segunda-feira, 23 de maio de 2011

51 – MONSARAZ, UM HOMEM E UMA MULHER...



Com ou sem razão, verão como a ela devo tanta da felicidade de que hoje desfruto, mau grado a avalanche de problemas com que, como qualquer de vós me deparo, uma coisa não faço, acumular, arranjar ou tornar problema qualquer coisa que racionalmente possa ser resolvida. Razão tinha uma ciganita que há cinquenta e alguns anos me leu a sina;

 

- Deixa lá, o que interessa está para vir, não te aconteceu ainda, não te preocupes pois com o que foi, não tem qualquer importância, repara nesta linha da tua mão, vida e amor a perder de vista !


Sortudo !

Passa para cá não uma mas duas moedas !

E vai contente !

O futuro é contigo  !

 

Tudo que agora rememoro começou com uma subida que um dia, há muito muito tempo me levou ao varandil, como ainda hoje é chamado aquele lugar encantado que cobre a cisterna de Monsaraz, terra onde nasci e onde vivi estórias prenhes de ventura. Meditando acudiram-me à memória esses tempos de adolescente, em que, nesse terraço mas num outro mundo diria, tive a minha maravilhosa experiência de iniciação.

 

Daquela aldeia/vila sou natural, ali passei nesse tempo e num mundo encantado muitas férias estivais quando rapaz, ali deixei gravadas no xisto rude das pedras, paixões e recordações vividas em dias de festa, ou não, a que junto as lembranças de umas quantas gasosas e outros tantos pirolitos. Nas noites de luar e frescas todo o mundo buscava o varandil, dali se avistavam, e avistam, terras de Espanha e Portugal. Badajoz e Elvas, contam-se entre elas e todas as que a nossa vista dali consegue alcançar, agora com a moldura enriquecida pelo espelho das águas reflectidas do lago de Alqueva me lembram um conto de fadas.

 

Pensando numa dessas noites encantadas senti recuar no tempo até aos meus doze, treze ou quinze anos. Entre muitas outras, grata me é a recordação de uma boneca loura, de tranças até à cintura, e por mor de quem aprendi toda a catequese. Por mor dela ganhei também, a paciência e o coração que tenho hoje, grande, enorme, capaz de albergar toda a gente. Tudo porque a ela devo ter-me aberto os olhos para a amizade, o amor, a dádiva, a entrega, a solidariedade, a comunhão, coisas em que pacientemente me iniciou, ela, que a menarca tornara mulher de um dia para o outro, a mim, adolescente imberbe e tímido, confesso devedor eterno da sua sabedoria.

 

Com ela tudo que havia a aprender aprendi, a suavidade no trato e nos gestos, postura e compostura, o comedimento nas palavras, a diplomacia do contacto, o cavalheirismo, a etiqueta para com o sexo oposto, pois que, como me dizia, os géneros eram três, a saber; masculino, feminino, e as mulheres, pelo que havia que ter sempre em conta que essa coisa que ainda hoje dá pelo nome de gramática, era manifestamente insuficiente para regular as relações entre as espécies. Hoje tudo isto parece inconcebível, hoje, que tantos advogam o contrário daquilo em que formei carácter e personalidade, enquanto levianamente confundem especificidades e géneros.

 

Feministas ferrenhas fazem por ser tão rudes quanto os homens de barba rija, e estes, maioritariamente se entretêm cultivando modos efeminados, quando não um marialvismo mais ibérico que latino, ou um machismo que os poderá levar a Hollywood mas dificilmente ajudará a conquistar um coração tão especial e sensível como o que qualquer mulher guarda que nem tesouro.

 

Certas gentes não entenderão pois que, passados tantos anos e tão arreigado aos hábitos, eu os mantenha, inda que aparentemente fora de moda, num tempo em que para mim já nada contam esses fantasiosos pormenores, tão enleado me encontro de problemas mais prementes, questões mais candentes e assuntos mais importantes a que dedicar atenção e energias, pelo que, correndo embora o risco de um epíteto desqualificativo por antiquado, cá vá fazendo rodar rodas da minha nora para que os alcatruzes não assomem vazios, mas sempre cheios de amizade, alegria, jovialidade, esperança, amor, graça, deleite, gáudio, e um espírito sempre em festa, disseminando-o por onde passo.

 

Contudo e mau grado de quando em vez esqueço estes ensinamentos sábios e erro, como qualquer mortal, pelo que desculpa peço já a quem tenha melindrado. Não sou pretensioso, mas extrovertido, dono de auto-estima e segurança em excesso, factores que  aliados em muitas ocasiões contribuem para que me julguem mal.

 

Porém, entre um pirolito e outro, coisa que muita gente nunca viu nem saberá o que é, ou foi, lembro ainda essa minha amiga a quem tanto devo e que nunca mais voltei a ver senão nos tempos do PREC. Com ou sem razão, a ela devo tanta da felicidade de que hoje desfruto, mau grado a avalanche de problemas com que, como qualquer de vós me deparo, uma coisa não faço, acumular, arranjar ou tornar problema qualquer coisa que racionalmente possa ser resolvida. Razão tinha uma ciganita que há muitos anos me leu a sina;

 

- Deixa lá, o que interessa está para vir, não te aconteceu ainda, não te preocupes pois com o que foi, não tem qualquer importância, repara nesta linha da tua mão, vida e amor a perder de vista !

 

Sortudo !

Passa para cá não uma mas duas moedas !

E vai contente !

O futuro é contigo  !

 

O PREC, Processo Revolucionário Em Curso, que de novo nos juntou e fez com que nos tivessem esquecido, também nos separou e, advogados poderosos, já depois de toda a sua família resguardada no Brasil, recuperaram-lhes as herdades perdidas que rapidamente venderam aos espanhóis, tendo sido a primeira transacção do género, hoje tão contestado, de que tive conhecimento.

 

Mas enquanto nos esqueciam, preocupados com greves, manifestações e ocupações de terras, nós vivíamos olhos nos olhos, saciando a saudade, a vontade sempre espicaçando a nossa sede de redescoberta, de tal forma que nas suas mãos me fiz homem maduro, e dela fiz mulher a sério, coisa que muito nos honrou e a ela devo, uma dívida de gratidão inesquecível e imperecível. Quantas vezes, com quanta saudade e desejo volto a recordá-la só eu sei, já nem lembro bem a sua fácies, meio século se passou, mas a beleza que irradiava, a doçura que exalava, tocaram-me de forma tão profunda que, em cada mulher a revejo, em cada mulher a considero, em cada mulher a venero e lhe agradeço o tanto que lhe fiquei devendo.

 

Será que a ciganita tinha razão e eu andei e ando por vezes perdendo tempo com problemas que o não são ?