domingo, 5 de junho de 2011

" SER OU NÃO SER " ERA E É A QUESTÃO ............

              
Blindado Chaimite, rodados em linha.

Dizer-se que ensinamos é uma coisa, pretender sabermos alguma coisa é outra, completamente diferente. Em boa verdade eu ensinava e orgulho-me de o ter feito bem, ensinava cuidava eu de dizer as coisas do meu mister, ao longo de dias, semanas, meses, anos. Dizer que ensinava é dizer pouco, pois foi mais o aprendido com aqueles a quem formava, muito mais, foi muito mais sim. Uma das matérias da minha competência tinha a ver com olhar, ver, observar e a partir daí colher informações que permitissem conjecturar e, durante anos tive relutância em aceitar, em admitir quanto eu mesmo aprendia a ver ensinando esses “cegos” a olhar.

“Só sei que nada sei” é coisa sabida de todos nós e encimando a academia de Sócrates na Grécia antiga, séculos mais tarde gente moralista haveria de escrever sobre a entrada de Auschwitz-Birkenau “O Trabalho Liberta”. Quasi ao mesmo tempo Einstein afirmaria a “Teoria da Relatividade Geral”, qualquer coisa que demoraria não milénios mas um século a ser confirmada, eu não tive que esperar tanto tempo para constatar como tudo na vida é relativo e as nossas prioridades e capacidades mudam radicalmente de acordo com o meio em que nos inserimos.

Ensinava a ver mas era também cego, cego ao que posteriormente aprendi a ver com esses mesmos “cegos” que ensinava, como um oculista que usasse óculos ou lentes de contacto. Certamente já entraram num “zoista”, digo numa loja de óptica, terão entrado talvez para ver as modas quanto a óculos de sol, repararam que nos “zoistas” toda a gente ou quase toda a gente usa óculos ? Assim estava eu, como um gerente dessas lojas, vendendo e exibindo o meu produto, ensinando a ver mas usando óculos e por que não, binóculos ?

Berliet Tramagal, rodados em linha.

A ver vamos então como paravam as modas, não dos óculos de sol ou quaisquer outros mas de golpe, golpe de vista, porque estas coisas dos olhos, do ver e do olhar, de saber ver ou saber para onde olhar, ou o que se está vendo tem, ao contrário do que poderão pensar mesmo muito que se lhe diga. Já aqui o disse, os negros em geral e em especial os negros do sul de Angola estariam culturalmente dois milénios atras de nós brancos, de nós que em quinhentos anos de colonização nada mais lhes levámos que um padrão afirmando terem acabado de ser descobertos, para além disso levámos o chicote e a escravatura. Fomos pioneiros no comércio triangular e global de escravos e desde esses tempos para cá pouco mais fizemos por eles ao abrigo dessa tão honrosa missão civilizadora e evangelizadora de que o Infante nos incumbira. 

Apesar de tudo e pelo que estudei e sei, dá-me impressão que para o negro africano das nossas províncias ultramarinas, colónias, os seus melhores tempos debaixo do nosso jugo, do nosso domínio, nem terão sido após a abolição da escravatura pelo Marquês de Pombal* mas os tempos do Estado Novo, com especial incidência no período das guerras coloniais. Abundam exemplos de comandantes nossos, severos, e não somente Spínola, exigentes quanto ao respeito devido ao ser humano negro que dominávamos e submetíamos, mau grado Bafatá (Pidjiguiti), Wiriamu e a PIDE DGS, também presente nessas províncias, colónias, e nada branda segundo reza a história.

Berliet Tramagal, rodados em linha.

Paradoxal ? Paradoxal mas real e se observarmos igualmente a história da repressão sobre o negro nos países limítrofes e vizinhos, também eles alvo da dominação branca, a história passa a câmara de horrores. As revoltas de 61 têm um fundamento histórico, e atenção, não estou afirmando haver ali uma razão fundamental, mas têm uma origem, uma causa que as explica e do ponto de vista deles as explica e justifica. O que se vê ou não vê, o que o olhar abrange depende muitíssimas vezes do ponto de vista do observador, da perspectiva, e dos seus interesses claro.


