sábado, 7 de fevereiro de 2015

227 - AQUELA VELHA CADEIRA * por Maria Luísa Baião


Não sei porque simbolismo tem este singular objecto tido ao longo da história uma curiosa proeminência, se não mesmo um insofismável protagonismo.

Eu própria, quando pequenina, tive a minha cadeira privada, alentejana, vermelha, florida, com assento de buinho truncado, hoje obra de arte que só mãos experientes de artificie ainda produzem para satisfação de ecológico e saudoso artesanato.

Nos meus tempos de menina de catequese tive mais uma vez uma relação particular com esse singular objecto/utensilio. No catecismo, Ele era mostrado na sua majestosa cadeira, rodeado de anjos, segurando nas mãos os raios com que havia de fulminar os pecadores. Perto d’Ele S. Pedro carregava um impressionante molho de chaves.

Também o rei Salomão aparecia sentado em rica cadeira, administrando a justiça e impelindo duas mães à verdade através do pressuposto sacrifício de uma inocente criança. Herodes surgiria contudo exaltado, levantando-se apressado no temor de ser destronado daquela cadeira de ouro, ordenando por mor dela, e para que a lenda se não cumprisse, que fossem executadas todas as crianças do reino.

Já Pilatos, sabido, indolentemente se ergueu da tal cadeira real em busca de uma bacia onde pudesse lavar as mãos da obrigação que lhe cabia, fazer justiça. Não reza a história se com tal gesto nos legou um facto ou um hábito.

Objecto de arte, brinquedo de criança, obra de artesanato, trono divino e assento de reis, a cadeira tem vindo ao longo dos tempos a manter o seu estatuto diferenciador, até como objecto classista.

Não esqueço nunca que, para chegar à altura dos homens à mesa, quando pequenina, não passava sem uma cadeira especial, alavancada com duas grossas almofadas, como não esqueço a cadeira do barbeiro, pois era a ele que meus pais nessa época recorriam. Com as suas aparatosas particularidades, desde o assento que se voltava higienicamente cada vez que um novo freguês tomava nela lugar, até à posição de encosto, obrigatória para quem só desejava barba.

À cadeira viria a ter um medo de morte quando os anos e as cáries me levaram ao dentista, nem os seus miraculosos acessórios me deslumbravam, o foco de luz fortíssimo mesmo por cima dos olhos, ou o prático lugar para expelir a mistura desinfectante com que a boca era bochechada e onde se ouvia o tinir do dente extraído quando nele tombava.

Outras cadeiras me fariam sofrer vida fora, imensas, enormes, autênticos cadeirões que na minha vida universitária tive que transpor e tantas delas com cada dentista ! Ou dentista ou sapateiro, trabalhando sem anestesia nem consideração pela paciente !

Mais sofrido é o trabalho com cadeiras de rodas, onde atrás de cada uma se esconde um drama, um monte de sofrimento a que não urdimos fugir, de que o simples chiar tememos, e cuja lembrança é suficiente para avivar na memória o horror do nosso tempo quando ao volante nos sentamos, numa confortável cadeira, estrada fora, matando e morrendo.

Temor inspira a cadeira do poder, do patrão, do chefe, do doutor, do juiz, sempre melhor e maior que a nossa, sempre mais alta que a nossa, propositadamente, estatutariamente.

Adoro as cadeiras de praia, o sol, o mar, o bronzeado, a maresia, as férias, o tempo livre, a leitura, como adoro as cadeiras de campismo, o espaço amplo, o piquenique, a liberdade, o descanso para os braços, a leveza da madeira, o pano das costas, os pés que se partem, foi numa dessas cadeiras que Salazar sucumbiu.

Prezo as cadeiras antigas das esplanadas, o contacto frio com o metal nas noites de frescura procuradas no verão, os amigos, as conversas sem fim, a groselha com gelo e limão, as estrelas do céu, o fumo dos cigarros, o sabor e o cheiro acolhedor da bica, a roupa leve, o espirito liberto.

