
apurado, dezenas de telefonemas terão sido efectuados para os serviços de
assistência que, inicial e compreensivelmente, tentaram de inicio canalizar as
chamadas para destinos mais competentes dado o elevado numero de feridos que
lhes era reportado, ao que há a acrescentar a precipitação, a ignorância e a
falta de protocolo e meticulosidade de quem a partir de Évora efectuava as
chamadas, confundindo durante bastante tempo os técnicos e agentes de serviço
do outro lado da linha, repentinamente bombardeados com pedidos de auxilio em
catadupa, o que os desestabilizava e arrancava ao remanso das rotinas
protocolares, essas sim propiciadoras do bom andamento e encaminhamento das
solicitações dos cidadãos, objecto, motivo e dedicação dos serviços de
atendimento, como é bem sabido de todos nós.
Depois
de umas trinta a cinquenta sobressaltadas chamadas, inclusivamente reportando
mortos às paletes, os serviços de atendimento e assistência aperceberam-se
finalmente que algo de irregular acontecera na Praça do Geraldo, e logo fizeram
destacar ambulâncias, carros de apoio e um piquete que, equipado com as novas
t-shirts de manga curta do fardamento de verão, se pôs a caminho acessando a
dita praça pela Rª Nova, que desemboca à lateral da igreja, igreja que os
alegados infiéis já tinham visitado. O designado piquete desembocou na praça
precisamente no momento em que os supostos meliantes acabavam de banquetear-se
com vários bules de chá, para o que intimidaram uma aterrorizada funcionária da
Cozinha de Stº Humberto, obrigando-a a servi-los, e carregavam numa carrinha
Citroen Berlingo fechada, pintada com motivos e cores de uma florista, à qual
ninguém se lembrou de tirar a matricula, carregavam nela dizia eu, mochilas,
armamento, kispos, e máscaras ou gorros passa montanhas.
Ao
ver o piquete um deles, calmamente, abriu de novo uma das mochilas ou sacos de
onde, segundo testemunhas e a reconstituição levada a cabo posteriormente, com
recurso a uma equipa multidisciplinar onde não faltaram artistas, inclusive de
teatro, capitaneados pela Sandra e pelo José Fonseca, naturais daqui e que
prometeram levar à cena o incidente e conceder-lhe a conveniente abordagem
plástica. Mas, retomando os factos, o suposto terrorista retirou uma pequena
metralhadora com a qual disparou sobre o grupo de agentes mal este desembocou
na praça e se preparava para sacar dos coldres as suas armas, ferindo dois
deles e deixando outros tantos estendidos no empedrado, os restantes
dispersaram rua acima, sabe-se hoje que em direcção à esquadra, que aquilo
afinal era coisa séria e a pedir outro tipo de intervenção e de armamento
pesado.
Uma
carrinha policial Mitsubishi caixa aberta que descera a rua da Selaria teve
igual tratamento, e o vidro do para brisas, tal qual os vidros das montras da
papelaria Nazareth, adjacente, foram completamente estilhaçados, tendo os
agentes na fuga e marcha atrás encetada atropelado mortalmente dois curiosos,
um deles esmagado contra a esquina da Alcárcova de Baixo, fora estas duas
vitimas não houve outras dignas de registo a assinalar, nem entre os agentes da
autoridade.
Isto
é, em súmula, o melhor que consegui apurar sobre o bárbaro atentado e
incidente, se vos não deixo mais e melhor informação tal se deve ao facto de a
investigação ser omissa num ou noutro aspecto, apesar de profundamente levada a cabo,
ou por ter a mesma sido nalguns aspectos inconclusiva. A titulo de exemplo
direi que após um momento inicial (e emocional há que assinalar), em que todos
tinham plena certeza de ter visto os presumíveis terroristas e nitidamente
identificado os mesmos sem qualquer sombra de dúvida, primeiro como árabes,
depois como ciganos, e por fim como pretos, se concluiu pela maioria de
testemunhos serem os ditos cujos de raça branca, caucasianos, alguns deles
louros, alguns baixos, outros nem tanto, testemunhos de todo ao arrepio de quem
os catalogava de gigantes, de núbios, e até de marroquinos.
A
verdade é que ao certo ninguém sabe como eram ou quem eram, apesar de se terem
passeado e demorado na praça com toda a desfaçatez, e nem isso já interessar,
visto o terrível incidente ter catapultado o nome da cidade para os noticiários
e páginas dos maiores jornais mundiais e o fluxo de turistas atingir picos
impensáveis quatro meses atrás. Há quem diga ter sido o melhor que aconteceu à
cidade, quem afirme nem terem os setenta e sete mortos sido um preço elevado
tendo em conta os benefícios colhidos, tanto mais que noventa por cento das vítimas
eram gente de fora. Nos vários serviços do estado vive-se um arrebatamento e
entusiasmo como não se via há anos e não há repartição que não esteja
genuinamente sedenta de indeferir um ou outro projecto, qualquer que ele seja.
Nos
últimos três meses deram entrada nos competentes serviços mais de vinte
solicitações para grandes investimentos, entre os quais mais de treze novos
hotéis, não considerando projectos de menores dimensões. Um departamento
universitário, em parceria com o Grupo PorÉvora, descobriu numa investigação
histórica levada a efeito sobre um incunábulo existente na Biblioteca Pública
da cidade e sobre o qual pendiam estudos vai para vinte cinco anos, apurou que
já há quinhentos anos a.C. e sob o jugo romano, Cartagineses, Fenícios, ou Árabes
tinham levado a efeito idêntico atentado, comprovado pelas ossadas encontradas
junto à cerca velha e no lugar para onde depois foram chutados os judeus, hoje
judiaria, e compreendida entre as ruas Do Raimundo e de Alconchel, actual rua Serpa
Pinto. A cidade vive momentos como não vivia há muitas décadas, novas lojas
sendo abertas todos os dias, e até a Guilda de comércios e ofícios, cujas
direcções nunca primaram pela inteligência, se vê agora disputada com a
exigência de participação de todos.
Não
há fome que não dê em fartura, há males que vêm por bem, Deus escreve direito
por linhas tortas, e Alá talvez um dia nos diga quem, como e porquê aquela
gente nos entrou portas adentro.
Até
lá, gozemos o momento…