Em Wiriamu e Bafatá não viram eles o que nós vimos, a bestialidade é transversal à história, aos povos, contudo apesar de atrasados dois milénios se, por algum motivo, uma guerra nuclear ou outra desgraça o mundo fosse deixado à sua sorte os africanos resistiriam, sobreviveriam, pois ante uma perspectiva como a que desenhei, aterradora, eles vêem melhor que nós, sabem olhar e ver, vêem mais longe, vêem mais profundamente e sabem mais no que concerne ao fundamental, ao que interessa, ao que garanta a sobrevivência, ao que é vital. Eles sabem viver sem nada, nós não sobreviveríamos sem a tralha que arrastamos para todo o lado.

Imensa gente desconhece que os veículos militares nunca têm rodados duplos, podem ter isso sim o mesmo número de rodas que os modelos civis, mas uma adiante da outra, e nunca ao lado, tal desiderato diminui em cinquenta por cento a estrada pisada e como tal em igual percentagem a possibilidade de pisar uma mina e ir pelos ares. As rodas, os pneus, têm rasto, e para confundir o inimigo nós trocávamos o pneu montado na jante, virávamo-lo deixando-o numa posição em que deixava na terra um rastro que, olhando-o pensar-se e acreditar-se-ia que a viatura estivesse andando em marcha atrás, tal confundia o inimigo o qual, ao olhar o nosso rasto pensaria estarmos regressando quando afinal estaríamos indo.
Pneus de rasto neutro.

 Porém em fins da década de setenta os sul-africanos surgiram com um pneu de rasto neutro, idêntico, quer estivessem virados para a frente na jante ou p’ra trás, facto que destruiu, deitou por terra todas as elaboradas teorias mantidas, ensinadas e aprendidas sobre a leitura de rastos. Mas somente a nós os entendidos essa generalização enganou, pois os bantus nunca tinham precisado do desenho de um rasto para saberem em que sentido ele se movia. Essa e muitas outras pequenas grandes coisas do género aprendemos a ver com eles, qual o segredo, tu como farias ? Era difícil detectar-lhes o sentido da marcha se as viaturas viajassem devagar mas, desde que aumentassem a velocidade, o sentido em que a areia ou a terra do rasto estivesse tombada determinaria esse sentido. Os negros sabiam isso há milénios, ainda a roda não tinha sido inventada…

Com a generalização dos pneus de rasto neutro a sabedoria dos pisteiros indígenas por nós ensinados a ver demonstrou-nos verem melhor que nós os seus mestres, melhor e mais longe. Em pouco tempo aprendiam o que havia a aprender, o resto do tempo davam-nos cartas, aprendíamos nós com eles, e surgiam nem sabíamos de onde, da mata… O que os movia ? O que os fazia lutar ? O que os tornava tão orgulhosos de si mesmos ? Por que lutavam por se superar ? Por que nunca se lamentavam ? Por que granjeavam com o tempo honor e respeito junto dos seus ? Por que nunca tinham fome ? Nem sede ? Nem dores ? Por que lhes bastava ser ? 
Pneu de rasto direccionado.

Dentro da realidade vivida e alteridade impunha-se e cambalhotava-nos todas e quaisquer noções por nós carregadas desde a metrópole. 

O que era ser ? O que significava para eles ?

Voltaremos a este tema.

Berliet Tramagal, rodados em linha.

* Reinava de D. José I quando a 12 de Fevereiro de 1761 a escravatura foi abolida pelo Marquês de Pombal na Metrópole e na Índia. Seria um Decreto de 1854 a ordenar a libertação dos primeiros escravos, os do Estado, mais tarde os da Igreja por Decreto de 1856. Uma lei de 25 de Fevereiro de 1869 viria a proclamar a abolição da escravatura em todo o Império Português até ao termo definitivo em 1878.


Rastos de pneus direccionados.

QUÁSI *

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

* Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'


Rastos sobrepostos de pneus direccionados. 

sexta-feira, 3 de junho de 2011

54 - AQUELA LINDA PEDRADA . . .




Que noite esta de estrelas suaves e suave amanhecer…

Em que desfraldo estandartes largo foguetes, grinaldas…
Que sonho este meu Deus!

