sexta-feira, 16 de junho de 2017

440-ONDE MIJA UM PORTUGUÊS MIJAM LOGO...

Recanto e antigo mictório à entrada da vila de Monsaraz.

Ficavam ali tagarelando olhando os poucos turistas, em especial as turistas, olhando, cuscando e cascando com vagar, sem pressas, cada frase maturada antes de ser dita, de tal modo que uma dúzia delas poderia ocupar-lhes uma manhã, uma tarde ou um serão. Eu ouvia-os, mais das vezes sem os entender completamente, mas entendia-lhes os trejeitos, o sibilino de uma ou outra frase, o riso contido e o desatado, a brejeirice e a malícia. Mais de uma década depois ouviria falar em etnocentrismo e egocentrismo, só então tendo percebido que a visão que dali se abarcava não ia tão longe quanto sempre pensara.

Os homens reuniam-se ali não para ver quanto a vista alcançasse ou para sonhar, antes para observarem sem questionarem tudo quanto por perto lhes fosse dado ver, e então viam, não analisavam, viam com os seus olhos de ver ao perto, buscando a sombra da manhã, da tarde, ou o fresco do serão, sentados sobre o murete existente no exterior da porta da vila, à sombra da torre da direita cujo arredondado consentia um recanto, vindo a jeito no espaço aberto daquele areópago sem nada atrás de que os homens pudessem aliviar-se, murete onde se sentavam como quem se senta nos degraus da porta de casa, nem pensando na vida, simplesmente distendendo as pernas, descomprimindo o corpo, largando umas larachas.
Évora, partida para a praia de Monsaraz.

Alguns por comodismo faziam-no, indo à vez aliviar-se naquele recanto, certos de não haver quem os visse e, mal fosse um iriam logo de seguida dois ou três. Também eu fui algumas vezes, abrindo bem as pernas como via fazer aos homens, um braço encostado à muralha, a testa encostada ao braço, o xisto absorvendo o liquido vaporoso quase como uma esponja, a muralha naquele sitio permanentemente humedecida, o fedor fétido que nada ficava devendo ao exalado pelo urinol público (sistema ainda em funções em S. Miguel de Machede, para onde eu havia de me mudar) o olho sempre focado no liquido escorrendo parede abaixo não fosse molhar-me as sandálias, sacudindo no final, tal qual via fazer aos homens, guardando somente depois de bem sacudido. Tenho a certeza embora o não relembre, que algumas vezes como eles terei assobiado ou feito hum hum enquanto … embora o catarro não me incomodasse como ainda não incomoda, inda que a próstata me ande atormentando como se calhar os atormentaria a eles.

Jurar-vos-ia ter sido a partir daqui que embirrei com calções e sandálias, nunca vi homem nenhum de calções e sandálias encostado pensativo a essa muralha. Nem depois na Tv quando de vez em quando os mostravam junto ao muro das lamentações. Decididamente não era a mesma coisa, aqui ninguém se lamentava, antes se aliviava, logo voltando para o murete, para a conversa, para a cusquice ou para o jogo de Alquerque, gravado nas lajes do próprio muro, enfim para o que desse e viesse, tudo menos lamentações, não me recordando de ter visto alguma vez alguém lamentando-se do que quer que fosse, quando muito da força do fogo preso das festas. Nem eu que decidira abandonar os calções e as sandálias me queixei, nem tão pouco me lamentei, eu ali só ouvia e via, não piava, somente à avó Inácia Ferrador o confessara, começava a sentir-me um homem e aquela farpela envergonhava-me, afinal já mijava onde eles mijavam e nunca nenhum me dissera:

- Raspa-te daqui rapaz !

Na praia de Monsaraz.

Voltei lá ontem, 15 de Junho e dia do Corpo de Deus, largámos a meio da tarde a praia recém inaugurada do Alqueva, uma vitima do próprio sucesso, e quando chegados ao Ferragudo o grupo seguiu pelo Telheiro e S. Pedro do Corval enquanto eu apontei a mota à vila. Antes de parar na entrada deitei o olho a quem estava, observando se donde estivesse me veria vertendo águas no recanto da muralha. Há bem cinquenta anos que não o fazia ali e ia preparado, não o fizera dentro de água nem no bem preparado recinto da novel praia, estava a guardar-me para uma fenomenal e cinquentenária mijadela mas, ainda não tinha parado a mota e já apanhara uma desilusão, o espaço fora empedrado já não existia nem recanto nem acesso a ele, e agora ? Fazer como fiz tantas vezes ? Mijar da muralha abaixo ? Ter cuidado para que por mor do vento não mijasse as pernas ? Curiosamente cinquenta anos depois voltei a usar calções, verdade que já sou homem, mas também já não me quero comparar com eles, a minha busca agora é pela diferenciação.
Na praia de Monsaraz.