Nos Estados Unidos há um corredor com uma única cadeira ao fundo, discute-se agora a sua utilidade e exemplaridade. Tem anos e anos de vida e vidas e vidas dentro desses anos. É uma velha cadeira onde ninguém se quis sentar, e onde apesar de tantos, contrariados, se terem contudo sentado, não continua a faltar quem nela contrariado se sente. Valerá a pena conservar aquela velha cadeira ? **

* Publicado por Maria Luísa Baião no Semanário Imenso Sul, em 12-11-1999

* * THE OLD SPARKY






sábado, 31 de janeiro de 2015

226 - AMORAS E AMOREIRAS …….….....…………


Os olhos desviaram-se-me ligeiros para as pernas nuas da jovem condutora, por isso vi mal o braço da companheira viajando a seu lado, aliás os meus olhos percorreram em segundos todo o carro, que quase parou debaixo da amoreira para evitar bater no ressalto dos carris. Nesse curto lapso de tempo registei uma miríade de pormenores, o braço bronzeado, os curtos calções da condutora e a pele extraordinariamente branca das coxas, que me distraiu.

Se ainda me lembro d’alguma coisa é da particularidade daquele braço, e só por os últimos quatro algarismos condizerem com o ano em que nasci, não fora isso e nem teria fixado decerto um número tão extenso. Observava eu num relâmpago e com minudência tudo que se me atravessava sob os olhos quando o Tonicha gritou:

- Este é um Alfa Romeo !

- Francês, olhem a matricula ! Rematei-lhe…

Por isso num instante esqueci as coxas brancas, o número longo tatuado no antebraço da francesa e quedei-me, admirando nos últimos segundos o vermelho vivo do Alfa Romeo, as linhas esguias e baixas, surpreendido por ver o vidro dobrado da capota recolhida, que afinal era de fino plástico explicaram-me posteriormente, ainda recordo a matricula, vermelha como o carro, e uma mistura de algarismos e letras prateadas sumindo-se num roncar estrada fora, o pensamento alongando-se-me com o ir do carro, quem serão as madames, donde virão, pra onde irão ?

E estendido ao comprido sobre o tronco ou melhor o galho da amoreira, quase sobreposto à estrada, imaginava vidas indo e vindo, vidas ocupadas, vidas com fito, com partida meio e fim, ou chegada, enquanto iludíamos o tempo e as horas comendo as amoras, que ao menor descuido nos desenhavam mapas nas camisolas, ou nos calções, já curtos para a infância que se despegava de nós como a pele das cobras que volta não volta encontrávamos nos campos entre duas pedras ou entre estevas ou giestas.

A pulsão da vida desviara-nos dos ninhos da passarada para o mirante da amoreira junto à estrada quando já nem bichos-da-seda criávamos, vendidas que foram as caixas, os bichos, os casulos, tudo, desvendado que estava o segredo da seda e das metamorfoses do bicho outros mistérios nos chamavam, outros segredos por desvendar acicatavam em nós o desejo e a busca numa demanda cuja tensão, esticada entre a infância que se perdia e a adolescência que dia a dia se ganhava, vibrava em nós e nos preenchia de acne, ou de impensadas atitudes, guerras, brigas e desafios, numa constante comparação e medida de nós mesmos,

- O Cristóvão já deita aguadilha !

Assim como se deitar aguadilha fossem divisas, ou um posto, ou uma carreira a que se seguiria naquele ritual iniciático a langonha, que o Barreto já tinha e a quem, aliás, a barba despontava em cada borbulha do acne.

A copa e os ramos da amoreira eram rampa de lançamento de querelas e quimeras, não raras vezes dali lancei o pensamento, como quem deita um boomerang, ou melhor, um papagaio ao vento, dando-lhe guita até que algo ou alguém me forçasse a puxar-lhe as rédeas.

- Olha um boca de sapo ! Alemão ! Topem aquela matricula !

E na esteira do boca de sapo as conversas cavalgavam a técnica, a hidráulica e a aerodinâmica, as suspensões, ainda não havia airbags e nem sei por que carga de água as conversas iam invariavelmente parar a amortecedores, a conforto a mamas e a sexo.

Andaríamos pelos treze, catorze, quinze anos, o sangue fervia-nos nas veias e nas guelras se é que me entendem, a amoreira era o areópago onde a nossa instrução sentimental e educação sexual davam os primeiros passos.

Assuntos como um filme visto ou contado por algum dos mais velhos, experiência com prima, amiga ou vizinha era assunto dissecado exaustivamente. A esta distância rio-me da nossa ignorância, maior que a soma da insolência de cada um. Baralhos de cartas, fotos, revistas, desenhos, pinturas ou livros de mulheres nuas tudo era para ali canalizado e objecto de grande reflexão e debate.

