Eu andava com os nervos à flor da
pele, ou em franja como comummente soa dizer-se, lembro-me perfeitamente desses
dias. Nem as pastilhas nem os pensos me atenuavam os tremores nem os temores, e
a verdade é que na dezena e meia de vezes em que fui tentado e motivado a
abandonar os cigarros não atingi nem os mínimos satisfatórios quanto mais os
necessários.
O que melhor recordo foi um desses
dias em que tanta droga antitabágica me descontrolou os intestinos e tive que
pedir-lhe, não sem alguma vergonha ou constrangimento, que me deixasse utilizar a casa de banho,
até por necessitar também de mudar o penso da nicotina.
Assim foi e assim fiz, contudo o penso
velho oferecia alguma resistência a descolar-se, repuxava-me a pele e os
cabelos do peito aleijando-me a valer, lembrei-me então de com um algodão ou um
bocadinho de papel higiénico embebido em acetona retirá-lo com facilidade e sem
dor, não há mulher que não use acetona, por isso passei os olhos pelo conjunto
espelho/aparador/armário da casa de banho tentando encontrá-la, à acetona não à
Margarida.
Não me recordo depois de todos estes
anos o que me levara a casa dela, recordo sim que por pouco me ia cagando, das
dores provocadas pelo adesivo nem tanto, o que lembro bem é de mim, um estranho
naquela casa de banho, devassando-lhe a privacidade com o olhar, que tudo
mirava licenciosamente.
Encontrei pensos rápidos,
mercurocromo, cera depilatória, verniz vermelho escuro, uma caixa de OB,
portanto apesar dos quase cinquenta a minha amiga ainda era menstruada, o que
em parte explicaria o seu bom humor, e atrás dessa caixa uma caixinha de gel,
uma marca desconhecida para mim, Pharmatex, o que me aguçou a curiosidade e num
impulso irreflectido me levou a estender o braço e a pegar no dito gel, que
mirei atenciosamente. Gel contraceptivo… portanto a minha amiga não usava a
pilula, o que em parte explicaria a sua pele limpa e lustrosa, isenta das
manchas comuns que o uso prolongado da pilula provoca, sobretudo nas peles mais
sensíveis e que como sabeis também seca, ou greta.
Só não encontrava a acetona e senti-me
um intruso na casa dela quando ao colocar o gel no lugar derrubei um frasquinho
de Oliprox, um verniz medicinal para as unhas e usado por quem sofra de onicomicose,
logo pensei que sendo ela pessoa com quem eu fosse para a cama o melhor seria
desviar bem os pés dos dela, não fosse aquilo pegar-se, todavia não era o caso,
nada de excêntrico, anormal ou abstruso se passava entre nós, quem sabe se o
ex-marido ou alguma paixão de ocasião lhe pegara o fungo a ela…
Satisfeito com o que a minha curiosidade
me desvendava, e confesso que com alguma maldade ou sadismo, não me contentei com
o que à vista me era oferecido. Aliás o que via era normal numa mulher, cremes
para a pele, para a cara, cremes para tirar outros cremes, quero dizer para
retirar a maquilhagem ou simplesmente limpar a pele, o Nívea universal, o
rouge, o pó de arroz, o conjunto de rímel, um alicate de pestanas e uma pinça
de arrancar as sobrancelhas, digo depilar, lacas várias, shampoos e corantes
para o cabelo, um deles anticaspa, num cestinho todo amaricado e coisa mesmo de
mulheres uma colecção de escovas de cabelo e rolos, umas molas que nem
imaginei para que seriam, uma Gillette com a espuma mais que seca e onde ainda se
viam os pelos rapados, um alicate de unhas, de unhacas a julgar pelo tamanho do
alicate, mais acima boiões com tudo e mais alguma coisa, até flores
verdadeiras, mais precisamente cactos, no parapeito da pequena janelinha, mais
em baixo e numa gaveta um saco de bolas de algodão, dois rolos de adesivo,
várias limas coloridas super-fraquinhas que mais pareciam de cartão, um limatão
para algum unhão, uma embalagem de Betadine, noutra gaveta uma colecção de
batons desde um para o cieiro até à cor mais estrambólica, e outros cujas
embalagens transparentes deixavam ver misturas exóticas de confettis ou purpurinas
nos batons mais líquidos que duros, dando ideia de serem aplicados a pincel
embora não tivesse visto os pincéis, e, arrumadinhos como soldadinhos de chumbo
em fileiras umas duas dezenas de frascos de verniz, gostei de encontrar um
frasco fúxia a minha cor preferida, porém acetona népia, ora se não estava ali
naquela gavetinha dos vernizes onde raio teria ela a porcaria da acetona ?