Violas, luzes, caleidoscópios, astrolábios, que céu meu Deus esta noite!

E que colorido está!
Só me apetece cantar!
Eu sou aquele voando !!!! Eu sou este aqui sonhando!!!!!

Sou doidão famoso adejando como pena sobre nuvens de marijuana...

Singra-me a alma os oceanos, enfunam-se-me as velas de desejos recalcados, me sussurram os ventos aos ouvidos que este sonhado mar é pr’abraçar e nele me extraviar envolto em espuma brilhante, porque tem nas suas águas, saudades dos dias passados, um berço de prata e ouro, alento de me e te querer, pois numa guitarra eu te ouço, teu nome ela me cicia e grita, sibila e chora em expiação...

Que festa!
Chama-me querido, guapo!
Ai que me escapo e te trinco!

Maria juana mari juana, p'ra libertar-me e pensar, p’ra me enamorar outra vez!

Porque hoje não caibo em mim!

E como atleta corro, corro a milha e só então em mim reparo, aberta a braguilha!

Ah! Que falta de decoro e de atenção!

Noite de suspiros e ais, logo abotoo-o... o coração, perco a saudade esquecida, tomo nas mãos esta guitarra, dedilho brisa suave, de amor e de chamamento, por baixo da noite estrelada percebendo nesta pedrada com que Orfeu me inspirou, uma madrugada feita e a garganta a arranhar de tanto que te cantei até teu mar me inundar.

E só de mim olvidado, solto, nesta sangria me banho, e invento uma anedota dando por mim em pelota... kkkkkkkkkkkkkk !!!!

Tira-me agora o retrato que estou sem nenhum fato olhando as águas do mar e, como sempre quando sonho, és tu que vejo a meu lado, e já não desesperado, inventando o que Abril esqueceu, crio tal impulso e volúpia, vindos do fundo de ti, que não crendo estar neste mundo e por muito que o não queira, esqueço o refrão de entrudos!

Um dó li tá! Quem está livre livre está!
Salto à corda, brinco à cabra cega, ai!
Meu Deus que sensação!
Isto não tem princípio nem fim!

Não quero cavalo nem haxe, quero um toco de mari juana, quero voar outra vez, quero sonhar-te de novo, quero ir p’ra diante morena, com pica me mortifico, morena de chocolate, coisa doce que me tentas…

Ah! Segura-me e agarra-me! Que lindo bolero me cantas!
Mari juana mari juana!

E corro para a praia exausto, para comprar gelado mágico, de arco-íris, e Osíris, de Oruz, Ramsés e Cleópatra, e em sanha, afogueado, pelas avenidas corro, assustando desvairando miúdas desprevenidas, mas nada, nada do glacial sorvete, sendo então que, estarrecido, como um cão atrás da lua, deliro, vogo no ar, não sabendo que dizer…

Cheguei ou estou a abalando?

Somente fúrias não sinto, e só lembro teres prometido que serias minha um dia, e eu aqui, enublado, sem achar-te a ti nem num fado!

Então, sinto-me claramente, tão claramente embevecido, ir ao fim do mundo e voltar!

Tudo apenas num segundo!

É de pasmar!

E, coisa que nunca vi, já não entendo o que aprendi, nem os feitiços da lua, atónitos pendões da alma, mas, milagre dos milagres, vejo o medo a fugir célere, correndo…..  

E eu álacre sorrindo!

E p’ra mais nada me dá, que lembrar-te a ti viola, violinha, violão, e o meu corpo em alvoroço, e o meu amar não se acalma!

Que noite de estrelas suaves e suave amanhecer…

Que sonho este meu Deus!
Aqui voando e sonhando!

Uma coisa sei ao certo não saber, por que não estás aqui perto, e que esta dor não se me acalma, e logo hoje que minha alma se soltou…

Ai meu Deus!
Hoje é que estava escrito meu Deus!
Ai meu amor se assim fosse!
Agarrava-te, abraçava-te, Ai meu amor se assim fosse!
Ai! Meu Deus que noite esta!