Um guarda num jipe avisou-me não poder estar ali parado tendo despoletado em mim a vontade de lhe mijar para cima, dele e do jipe, mas um homem em calções não faz isso, porta-se bem, montei a mota, desci em surdina até à rotunda logo ali a cem metros e, ao abrigo de uma escultura em ferro que para lá está exaltando o cante aliviei-me, até cantei, e pelo sim pelo não deixei a minha imagem de marca, mijei os pés aos cantadores todos. Ó la ri ló lé, onde mija um português mijam logo dois ou três, vá lá, um dó li tá, é a vossa vez amigos, mas não, não se mexeram e eu voltei a montar a mota, rumei à ponte de Mourão a fim de galgar dali a apanhá-los nos Reguengos, por isso arremeti aos esses chapada abaixo, segunda, terceira, segunda, terceira, quarta, segunda, primeira e travões a fundo, foda-se que a ladeira tem curvas apertadas como o caraças, um homem apanha com cada susto, quase se mija…

 
Estacionado na praia de Monsaraz e vista de Monsaraz
                                  
                
                    Monsaraz, escultura evocativa do cante alentejano.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

439 - UMA TRANCADINHA EM TRANCOSO ...


“Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida e sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos duma criança” lá lá lá lá li…

Tal qual a vida de cada um de nós, a história, que afinal mais não é que a história das nossas vidas colectivas, tem pormenores que muitas vezes nos escapam mas que não deixam de nos alegrar, apimentar o quotidiano e trazer ao nosso mundo contemporãneo um pouco do humor e da sátira que Gil Vicente não teria desdenhado. 

Um dia destes, mor de um trabalho que ando a desenvolver, a pesquisa levou-me a D. Dinis, um dos nossos primeiros reis, o do pinhal de Leiria, esse mesmo, que antanho serviu para as naus e hoje sustem ainda as areias e serve de refugio a muito boa gente que o aproveita para ali dar a sua escapadinha, ou, na gíria popular, dar uma trancadinha, uma trancada, a graduação já dependerá da sensibilidade de cada um e não me meto por essa vereda... 

Até por quem diz uma diz várias, que isto das trancadinhas é como as cerejas, e quem come uma come um cesto, ou um cento, nunca se fica por ali, quer-se sempre mais sendo como as conversas agradáveis que nunca se acabam seguindo-se umas atrás das outras, as conversas ou as cerejas, não as trancadas, não haveria quem aguentasse, só alguém mui duro de cabeça, pois, isso …

Mas ia eu dizendo que esbarrei com D. Dinis, o Lavrador (1261-1325) não o Dinis dos botões, um dos monarcas mais importantes da nossa história e um homem culto e letrado que deixou uma marca indelével nos mais variados campos, conhecem-se-lhe 137 poemas, 73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo e 10 cantigas de escárnio e maldizer, mas ia eu dizendo quão este rei me surpreendeu, em especial por ter desposado a mui requestada Isabel de Aragão que, entre pretendentes franceses e ingleses, nobres e príncipes, escolheu o nosso bom Dinis, que além de príncipe e nobre já era rei, e como mais vale sê-lo que parecê-lo a bela Isabel de Aragão, sim essa que a nossa Isabel Stilwell tem historiado, e bem, ou não é assim Rosinha ? Não quero que a minha amiga Rosinha, que anda com o livro da Stilwell ao peito, vá entender mal este meu arrazoado.


