Por isso a
sonhei percebes?
Certo, desta vez não me
bateu com os punhos fechados no peito como quando zangada sempre fazia.
Então,
segurava-a até que acalmada a enlaçava
pela cintura e, porque leve, depositava-a naquele colchão de praia já velhinho,
como se de oferenda a uma divindade se tratasse.
Ela, como uma
pena, pendurava-se-me do pescoço e sorria-me com um ar matreiro de menina má, fingindo ignorar o que se seguiria e se tornara já mais que um hábito, uma
dependência mútua, um vício.
Quando jovem,
muitas vezes acompanhei meu “afô” Nuno em pescarias na ribeira do Guadiana.
Nesse tempo, e muito cedo apesar de verão, por cima das águas uma neblina leve e fina que me
inebriava, pois nela latente o cheiro a rio, inexplicavelmente um cheiro a mar, uma névoa humedecendo-me as roupas, que se me colavam ao corpo como se hoje, no velho
colchão, da primeira vez com ela, e em que eu, qual criança entretida com
brinquedo novo, visivelmente excitado, suava abundantemente o prazer que nos
colava os corpos e de cujo som quando nos libertavamos ríamos.
Vem desde aí a
história do pedestal percebes-me ?
O amá-la como
viciado percebes ?
Era cativante,
metia-lhe os dedos em pente pelo cabelo macio, e vibrava com isso, ela e eu,
mordiscando-lhe a nuca, segurando-a pelos peitos hirtos que me enchiam as mãos
e a mente de remoinhos junto aos quais gostava de pescar, porque na confluência
das águas estreitando para a azenha se juntavam cardumes como atraídos por íman
gigante.
Vinha da pesca
como vinha do colchão, cansado mas eufórico, realizado mas sedento, perguntando
a cada minuto ao “afô” Nuno quando voltaríamos, se num dos muitos e pródigos
feriados que ela, à força, arrancava à vida.
Ainda recordo
a primeira vez que a vi e me estendeu as mãos macias como pele de pêssego, era
um dia de sol, um dia em que, embora a esperasse, me encontrava imbuído de uma
melancolia inconformada em que nunca me vira, nem tão ansioso nem tão iludido
e, talvez por isso não tivesse sido, ou melhor conseguido, e me rendi à
evidência de que até nos momentos de maior glória a ansiedade nos molda e
inibe, nos tolda e confunde, nos marca e melindra.
São estórias
do que devia ter sido e não foi, pois que embora os corações batendo em
uníssono, ficámos tão atrapalhados quão insatisfeitos e eu, até aí tão
confiante, jamais acreditei nos baralhos de cartas nem nos seixos dos rios, nas
borras do café ou na leitura dos búzios, ciente de me enganar a mim mesmo e
estar a fazê-lo, p’lo que nunca mais aconteceu um revés assim e, tão sofrida
ela ficou que nem reparou no meu destino, escondido nas palmas destas mãos
fechadas e lisas, e me perdoou o desaire que não se repetiu e me deixou rendido à
sua bondade e beleza.
Neste caso,
quisemos nós voltar a repetir uma e outra vez e tantas quantas estrelas tem o
céu, pelo que o saldo está ainda por apurar e nós a haver o que de melhor cada
um tem para o outro e que jamais se acabará nesta vida ou nas futuras, pois ambos
sabemos não ser deste mundo este imenso querer irreverente e louco que, por
muito que tentemos, saberá sempre a tão pouco.
Por isso a
sonhei percebes ?
Verdade que
não cerrou os punhos e me bateu no peito como quando zangada me fazia, verdade
que ainda não fugiu entendes-me ?
Mas virá o dia
em que não mais que sonhos, não mais que impossíveis e eu, que julgara nesse
dia realizar pescaria pródiga, assistirei ao passar lancinante dos minutos, das
horas, dilacerado p’la desilusão, toldado por uma frustração que nunca
digerirei... deixando meu “afô” Nuno
carregar-me as canas e as mágoas, ciente de que só eu contava num mundo que
nunca achei justo.
Aprendia a
ser, a ter, e a perder o que de mais raro existe e do qual a ideia de posse é
tão imprecisa quanto as distancias calculadas a olho, os sentimentos a peso, as
dores ao metro ou o bem-querer ao litro.
Há muito meu
“afô” Nuno me deixou, com amor o recordo, e com pena o lembro.
E recordo
quanto me ensinou sobre o ser e não ser e o quanto hoje sou, graças a ele.
Lembro quanto
me ditou sobre o ter e não ter, o que é nosso e não é, o quanto devemos dar e
podemos exigir.
A ele devo
este coração enorme que me anima, esta tolerância que cultivo, tanta placidez
quanta conheceis em mim.
É por isso
que, tu, menina má de cabelos macios, pele de pêssego e beleza infinda, sabei
que és um sonho sonhado e repetido que de tanto o ser me foi, é, e será sempre
mui querido...