Conquistado, apaixonado, seduzido, nesta noitada perdido, que me abraces docemente, me segredes insolentes baboseiras, e, sedutora, faz-me bobo, torna obsceno e um alegre sileno, pois que, petulante e bem alto voando, não é que vejo, insolente, toda a cidade em sobressalto!

Ave César! Ave Fausto !

Torna-me a alma á terra de mansinho, e num remanso de cansaço, torno a mim e a ti abraço, c’a noite, o sonho e o delírio chegando ao fim, nesse amplexo...  


                         

terça-feira, 31 de maio de 2011

53 - CHEIRAR A RIO, OU A MAR…




Por isso a sonhei percebes?

Certo, desta vez não me bateu com os punhos fechados no peito como quando zangada sempre fazia.

Então, segurava-a até que acalmada  a enlaçava pela cintura e, porque leve, depositava-a naquele colchão de praia já velhinho, como se de oferenda a uma divindade se tratasse.

Ela, como uma pena, pendurava-se-me do pescoço e sorria-me com um ar matreiro de menina má, fingindo ignorar o que se seguiria e se tornara já mais que um hábito, uma dependência mútua, um vício.

Quando jovem, muitas vezes acompanhei meu “afô” Nuno em pescarias na ribeira do Guadiana.

Nesse tempo, e muito cedo apesar de verão, por cima das águas uma neblina leve e fina que me inebriava, pois nela latente o cheiro a rio, inexplicavelmente um cheiro a mar, uma névoa humedecendo-me as roupas, que se me colavam ao corpo como se hoje, no velho colchão, da primeira vez com ela, e em que eu, qual criança entretida com brinquedo novo, visivelmente excitado, suava abundantemente o prazer que nos colava os corpos e de cujo som quando nos libertavamos ríamos.

Vem desde aí a história do pedestal percebes-me ?

O amá-la como viciado percebes ?

Era cativante, metia-lhe os dedos em pente pelo cabelo macio, e vibrava com isso, ela e eu, mordiscando-lhe a nuca, segurando-a pelos peitos hirtos que me enchiam as mãos e a mente de remoinhos junto aos quais gostava de pescar, porque na confluência das águas estreitando para a azenha se juntavam cardumes como atraídos por íman gigante.

Vinha da pesca como vinha do colchão, cansado mas eufórico, realizado mas sedento, perguntando a cada minuto ao “afô” Nuno quando voltaríamos, se num dos muitos e pródigos feriados que ela, à força, arrancava à vida.
Ainda recordo a primeira vez que a vi e me estendeu as mãos macias como pele de pêssego, era um dia de sol, um dia em que, embora a esperasse, me encontrava imbuído de uma melancolia inconformada em que nunca me vira, nem tão ansioso nem tão iludido e, talvez por isso não tivesse sido, ou melhor conseguido, e me rendi à evidência de que até nos momentos de maior glória a ansiedade nos molda e inibe, nos tolda e confunde, nos marca e melindra.

São estórias do que devia ter sido e não foi, pois que embora os corações batendo em uníssono, ficámos tão atrapalhados quão insatisfeitos e eu, até aí tão confiante, jamais acreditei nos baralhos de cartas nem nos seixos dos rios, nas borras do café ou na leitura dos búzios, ciente de me enganar a mim mesmo e estar a fazê-lo, p’lo que nunca mais aconteceu um revés assim e, tão sofrida ela ficou que nem reparou no meu destino, escondido nas palmas destas mãos fechadas e lisas, e me perdoou o desaire que não se repetiu e me deixou rendido à sua bondade e beleza.

Neste caso, quisemos nós voltar a repetir uma e outra vez e tantas quantas estrelas tem o céu, pelo que o saldo está ainda por apurar e nós a haver o que de melhor cada um tem para o outro e que jamais se acabará nesta vida ou nas futuras, pois ambos sabemos não ser deste mundo este imenso querer irreverente e louco que, por muito que tentemos, saberá sempre a tão pouco.

Por isso a sonhei percebes ?

Verdade que não cerrou os punhos e me bateu no peito como quando zangada me fazia, verdade que ainda não fugiu entendes-me ?