Na pressa de consumarem o casamento D. Dinis e Isabel casaram-se por procuração, ele cá ela em Barcelona, tendo a Isabelinha dado corda aos sapatos e apressado a vinda. El-Rei esperava-a em Trancoso, sendo precisamente aí que parei a investigação por a coisa ter ficado nebulosa, uns historiadores nada mais adiantam, outros não têm pejo em afirmar ter sido o casório consumado logo ali em Trancoso, dada a impetuosidade, a paixão, a saudade e o desejo dos jovens nubentes, ele na força dos seus dezassete anos e farto de aias, damas de corte, cortesãs, barregãs, cozinheiras, costureiras, moças de copa, de estrebaria e engomadeiras certamente, a este propósito terei que ir pesquisar a fim de saber desde quando se dá ao ferro e quem o inventou, isto digo-o eu, nenhum historiador cita estes factos mais que prováveis, confesso, eu também me perco por engomadeiras, é-me difícil vê-las ali a dar a dar sem lhe desligar o fio da corrente ou pontapear a extensão e apagar-lhe a luz, mas voltemos ao que interessa, à vaca fria que é como quem diz à bela Isabel de Aragão, apanhada em Trancoso e secalhando logo ali trancada a fim de evitar olhares indiscretos e toma lá disto ó Evaristo que nessa altura não havia pruridos nem contemplações, portanto nem haviam de ser os doze aninhos da nossa Isabelinha de Aragão que evitariam as trancadas reais que decerto terá levado em Trancoso, embora a história não confirme nem desminta e mor das vezes seja omissa quanto a assunto tão melindroso. 

Verdade verdadinha é que a ditosa rainha nos deu dois rebentos, Afonso e Constança, sendo ela mesma mui apreciada em Coimbra, ali se conta ter acontecido o milagre das rosas, igualmente a apreciam em Estremoz, onde pontifica uma bela pousada com o seu nome, ideal para escapadinhas e quiçá para trancadinhas.

Esta moda das trancadinha, que quanto a mim só pode ter começado em Trancoso, não foi invenção cá do rapaz, pois um dos historiadores, não lembro já qual deles nem tal interessa, desenvolveu a partir de palavras atribuídas à rainha um pensamento ou uma associação de ideias idêntica e em relação à cidade de Odivelas, onde, segundo Isabel de Aragão e a história afirmam ter sido lugar privilegiado para D. Dinis dar as suas escapadelas e trancadas, no caso trancadas pois está envolvida uma figura real e trancadinha ficaria mal nesta história, além de diminuir o personagem.
               
                - Ide vê-las senhor, ide vê-las !!

desabafaria para o seu senhor sempre que estava com os azeites a Rainha Santa, e do ide vê-las a ódi vê-las e a Odivelas é um estalar de língua que a corruptela e a populaça adoram, como adora as gargalhadas histéricas da Cristina Ferreira, ou as mamas que, garantiu ela aos mídia, são totalmente suas, suas dela, o que deixa supor não haver ali silicone, ou a haver, estará pago. Mais paciência que D. Dinis tem o Goucha… Aposto que D. Dinis, o tal que escreveu bué de choses, poemas, cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer não lhe perdoaria umas trancadas.

Mas deixai que me concentre no meu trabalho, estou a atrasar-me e quer Gonçalo Eanes quer Pêro de Évora e Pêro da Covilhã não merecem que os olvide nem tão pouco a desatenção que estou a devotar-lhes…
  


POEMA D’EL-REI D. DINIS
….

O que vos nunca cuidei a dizer,
com gram coita, senhora, vo-lo direi,
porque me vejo já por vós morrer;
ca sabedes que nunca vos falei
de como me matava voss'amor;
sabe Deus bem que doutra senhora nom,
que eu nom havia, e por mi vos chamei.



segunda-feira, 12 de junho de 2017

438 - AS ECLÉTICAS ESTATUETAS DE AZEKEL

                  

Ao visitar junto ao Cunene a aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, nunca deixei de cumprimentar o velho e sábio Azekel (o que reza ao Senhor) um velho tucokwe, sempre de faca afiada manuseando o marfim pachorrentamente, com solene paciência e excelsa destreza. Hoje, ao lembrá-lo pela segunda vez por ter passado frente à nossa mesa na esplanada uma linda negra, veio-me à ideia um outro velho, o velho Li, que em Macau e com paciência chinesa esculpia diligente e pacientemente em pequeníssimos bagos de arroz, casais de namorados beijando-se, como provavelmente se beijaram Camões e Tin-Nam-Men, a nativa que, diz a lenda, estaria perdidamente apaixonada por ele, já que o velho Li montara a banca quase na gruta de Patane, que segundo a história Camões ocupou, e onde terá escrito os Lusíadas.