No fim uma geraldina, tudo nas pívias para nos  acalmar a febre, cada um cuidava de provar a si mesmo e aos outros do que era capaz, e aí se via quem já, e quem se vinha com mais força, mais deleite, maior quantidade, mais longe, ou quem somente se ficava pela aguadilha.

Por vezes passavam pegadinhos um Chevrolet, um Cortina, um MGB ou uma arrastadeira igualzinha à do senhor Assis que era chefe dos bombeiros, cada um vibrava com as suas próprias preferências, e era sintomática a diferença entre nós, havendo quem gostasse delas cheiinhas, de seios grandes, ou magrinhas como as cobras, mais flexíveis, não que malabarismo, atletismo ou gimnastica fossem predicados ou gostos nossos, tudo tinha mais que ver com os contorcionismos das nossas mentes jovens e sonhadoras. No fim destas particularidades vinham as peculiaridades de cada um, este era bem dotado, aqueloutro já pintava, quer dizer já tinha pelos púbicos, fulano vinha-se uma, duas, três ou quatro vezes seguidas num quarto de hora, beltrano assim, sicrano assado…

Depois cresci, fiz-me homem, uma vez na hora H ainda fugi da Nani, não dessa que pensam, de uma outra, esqueçam, comecei a ler, a ir ao cinema e a bem dizer foi aí que se me iniciaram as revoluções de consciência.

Aquele número tatuado, aquele braço, seria aquela mulher a filha sobreviva da escolha de Sofia e que havia tantos anos me impressionara ?

Nisto um melro mais atrevido pousou no extremo afastado de um galho, decerto para depenicar as amoras maduras pois ali as não alcançávamos, o Hernâni fez sinal para que nos calássemos, ninguém mexeu, apontou a fisga, esticou os elásticos, largou. O melro nem soube o que lhe aconteceu, caiu no chão sem um pio.

Que espécie de gente será capaz de atitudes assim ?             




quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

225 - VOZ FEROZ * por Maria Luísa Baião * ..............

                          

         De todo o lado me chega notícia de um bom aluno que hoje, impotente e com perícia, como um cábula mente e como gatuno que rábula inventou me irrita até à medula, me põe hirta me põe fula, já que por tudo e por nada nos surge no fim da lista. Este pequeno torrão que já foi primo inter pares é agora um aldrabão e no que concerne a azares, sempre sempre entre os primeiros.

Andava eu meditando que nada lhe vou achando em que não mostre uma nódoa, distinção em nada própria que, solene nele destoa, quando por causa da sida, coisa que ninguém precisa, p’ra me tornar menos crente tira nota de excelente. Isto não é já um país, nem aluno ou aprendiz, mas antes caso perdido onde vive um povo sofrido e em que cada um diz o que diz, nunca dizendo o que sabe, tão pouco sabendo o que diz.

Talvez por tão melindrada que a situação se torna e por ver malhar na bigorna tudo que é coisa acertada como quem malha em ferro frio, algo me veio aos ouvidos que me quebrou o fastio e me arrancou de pruridos. Não conheço o orador que, por uma vez sem pudor, teve o condão de gritar, não a medo ou sururu, a verdade tão à vista, de que afinal o rei vai nu. Fê-lo do alto de um monte, do púlpito de velha igreja, recriação de Xenofonte, Anacreonte ou arconte. Fê-lo fazendo dele grito, que saiu sem um atrito, não gerou qualquer conflito, nem foi causa de delito, antes discurso bonito e muito, muito bem dito, mas c’o ar de quem peleja sabendo de ciência certa quanta razão lhe sobeja.

E foi com uma voz feroz que atacou ali, sem peias, sob o olhar de Santiago e rodeado de ameias, a “Pobreza Contra a Qual se Luta”, como quem diz; “A Pobreza Contra a Qual Lutamos”, num discurso sem rebuço, como que erguendo bem alto um pano, estandarte ou bacamarte, lutando denodadamente p’ra tornar aquela gente crente da verdade incómoda que deixa qualquer pessoa, pensativa mas mais sóbria. Gastar dinheiro com a pobreza, segundo o articulista, deu-nos a única certeza que, de tal a bem ou a mal muita gente se alimenta e sem que dela padeça. E p’ra vos dar uma pista, direi haver quem se amamenta como se aqueça ao braseiro, inda sem que disso careça.