Mas virá o dia em que não mais que sonhos, não mais que impossíveis e eu, que julgara nesse dia realizar pescaria pródiga, assistirei ao passar lancinante dos minutos, das horas, dilacerado p’la desilusão, toldado por uma frustração que nunca digerirei...  deixando meu “afô” Nuno carregar-me as canas e as mágoas, ciente de que só eu contava num mundo que nunca achei justo.

Aprendia a ser, a ter, e a perder o que de mais raro existe e do qual a ideia de posse é tão imprecisa quanto as distancias calculadas a olho, os sentimentos a peso, as dores ao metro ou o bem-querer ao litro.

Há muito meu “afô” Nuno me deixou, com amor o recordo, e com pena o lembro.
E recordo quanto me ensinou sobre o ser e não ser e o quanto hoje sou, graças a ele.
Lembro quanto me ditou sobre o ter e não ter, o que é nosso e não é, o quanto devemos dar e podemos exigir.
A ele devo este coração enorme que me anima, esta tolerância que cultivo, tanta placidez quanta conheceis em mim.

É por isso que, tu, menina má de cabelos macios, pele de pêssego e beleza infinda, sabei que és um sonho sonhado e repetido que de tanto o ser me foi, é, e será sempre mui querido...


sexta-feira, 27 de maio de 2011

52 - VERDADE OU CONSEQUÊNCIA?


Em abono da verdade o meu casamento não terminou agora.

Terá acabado algures em finais da década de oitenta quando, na véspera de uma viagem que a afastaria de casa por uns dias, colocava-mos a “escrita em dia” e ela, compenetrada da solenidade e importância do momento, olhos fixos no tecto enquanto eu numa arrancada final me esforçava por atingir as cem elevações por minuto e num sussurro extasiante vindo dela, um murmúrio, me alertava para o facto de não poder esquecer os saldos do StockMarket …

Jamais tive duvidas de que terá sido esse o exacto momento em que a rotina se instalou insidiosa, e aquele em que a partir do qual aleatoriamente fui aceitando o que se me oferecia, e descobrindo que a riqueza da diversidade era infinita como Darwin apostrofara séculos atrás, momento a partir do qual por mais que mo jurassem não acreditaria haver duas mulheres iguais.

E não há, como posteriormente tive oportunidade de confirmar.

Mesmo estiolado o rotineiro casamento aguentou-se por mais uma década, responsabilidades para com filhos e sua formação e emancipação, outras dificuldades logísticas e práticas, o meu comodismo quanto a cama mesa e roupa lavada, só entendi então quanto todos somos comodistas e conservadores, até nos hábitos mais comezinhos… mas também o meu sentido ético diga-se… se um homem se mete nelas é para as aguentar até ao fim, a honra assim o exige !

Mesmo que não tenha casado por igreja nem pronunciado alguma vez o fatídico “até que a morte nos separe”.

Uma ou outra vez fui apanhado em falso, sublinho em falso, com pretensas conquistas, não o eram, e como tal nada houve que o provasse. Tratara-se apenas de amizades que nem convenceram nem floresceram mas causaram agitação na família, eu diria que uma pitada de pimenta no nariz de um defunto que, descontados os espirros do momento, logo voltaria à sua rotineira letargia.

Mas com isso aprendi, aprendi quanto fui e ainda hoje sou torto, já que irritado pelas carecas descobertas, jurei a mim mesmo que se eu não me podia gozar das prebendas da natureza, também ninguém se gozaria das minhas, tendo dado início a uma exemplar vida de eremita e abstinente que nem o melhor padre vez alguma cumpriria…

Armado em paternalista (sempre o fui, sempre me fodi com isso e nem mesmo assim aprendi a lição) fiz varias tentativas para sair de casa e deixar todo o espólio material dos anos partilhados.

Quanto menos tivermos mais fácil se tornará a mobilidade e jamais voltarei a cair no erro de juntar mais que meia dúzia de livros, de CD’s, pares de meias cuecas camisas e calças.