Acreditem, o velho Li prestava muito maior atenção aos pormenores que o velho Azekel alguma vez prestou, embora cada um de nós tivesse que socorrer-se de uma lupa se desejasse observar o fruto da sua arte, daí a fila ser grande, a pressa muita, a impaciência maior ainda, a lente sujíssima atrasando-nos, e o guia lembrando-nos o tempo todo do pouco tempo que nos restava para chegarmos ao aeroporto a horas do check in.  Não me recordo do velho Li ter vendido uma única das suas admiráveis estatuetas nos vinte a trinta minutos em que dezenas, centenas ou milhares de nós por ali desfilámos, não sei de que viveria aquele velho seco, alimentar-se-ia de arroz ? Aguentar-se-ia à base de ópio ? O assunto despoletara um sururu só abafado p’la alegria de nos voltarmos a sentar no avião de regresso a Lisboa.


O velho Azekel não comia o marfim mas governava-se bem dele, se governar-se é o termo adequado, guardava numa lata ferrugenta todas as moedas e notas que a tropa lhe desse em troca da sua arte e das duas uma, ou teria umas dezenas ou centenas de latas cheias enterradas ninguém saberia onde e estaria rico, ou era um mistério o destino que o pilim levava, o velho nunca saíra nem saía da aldeia, e se havia coisa de que ele não precisava nem sabia que fazer-lhe seria ao dinheiro. A sua arte, o reconhecimento geral e a consideração que lhe votavam bastava-lhe, era feliz e isso saltava à vista de todos. Feliz como as suas esculturas que a todos que as possuíssem tornavam felizes, estariam enfeitiçadas diziam alguns, dizia-se, naturalmente ninguém acreditava minimamente em tal, compravam-lhas por não haver quem esculpisse mulheres como o velho Azekel, mulheres lindas, mulheres e mamas, seios, peitos, e depois de Deus acredito que ninguém daria à luz mulheres mais lindas que esse velho, a quem a mulher africana deveria estar grata, fosse em marfim fosse em pau-preto ou pau-ferro, melhor que ele só Deus tinha o condão de criar.

 Embora o dinheiro não fosse o móbil o velho vendia as mesmas estatuetas por vezes duas ou três vezes, ou mais, desculpai-me a redundância, todos as queriam ter, como se fossem amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho nem olhava a cara nem os olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição dos tempos que corriam por aquela época. Seja como for guardo eu todas estas recordações e a cara de todos, dos que foram e regressaram, idem para os que não voltaram, e naturalmente da beleza negra da mulher africana, esculpida num dente de elefante do mais branco que há e por motivos pessoais guardara na garagem, numa caixa de papelão cheia de pó e por trás de toda a tralha que ontem desencantei até achar o suporte da mota a fim de o montar na dita, fora-me oferecido pelos amigos Aires / Paixão quando da compra da mota, há três ou quatro anos, e até agora tivera preguiça de o montar, esquecera até onde o guardara, e na busca dei com a caixa desse dente de elefante.


Tinha-o desde 73, mas em 98 por motivos pessoais embalara-o e chutara-o para a garagem. Tudo por saber, desde essa ocasião em especial quão importantes são para as mulheres os seios, à minha companheira surgira um problema num deles, fora obrigada a removê-lo. Meia dúzia de anos mais tarde e mercê da reconstrução fora eu chamado pela Dr.ª Maria A. a pronunciar-me:

- Querido, veja neste catálogo e dentro desse conjunto de três qual deles lhe agrada mais e diga de sua justiça. Não se perca nos outros cinquenta e tal…

e eu disse, escolhi o par empinado, pequeno e empinado, e assim foi feito, reconstruido um e retocado o outro, para que ficassem mui idênticos. Um calvário, só quem passa e vive essas coisas ou as presencia por dentro saberá quanto custam, em sofrimento, em dor, um peito, o outro, depois o mamilo, tira dum mete no outro, segue-se o tatuar da auréola, acertar a cor e o tamanho, tudo custa, tudo tem custos e faz rombos especialmente na auto-estima da paciente, inda que compreensivelmente sempre tivesse feito notar que me bastaria um, afinal aquele onde eu costumava agarrar-me ficara, ela era a mesma pessoa, a mesma companheira, não tinha para mim menos valor por isso e bla bla bla…