Programas comunitários, ou de outra fonte qualquer, são sacrário onde comer se tornou tão grande hábito, onde sem ser preciso apito há quem lobrigue o infinito, fazendo do bodo um gambito e aos pobres um manguito. Caudal de sobrevivência, catedral de bom emprego, a luta contra a pobreza é hoje a espinha dorsal de uma hierarquia estival da qual, para o bem ou para o mal só nos fica uma certeza; tem aumentado a pobreza na directa proporção do muito que lhe destinam, que é o mesmo que dizer que quanto mais pão lhes dão mais pobres estendem a mão.

Calhando, fazendo as contas, com o erário que foi gasto nas lutas contra a pobreza e baralhando os costumes, já tínhamos há muito feito de cada pobre um milionário, o que eles não negariam, pois por certo não viveriam com queixas ou azedumes. Não conheço o personagem, dono da voz tonitruante que apareceu em Monsaraz, qual Cavaleiro Andante pregando veras verdades sem companhia de pajem.

 Calhou chegar até mim o pregão de um homem seguro que, ao longo de várias idades parece ter tido o condão de irritar celebridades. Há quem diga ser um puro, outros chamam-lhe arrogante, sei por ter ouvido contar que é p’lo menos bom pensante. Parece que ao invés de muitos, o que tem para dizer, di-lo, não se constrange ou amedronta qualquer que seja a afronta e tem por nome Camilo.

Mor d’água vos deixarei durante algumas semanas, vou a banhos, vou de férias, aproveitar dar umas lérias, passear p’lo Al Andaluz, calar canseiras, enganos, ganhar coragem, decisão, pois na volta tenho à espera, de novo o cirurgião.

BOAS FÉRIAS. 

* Crónica publicada por Maria Luísa Baião em Diário do Sul - Kota de Mulher - s.e.o. em Março de 2003, a propósito de um discurso de Camilo Mortágua, proferido na igreja de Santiago, integrado numas jornadas referidas no texto, vivia-se a iniciativa "Monsaraz Museu Aberto" nesse dia sob o lema da pobreza do país, governava então Durão Barroso. 


sábado, 24 de janeiro de 2015

224 - 12.000 DOZE MIL PRÓ MANETA ….........……

Velho adágio doutrina que quanto mais nos baixamos mais o cú nos aparece, eu acrescento ser sempre nas horas em que a porca torce o rabo que nada nem ninguém nos dá ou empresta um braço ou um ombro amigo.

O banco central europeu BCE, vem agora com um plano excelso para salvar a economia europeia que, pasme-se, os europeus meteram nos trilhos do desastre. Em 2010 os Estados Unidos e o reino Unido enveredaram por políticas contrárias às da UE com resultados muito positivos, por isso é justo dizer-se que o BCE vai fazer agora o que devia ter feito na altura. Jamais o Banco de Portugal admitirá tal mas, quer ele quer Passos Coelho ou Victor Gaspar ou Maria Luís, ou mesmo todo o governo agiram mal, estiveram e estão errados, o povo português sofre a paga cara toda esta austeridade inútil que muitos males agravou sem que tenha resolvido algum, é triste mas é a realidade, é o nosso fado, triste fado. 

         Esta austeridade nunca foi contestada, por nenhuma destas personagens, Passos Coelho diz agora nunca se ter oposto ao BCE, mas nunca o contrariou, e vejamos a reportagem cujo link está abaixo (*)  « em Junho de 2012, no Parlamento, em resposta ao então líder do PS António José Seguro, Passos Coelho opôs-se à compra de dívida por parte do BCE e explicava porquê,

“Se o senhor deputado entende que o BCE deve actuar em mercado secundário com programas mais intensos de compra de títulos de dívida soberana dos diversos países; se é isto que o senhor deputado entende deixe-me dizer-lhe: não concordo e não preciso de pedir licença a ninguém - nem em Portugal, nem na Europa – para lhe dizer aquilo que penso. Não aceito essa visão porque em primeiro lugar não cabe ao BCE em circunstância nenhuma exercer um papel de monetização dos défices europeus”. »