Tudo que não caiba na bagageira de um carro é excesso, e cada vez mais me convenço disso, pelo que com o tempo fui abandonando um natural cariz materialista que a todos mais ou menos domina e me fui tornando tão espartano de hábitos e exigências, quão estóico na capacidade de sobreviver com meios limitados e em condições adversas.

Sair de casa era portanto a solução…

Procurei saídas, mas uma delas, num segundo andar da periferia e sem elevador não augurava nada de bom para mim, já ultrapassados os quarentas, ainda se ela fosse enfermeira... mas não era.

Outra não tive a menor duvida quanto a uma boa localização e centralidade, contudo a inexistência de uma garagem deitou por terra todas as minhas aspirações, não podia dar-me ao luxo de deixar a moto na rua, e onde guardar os capacetes e os fatos de cabedal ?

Uma terceira era, ou teria sido o paraíso, uma quinta no campo, espaços verdes, ambiente natural, ar puro, comunhão com a natureza, enfim, o único senão era o acesso, que obrigava a percorrer perto de dois ou três quilómetros numa estrada de terra recheada de covas e buracos, terríveis para mim que não tenho um jeep 4x4 mas sim um baixíssimo convertível, tão baixo como qualquer outro desportivo.

Ela recusou-se a dar trato à estrada e eu recusei juntar os trapinhos, um homem tem que acautelar determinadas situações, à primeira cai qualquer um, à segunda só cai quem quer né ?

Posto isto ainda estou com o dilema por resolver, e, como dizem, passando por um mau bocado, e precisando de um tempo… Uma situação complicada... 

                     Percebem não percebem ? …

segunda-feira, 23 de maio de 2011

51 – MONSARAZ, UM HOMEM E UMA MULHER...



Com ou sem razão, verão como a ela devo tanta da felicidade de que hoje desfruto, mau grado a avalanche de problemas com que, como qualquer de vós me deparo, uma coisa não faço, acumular, arranjar ou tornar problema qualquer coisa que racionalmente possa ser resolvida. Razão tinha uma ciganita que há cinquenta e alguns anos me leu a sina;

 

- Deixa lá, o que interessa está para vir, não te aconteceu ainda, não te preocupes pois com o que foi, não tem qualquer importância, repara nesta linha da tua mão, vida e amor a perder de vista !


Sortudo !

Passa para cá não uma mas duas moedas !

E vai contente !

O futuro é contigo  !

 

Tudo que agora rememoro começou com uma subida que um dia, há muito muito tempo me levou ao varandil, como ainda hoje é chamado aquele lugar encantado que cobre a cisterna de Monsaraz, terra onde nasci e onde vivi estórias prenhes de ventura. Meditando acudiram-me à memória esses tempos de adolescente, em que, nesse terraço mas num outro mundo diria, tive a minha maravilhosa experiência de iniciação.

 

Daquela aldeia/vila sou natural, ali passei nesse tempo e num mundo encantado muitas férias estivais quando rapaz, ali deixei gravadas no xisto rude das pedras, paixões e recordações vividas em dias de festa, ou não, a que junto as lembranças de umas quantas gasosas e outros tantos pirolitos. Nas noites de luar e frescas todo o mundo buscava o varandil, dali se avistavam, e avistam, terras de Espanha e Portugal. Badajoz e Elvas, contam-se entre elas e todas as que a nossa vista dali consegue alcançar, agora com a moldura enriquecida pelo espelho das águas reflectidas do lago de Alqueva me lembram um conto de fadas.

 

Pensando numa dessas noites encantadas senti recuar no tempo até aos meus doze, treze ou quinze anos. Entre muitas outras, grata me é a recordação de uma boneca loura, de tranças até à cintura, e por mor de quem aprendi toda a catequese. Por mor dela ganhei também, a paciência e o coração que tenho hoje, grande, enorme, capaz de albergar toda a gente. Tudo porque a ela devo ter-me aberto os olhos para a amizade, o amor, a dádiva, a entrega, a solidariedade, a comunhão, coisas em que pacientemente me iniciou, ela, que a menarca tornara mulher de um dia para o outro, a mim, adolescente imberbe e tímido, confesso devedor eterno da sua sabedoria.