Esgaravatei a ultima gaveta mas não encontrei
mais que ligaduras, gaze, duas tesouras uma delas de unhas, uma maquineta para
desgastar ou desbastar ou calos ou calosidades dos pés, meias de desporto
elásticas vivamente coloridas e em varias cores, daquelas que costumamos ver
nos ginásios e que as mulheres usam até meio da barriga da perna, portanto a
minha amiga frequentará algum ginásio, folgo que se preocupe com a saúde e a
linha, corpo são em mente sã, o que em parte explica aquele corpinho roliço de
formas esculturais, talvez se veja obrigada a suar um bocado mas afinal e ao
contrário do que eu pensava Deus não a bafejou em tudo, pelo menos as medidas
que apresenta exigiram-lhe muito trabalhinho, e dieta ? Fará ? Sofrerá também
com isso ? Passará fome por gosto ?
Estava eu meditando nisto quando os
intestinos me deram uma volta e ronronaram, só tive tempo para atirar uma
joelhada à gaveta fechando-a, de baixar as calças novamente e sentar-me na
sanita, respirando fundo sustive o ar e quando o expeli fi-lo com alguma
satisfação e, embora o espelho estivesse alto, aposto que tinha um sorriso
estampado na cara. Talvez por me ter
levantado mais aliviado e com outro humor mal me pus em pé os olhos deram de
caras com a acetona entre o relógio e uma caixa de pensos para os joanetes, nem
podia estar mais à vista a merda do frasco que já olhara uma dúzia de vezes e
confundira com os que o rodeavam, digo com o do álcool, da água oxigenada, de
soro fisiológico, e quando finalmente retirei o penso velho sem que os cabelos
do peito viessem agarrados a ele fiquei tao aliviado, tão duplamente aliviado
diga-se que me apeteceu fumar um cigarrinho, felizmente não os tinha já comigo,
nem o faria numa casa que nem era a minha.
Arrumei e limpei tudo o melhor que
pude, não sem me baixar para abrir a gaveta de baixo, afinal só faltava aquela
e a minha pérfida curiosidade não me permitia deixá-la por abrir. Novinhas e ainda em caixinhas uma colecção de calcinhas que por pudor não toquei, tão cândida e inocente imagem
emocionou-me, comoveu-me, enternecendo-me, e logo me pareceu que tocar-lhes
seria conspurcá-las. Retirei com brusquidão a mão do puxador e bati com o cotovelo
no convector dando de imediato um salto, parecia que tinha levado um choque eléctrico,
sem querer derribei de cima dele umas calcinhas que talvez ou decerto estariam
a enxugar e nessas fui obrigado a pegar, para as recolocar no lugar, não sem
que as tenha esticado entre os polegares, pequeninas, bonitinhas, bonitinha a
minha amiga, uma medida engraçada, uma coisa a que eu nunca prestara grande
atenção, inadvertidamente veio-me à ideia uma velha canção*, “Viola, Violina, Violão”,
e de imediato recordei os anúncios dos corpinhos Danone e Fitness.
A vida tem cada coisa, nem me lembrei
de tudo isto por acaso, é que estou sentado na sanita pela terceira vez esta
manhã. Ou os cogumelos eram venenosos ou a carne de porco tinha pimentão a
mais, o que é certo é que quem se lixou fui eu.
Para a próxima só comerei peixe, pxito, bacalhau, adoro o cheiro a
bacalhau…