Do exposto fácilmente se depreende que neste momento Passos Coelho faz simplesmente por não perder a face. Todavia os do governo nem são mais tolinhos que os outros, e a malta sabe. Contudo para ser honesto, a António Costa, link (**) também não fica bem cavalgar a onda, pois ela simplesmente surgiu, é uma vaga de fundo que a situação impõe, não foi induzida por ele nem parcialmente, pelo que o seu aproveitamento é oportunista. Porém Costa está a perder-se porque o pessoal já abriu o olho, e nada adiantará fazer-se de morto, desce nas sondagens porque nada garante que faça muito diferente, (nem como) porque não cortou com o passado, nem se demarcou dele, de que foi ministro, e nem ele nem o seu partido nos pediram desculpa pelos erros cometidos e que estamos a pagar caros.

É dos livros que a economia capitalista assenta no consumo, sem essa matriz primeva da sua génese não há nada, pelo que pasmei quando, há quatro anos vi recomendada primeiro e imposta depois uma cura pela austeridade.

Parcimónia, bom senso, comedimento, sensatez, faltaram-nos nos últimos 40 anos, impõe-se esclarecer e afirmar que os portugueses têm sido enganados, os partidos têm-nos mentido, todos eles sem excepção, uns mais que outros, uns por omissão outros por premeditação, foram todos eles sem que tal assumam quem nos trouxe até esta miséria em que nos encontramos.

E a nossa desgraça é tão grande que ninguém foi capaz de contestar a cura radical de austeridade que nos prescreveram e que, conforme já vimos volvidos quatro anos, nada curou e está a matar-nos.

E ninguém contestou essa cura porque não temos estadistas, nem sequer gente competente. Quanto mais falham mais sobem, viu-se com todos em especial com Victor Constâncio e Victor Gaspar. (Que ao menos admitiu o falhanço na carta de despedida e aconselhava a fazer o contrário do que ele mesmo fizera) Os últimos estadistas competentes que nos governaram estão enterrados, Salazar e Marcelo Caetano, que ainda não tiveram quem lhes fizesse frente ou sequer chegado aos calcanhares, e esse é o nosso drama.

Evidentemente não podemos esbanjar os dinheiros públicos como vínhamos fazendo e em projectos megalómanos e inviáveis, como o Aeroporto de Beja, ou o de Rio Frio, que quase estivemos para construir, ou o TGV, ou a terceira auto-estrada Lisboa Porto, e tantos outros projectos extravagantes por este país fora, como não podemos alimentar empresas publicas continuamente deficitárias, há que gerir bem, exigir responsabilidades, e poupar o dinheiro dos contribuintes para que não necessitemos pedi-lo emprestado lá fora com as consequências que todos agora conhecem.

Naturalmente teremos que evitar o risco de voltar a deixar que os bancos façam as habituais negociatas financeiras e deixem a economia à espera de investidores que criem emprego, porque eles não o fazem, teremos que desenvolver atempadamente as reformas estruturais e conjunturais necessárias e não andar a reboque de pressões pontuais, sim, porque se o não fizermos não haverá investimento… ninguém virá meter aqui uma béka.. e o desemprego continuará em alta... Enfim, teremos que nos obrigar a repensar e a ter em conta um vasto leque ou conjunto de factores  de modo urgente...  O porreiro Pá tudo bem, tem que acabar. Não pode continuar a ser o nosso mal…

O caricato da situação surge quando nem de dentro nem de fora, FMI, BCE Comissão Europeia, vislumbraram o vírus que inocularam nas economias viradas para o consumo e produção. O que o BCE vem fazer agora, tarde e a más horas, é o que devia ter feito em 2010, ou até antes. Sem asfixiar devia ter controlado, evitado a sangria, e o despesismo. Ao invés deitou-se fora o bebé fora com a água do banho, fomos obrigados a beber um remédio que nos está a matar, a deflação que tanto temem foi criada por quem só via na austeridade virtudes, esquecendo ter que haver quem consuma pra que a produção se escoe…

No nosso país o problema em concreto é agravado, pois nem consumimos nem produzimos e se a economia dá uma aberta vamos a correr criar postos de trabalho na Alemanha ou na França, vamos a correr comprar Mercedes ou BMWs, queijos de Brie, Camembert e vinhos de Bordéus…

É aqui que eu chego à parte da reflexão em que o raciocínio me força, por muito que não goste do despesista e gastador Sócrates, a ter que lhe reconhecer razão, foi ele quem disse numa entrevista, por volta de 2010 ou 2011 quanto às dívidas dos estados:

- As dívidas dos estados não são para pagar, são para gerir ...