 

Com ela tudo que havia a aprender aprendi, a suavidade no trato e nos gestos, postura e compostura, o comedimento nas palavras, a diplomacia do contacto, o cavalheirismo, a etiqueta para com o sexo oposto, pois que, como me dizia, os géneros eram três, a saber; masculino, feminino, e as mulheres, pelo que havia que ter sempre em conta que essa coisa que ainda hoje dá pelo nome de gramática, era manifestamente insuficiente para regular as relações entre as espécies. Hoje tudo isto parece inconcebível, hoje, que tantos advogam o contrário daquilo em que formei carácter e personalidade, enquanto levianamente confundem especificidades e géneros.

 

Feministas ferrenhas fazem por ser tão rudes quanto os homens de barba rija, e estes, maioritariamente se entretêm cultivando modos efeminados, quando não um marialvismo mais ibérico que latino, ou um machismo que os poderá levar a Hollywood mas dificilmente ajudará a conquistar um coração tão especial e sensível como o que qualquer mulher guarda que nem tesouro.

 

Certas gentes não entenderão pois que, passados tantos anos e tão arreigado aos hábitos, eu os mantenha, inda que aparentemente fora de moda, num tempo em que para mim já nada contam esses fantasiosos pormenores, tão enleado me encontro de problemas mais prementes, questões mais candentes e assuntos mais importantes a que dedicar atenção e energias, pelo que, correndo embora o risco de um epíteto desqualificativo por antiquado, cá vá fazendo rodar rodas da minha nora para que os alcatruzes não assomem vazios, mas sempre cheios de amizade, alegria, jovialidade, esperança, amor, graça, deleite, gáudio, e um espírito sempre em festa, disseminando-o por onde passo.

 

Contudo e mau grado de quando em vez esqueço estes ensinamentos sábios e erro, como qualquer mortal, pelo que desculpa peço já a quem tenha melindrado. Não sou pretensioso, mas extrovertido, dono de auto-estima e segurança em excesso, factores que  aliados em muitas ocasiões contribuem para que me julguem mal.

 

Porém, entre um pirolito e outro, coisa que muita gente nunca viu nem saberá o que é, ou foi, lembro ainda essa minha amiga a quem tanto devo e que nunca mais voltei a ver senão nos tempos do PREC. Com ou sem razão, a ela devo tanta da felicidade de que hoje desfruto, mau grado a avalanche de problemas com que, como qualquer de vós me deparo, uma coisa não faço, acumular, arranjar ou tornar problema qualquer coisa que racionalmente possa ser resolvida. Razão tinha uma ciganita que há muitos anos me leu a sina;

 

- Deixa lá, o que interessa está para vir, não te aconteceu ainda, não te preocupes pois com o que foi, não tem qualquer importância, repara nesta linha da tua mão, vida e amor a perder de vista !

 

Sortudo !

Passa para cá não uma mas duas moedas !

E vai contente !

O futuro é contigo  !

 

O PREC, Processo Revolucionário Em Curso, que de novo nos juntou e fez com que nos tivessem esquecido, também nos separou e, advogados poderosos, já depois de toda a sua família resguardada no Brasil, recuperaram-lhes as herdades perdidas que rapidamente venderam aos espanhóis, tendo sido a primeira transacção do género, hoje tão contestado, de que tive conhecimento.

 

Mas enquanto nos esqueciam, preocupados com greves, manifestações e ocupações de terras, nós vivíamos olhos nos olhos, saciando a saudade, a vontade sempre espicaçando a nossa sede de redescoberta, de tal forma que nas suas mãos me fiz homem maduro, e dela fiz mulher a sério, coisa que muito nos honrou e a ela devo, uma dívida de gratidão inesquecível e imperecível. Quantas vezes, com quanta saudade e desejo volto a recordá-la só eu sei, já nem lembro bem a sua fácies, meio século se passou, mas a beleza que irradiava, a doçura que exalava, tocaram-me de forma tão profunda que, em cada mulher a revejo, em cada mulher a considero, em cada mulher a venero e lhe agradeço o tanto que lhe fiquei devendo.

 

Será que a ciganita tinha razão e eu andei e ando por vezes perdendo tempo com problemas que o não são ?