Conversa da treta digo eu hoje com acerto, por pouco ou nada ter conseguido quanto a consolação, a Dr.ª Maria A. e o silicone falaram mais alto e fizeram mais por ela que todo o meu paleio, e a verdade é que escolhera para reconstrução um par igual ao dela mas também igualzinho ao do dente de marfim. Por isso o guardei, além de que tudo que lembrasse seios não devia andar por ali à vista dela, que tanto chorara pelos seus. Passei a valorá-los mais, aos seios, a ter mais cuidado com eles, a dedicar-lhes mais atenção, hoje sei haver gostos para tudo e para todos os gostos, não devem por isso as mulheres lamentar tê-los pequenos ou grandes, ou vice-versa, a beleza não está no tamanho, e como diria o velho Azekel, está no momento, está em tê-los, em chaamar-lhes seus, por isso as suas estatuetas se vendiam tão bem, fosse qual fosse o tamanho e o comprimento dos seios que apresentassem.

Há gostos para tudo e havia-as para todos os gostos, o milagre está na nossa mente, na nossa psico, na nossa sensibilidade, no nosso tacto, na nossa mão, o milagre está no amor, no beijo, na boca, nos lábios, na sensualidade, no escuro do quarto, no pensamento, na ocasião, no desejo, na satisfação, todo este mistério não é afinal mais misterioso que a pancada, a tara ou a mania com as almofadas da cama, uns gostam delas altas e bem cheias, outros baixas e quase vazias, há até quem durma sem almofada nenhuma.

Gostos não se discutem. 

sexta-feira, 2 de junho de 2017

000 437 - A MORTE DA PASSARINHA EM 3 PARÁGRAFOS


De imediato pensei que tivesse periquitos, ou canários, os rouxinóis e os pintassilgos não se dão em cativeiro, nem as passarinhas, digo as pardalocas, as fêmeas do pardal.

Juro ter sido o que me acudiu à mente mal a vi entrar de luto, quero dizer de preto, toda de preto, primeiro pensei cá para comigo quem teria sido que lhe teria morrido, depois, não vos confesso mas ri-me para mim mesmo pensando que podia ter sido um periquito, reparei na casaquinha preta, muito gira, muito à maneira, na saia preta, saia ou vestido, de qualquer modo preto também, com uns remates mui leves em dourado, se não era dourado pareceu-me tal, mas longe como estava e zarolho como tou ficando, a idade não perdoa e os quarenta já pesam, não será pois de admirar que faça algumas confusões, inda por cima com um remate tão ténue como aquele, mas que o preto lhe assentava a matar assentava, sobretudo a casaca, a casaquinha, ninguém poderia negar, e a saia, cá estou eu vendo mal, o vestido, digo o vestido, bom tecido, bom corte, bem passado, boa perna, bem torneada.

Reparei também visto estarmos perto do verão nas sandálias, não me recordo da cor mas eram abertas, o pé sem calosidades, conforme, isto é nos conformes, sem joanetes, não lembro as unhas mas suponho-as tratadas, como tudo o resto, a perna firme, há ali muita marcha, ou muita marcha ou muito ginásio, estou a rir-me para mim mesmo com os meus delírios, mas ela também não desarma, não larga o sorriso, até o café bebe sorrindo, todos os dias fico à espera de ver um fiozinho de café escorrendo-lhe por um dos cantos da boca, por um ou pelos dois, aposto que nem assim largará o sorriso, fica-lhe bem o sorriso, mas cá para mim tem um não sei quê,  pour moi a un je ne sais quoi de matreiro, é que não é só o sorriso, são também os olhos, como duas âncoras, ou antes como uma antena de radar, olhando tudo, tudo mirando sem saber nunca onde ancorar, ou se calhar sabe e não quer, esta coisa das tecnologias furtivas, stealthy, tem muito que se lhe diga.

Bebe a bica e furtivamente passa os olhos por um jornal ou revista escolhida aleatoriamente, pelo menos é o que me parece, lê sorrindo, decerto que não a notícia da explosão de ontem em Cabul e que despachou uma data deles, quase cem, já deixei arrefecer o café porra, fico de antenas no ar e depois é isto, e eu que detesto café frio, não consigo lembrar a cor do batom dela, será daqueles mui vermelhos que ficam marcados na chávena ?