Nada mais verdadeiro, embora na altura toda a gente o tenha trucidado e levado a expressão para o lado de quem não pensava pagar as exageradas, sumptuosas e desnecessárias despesas por si feitas, contudo Portugal e a UE, bloco económico de que fazemos parte, bloco do euro, deviam ter acordado prazos, modalidades juros carências e contenções, ao invés de nos ter sido imposta esta austeridade assassina que ameaça destruir toda a Europa do sul onde a receita foi aplicada. A nossa economia já foi de pantanas, por termos a governar-nos gente incapaz e mais papista que o papa …

É que para além de nos terem faltado na hora certa as reformas, contudo todavia mas porém, se se achavam capazes de governar teriam que saber cantar e assobiar ao mesmo tempo, fizessem as reformas sobre o que existia e funcionava, tal qual um engenheiro faz uma via novíssima sobre outra que continua funcionando e somente no fim desvia o transito para a nova faixa ou nova via, ou como um cirurgião que opera o doente sem lhe parar o coração, esse é o primordial busílis da questão, se não sabem como fazer as coisas não as façam, deixem a oportunidade a quem saiba. E assim para tentar fazer de novo se matou o que existia. Calcula-se que metade dos empregos perdidos nestes quatro anos se devam a inexperiência governativa…

Mas regressemos à vaca fria, a inflação baixa e controlada é benéfica e actua como um estímulo, vou dar-vos um exemplo exagerado até ao limite:
Imaginemos que a inflação anual se mantinha durante uma década na ordem dos 40 a 50% (eu disse exemplo no limite) que aconteceria á nossa divida findo esse prazo ?

Eu digo-vos, estaria comida pela inflação e como ameaça quase nada representaria, enquanto agora representa uns puxados 130% do PIB… Mas, com a baixa inflação ou a deflação que tanto se teme, o seu tamanho monstruoso irá manter-se  ampliar-se !! Daí que a deflação para além de todos os aspectos negativos que arrasta, devido ao ciclo quebra da produção quebra do consumo que a quebra de expectativas e de preços cada vez mais baixos acarreta, assusta sobretudo por amplificar os males e monstros existentes. Como iremos pagar uma divida que se avoluma com uma economia definhando a cada dia que passa ? E definhará cada vez mais até por efeito das características que a deflação nela induz.

A senhora Merkel começou o problema, é que a deflação em que a Europa seriamente incorre foi "plantada" por esta senhora e pelas suas teorias macroeconómicas absurdas, pois se o capitalismo vive do consumo era óbvio que a austeridade nunca seria a receita indicada, o problema dela é falta de autoridade moral para falar pela Europa, porque parece que lá pela sua terra bem prega e melhor milagra e quanto a isso não a podemos condenar...

Ora o pensamento alemão ou finlandês, permanentemente contra as nossas políticas de despesa com investimento público (o que em parte se compreende) erra por incluir a tao famigerada critica ao consumo. Está visto e provado que a austeridade nos países do sul, que pouco ou nada produzem e tudo lhes compram não leva a nada, porque são eles quem neste momento chia e se queixa pelo abrandamento do consumo, onde a produção baixa, onde a procura abranda, e os preços ameaçam entrar em queda livre arrastando toda a Europa para um enorme buraco negro de desemprego e miséria.

É que a economia também se manifesta através de estímulos psicológicos (é ou não é amigo Pacheco?), é verdade que a deflação (na oferta) aumenta o poder de compra (da procura), mas é uma verdade envenenada. O problema é que a queda dos preços, (que beneficia os salários baixos, que desse modo podem adquirir mais bens), o problema é que a queda dos preços não induz á venda porque ficamos esperando que amanhã baixem ainda mais e não compramos hoje, na esperança de comprar amanhã mais barato, e assim sucessivamente levando a oferta a baixar ainda mais o preço... e gerando uma situação que arrasta consigo vendas abaixo do preços de produção, inevitáveis falências, queda do investimento, queda do emprego e outras desgraças análogas...

Ah ! Já me esquecia !!

E quanto aos 12.000 funcionários (***)  para "reciclar" estamos conversados, fugiu à ministra a boca para a verdade, mas, verdade seja dita que não a abriu toda porque não o pode fazer, na realidade este país como está não recomeçará a mexer-se sem que aproximadamente uns 150 mil sejam arrumados… ou no limite todos os funcionários públicos, basta que a economia continue na senda do êxito que tem sido anunciado entendem ? De qualquer modo admitir dispensar 12.000 já é um bom começo de assumpção do que está mal neste país e da discussão da sua resolução, só não me pronuncio mais detalhadamente por não ser sindicalista…

Não se pode falar verdade, os portugueses não aguentam, e os políticos socorrem-se de subterfúgios da linguagem, (ver texto 217, 


Por isso se fala tanto em “racionalização dos recursos na administração pública”, que contará com “vários instrumentos - aposentação, rescisão por mútuo acordo e ou situações de requalificação", mas "os objectivos não são estanques"… O que significa que tanto podem ir para o maneta ainda este ano ou no próximo, ou no seguinte, depende da narda disponível… ($ narda) Segundo a ministra das finanças, "há um objectivo de reduzir nos casos onde há mais recursos do que o necessário", garantindo no entanto que "não há um número, uma meta a cumprir por cada ministério"…(sic).

Amanhã é domingo, estarei na missa das matinas rezando por todos os felizes beneficiários da racionalização e seus variados instrumentos e por Mário Draghi, o resto são peanuts …

Fikem bem :D Um dia falaremos sobre os óbices ao empréstimo do BCE a Portugal e das piedosas mentiras que a propósito os nossos governantes nos enfiarão…






P.S. esta última foto é só pa despistar e atrair os bacocos à leitura do manifesto :D 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

223 - FAROL, BERLENGA GRANDE .........................


Naquele lado da ilha o sol batia menos, em compensação era mais protegido do vento e não sofríamos os salpicos da rebentação, contudo não era por isso que ela o escolhia, mas sim por ser mais abrigado de olhares vindos do farol, ainda que o velho Baltazar estivesse entretido lá no alto polindo-lhe e limpando-lhe lentes e mecanismos.

Deste lado poderíamos pescar e lançar as armadilhas para as lagostas sem o tormento ou a violência das vagas, e depois estender as toalhas turcas sob a “anta marinha”, como eu chamava brincando com ela àquela rocha, debaixo da qual nos deitávamos gozando o sol ou trabalhando para o bronze.

A bem dizer fugíramos da Estrela,* eu com direito a seis semanas de licenças acumuladas, que aproveitei para dar continuidade à convalescença e que vinham mesmo a matar, credo, lagarto, lagarto, lagarto, o diabo seja cego surdo e mudo, quero dizer vinham mesmo a calhar. Carmelinda aproveitara e metera férias, farta que estava do bulício da capital e mais ainda daquele hospital onde, dizia, era eu a única coisa interessante e que valia a pena, o que para o meu ego superava o beneficio de vinte sessões de terapia como devem calcular.

Por tudo isso a Berlenga grande era mais que um paraíso, aquele verão quente aconselhava-nos lonjura da capital e a deixar o caminho livre à revolução, que grassava como fogo em capim e cujo calor afogávamos com os vinhos de Colares e as caldeiradas do velho Baltazar.

Dez minutos depois de estendidas as toalhas no aconchego da “anta marinha” transformávamo-nos em verdadeiros “homens” das cavernas, dando largas aos instintos, e esquecendo as armadilhas das lagostas e os iscos nos anzóis encostávamos as canas, mais preocupados em não ir ao mar para não perdermos o lugar, sucumbindo à primeira dentada muito antes de sentados à mesa frente a uma açorda de camarão, uma feijoada ou cataplana de marisco.

Era eu quem normalmente o fazia, desfazendo-lhe com os dentes o lacinho do calção, olhos ardentes, tal qual um miúdo desembaraçando da prata um chocolate e impaciente por degustar o bombom.

 Bombons ou salgadinhos ! Que também apreciava, e ainda aprecio. Raramente esquecíamos as toalhas e uma cesta com caju, morangos, mousse de chocolate, cervejas frescas e chantilly, e uma laranja ou duas, ou clementinas, que ajudavam a tirar da boca outros sabores e odores antes de regressarmos.

Aquilo era mais que um reflexo inato para nós, bastava que um começasse a salivar p’ra esquecermos o sol, as armadilhas, o velho Baltazar e a mais elementar cautela, como se a ilha fosse só nossa e nós os únicos ao cimo da terra.

Às dentadinhas repartíamos os morangos, outras vezes eram barrados em mousse de chocolate ou chantilly e comidos como a cereja no topo do bolo, lembro-me de uma vez em que fui obrigado a tirar um com o dedo, enquanto embaraçados desenleávamos as linhas iscos e anzóis das canas que a ventania derribara.

Momentos que jamais serão esquecidos, sobretudo quando ela, juntando o indicador ao polegar e fazendo um anel me tirava do sério, passando os dedos por mim suavemente, deslizando, fazendo deslizar a mão levemente numa cadência delicada e conspícua que me desorganizava os neurónios e eu, c’o pensamento desalvorado, entornava as caixas dos doces e, atrapalhado, procurava os morangos com os dedos lambuzados, uns dias de mousse de chocolate, outros de chantilly, numa aflição, enquanto ao mesmo tempo os guizos trinavam nas canas acusando peixe, e o cordel retesava-se e relaxava nas armadilhas prenhes de marisco e nós moita carrasco, esquecidos de tudo, dos guizos, das armadilhas, da caldeirada, do almoço, do farol, do velho Baltazar e do tempo, entregues às delicias da sobremesa enquanto no transístor

- Última hora ! Operários soldados e camponeses cercam a Assembleia Constituinte !

Recordo vagamente ter balbuciado ainda qualquer coisa como

- Será um putsch da esquerda ou da direita ?

E a Carmelinda afobada com os doces entornados, com o morango perdido, com os guizos que não se calavam ou os cordéis das armadilhas que não paravam quietos

- Fogo não ligues !
- Não pares agora !
- Em frente porra !

- Que se fodam as esquerdas e as direitas, jurei a mim mesma que nada havia de me estragar estas férias caraças !

E quando eu, no pleno gozo de direitos adquiridos e por adquirir me preparava para lhe censurar a linguagem desbragada, senti repentina dentada na orelha e ela, muito meiga e muito terna sussurrando-me ao ouvido

- Eles que chamem o Vasco meu querido, porque a mim daqui ninguém me tira e agora não saio e desliga a merda do transístor que nem as horas quero saber férias são férias e

E nem acabou a frase, ofegante, compenetrada de que a minha convalescença fosse bem aproveitada e a recompensasse de tanto desvelo, nisto a língua no meu ouvido e o anel apertando-se numa cadência mecânica e certa, como o rátátá de uma metralhadora, ou o rude ttttrrrrrooouuu das pás de um helicóptero, o coração batendo-me que nem um cavalo, o rubor conquistando-me o rosto, os olhos virando e revirando incapazes de focar o infinito quanto mais o finito próximo,

furioso o vento soprava por cima da “anta marinha” fustigando as canas e as armadilhas, ela desembaraçando-se do sutiã, estendendo-se na toalha turca aconchegada a mim em conchinha e eu, deixando de ver, protegendo-a num abraço enquanto o transístor repetia as noticias de última hora e dava o meio dia precisamente quando ela empinando e eu, que já nem via, vi nesse instante o farol aceso, piscando intermitente como nas noites quentes e negras em que ela me espantava despindo-se sob essa luz estroboscópica, e vi, juro que vi sob o sol escaldante mil grinaldas coloridas resplandecendo em cores vivas e vistosas e ainda mais fogachos multicores refulgindo e deslumbrando-me de tal modo que os dentes me rangeram e caí desfalecido na toalha, já sem forças, sorriso na cara, e a certeza de que a convalescença era coisa do passado.

                   Nesse domingo ainda almoçámos juntos, foi o último, ao fim da tarde regressámos à capital, ela ao hospital da Estrela, eu a Vale de Zebro e ao Alfeite. Perdemo-nos nesses tempos agitados, a revolução tragou-nos e durante décadas nada soubemos um do outro, até hoje, precisamente hoje, em que, maravilha das maravilha e graças às redes sociais a encontrei e soube na Tailândia, na Coreia, Camboja, no Vietname, no Laos, percorrendo toda a antiga Cochinchina, refulgindo escaldante por onde passa, resplandecendo em cores vivas e vistosas, linda e deslumbrando-me como sempre, acreditará ou pensará após tantos anos que esqueci o farol ?                                                                                                                                                   

        
* http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html