 Uma vez num daqueles filmes do inspector ou detective Poirot desvendaram o crime pelo batom na chávena, já vi que não tenho merda de jeito para inspector, o que interessaria ver não vi, nem lembro, lembro o conjunto preto, saia e casaco, casaquinho, ou jaqueta, saia ou vestido, deixei-a abalar antes de confirmar, fiquei preso nas pernas e na bainha curta da saia, da saia ou do vestido, de qualquer modo permitindo que se vissem umas coxas fortes, fortes mas não musculadas, o que é demais não presta, vive a correr, tomou a bica em pé, muitas vezes a toma assim, mas nem sempre, se calhar será só quando está com pressa, fá-lo em pé e lendo, em pé e sorrindo, sempre à pressa, deve ter que ir apanhar a equipa, a malta das enciclopédias ou da herbalife, quantas mais vendas fizerem pela manhã menos calor apanham.

O sol já vai ficando uma fornalha e ainda mal começou Junho, pagou e desandou à pressa, vejo-a pela montra, vai buscar a carrinha, passa acelerada frente ao café, gosto de a ver ao volante, quando era rapaz também eu sonhei ser motorista, via-me em sonhos abraçado a um volante enorme e dominando o bicho, um camião de dez rodados com atrelado, eu usava ténis e era sempre a acelerar, Espanha, França, Alemanha, não recordo já onde fui parar mas uma vez na passagem para a Itália embora não usasse sandálias, estava de pijama nesse dia e num cruzamento ali mesmo na fronteira um tipo faz uma daquelas manobras de merda, perigosa, escapou-me o ténis do pedal, apanhei um susto e mijei-me.

A minha mãe afinou e com razão, eu já devia ter uns dezasseis ou dezassete aninhos, mijar na cama com essa idade nunca em pequenino me fizeste uma dessas que vergonha, parece que a estou ouvindo ainda, ela que tenha cuidado com as sandálias, e com sapatilhas nem pense, quando mal esperar poderá escorregar-lhe o pé do pedal e truz, mijar-se toda, seria uma pena não ?

Nem imaginam enquanto o tempo passou, fiquei para aqui a olhar para os sapatos mas tenho que lhe dar corda e ir ao pão antes que se esgote, senão depois quem ouve a Luisinha sou eu, cabeça no ar, quanto mais velho mais parvo, e não seria eu a tirar-lhe a razão da boca.



quinta-feira, 1 de junho de 2017

436 - A SACRALIDADE DO PODER E A POSSE


A velha questão da origem do poder não é recente, nem sequer recua ou remonta à coroação de D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. O meu bom amigo Vilaça diria tratar-se duma questão tão velha como o… e, para vos dar de imediato uma ideia geral diria ser consensual, isto é, ser tão velha quão a invenção de Deus pelo homem.

O poder só se conquista pelas armas, por transmissão dinástica ou através de eleições. Sempre houve desde a pré-história casos em que a origem do poder não deixava dúvidas, o ceptro ou a coroa de louros seria arrebatada pelo vencedor de uma luta, ou de uma guerra, dificilmente sendo o vencedor contestado ao tomar o poder para si e entronando-se ou fazendo-se entronar. 

Mais tarde encarregaria ou delegaria tal na classe dos sacerdotes ou não eram eles a entidade intermediária entre Deus e os homens ? Não podendo a divindade estar presente devido a mais urgentes afazeres, fazia-se que agisse por meio dos seus representantes, os únicos autorizados e capazes de interpretar augúrios e valorizar escolhas, fosse com base em vísceras de animais ou no palpitar de um coração acabado de arrancar. 

Actualmente existe também o recurso à leitura das borras de café ou à interpretação dos búzios e conchas atirados aleatoriamente para o areal de qualquer praia ao anoitecer, mas seja qual for a metodologia utilizada o fito será sempre avaliar os predicados do guerreiro a entronar ou do apaixonado a aceitar.  

Com o crescimento do clã, da tribo, do povo, cresce a necessidade da burocracia e dos cargos para a preencher, com a sedentarização surgem os agricultores, os pescadores e caçadores, ou mantenedores, depois a necessidade de quem defenda estes da cobiça de outros clãs, de outras tribos ou povos e aparecem os guerreiros, ou defensores. 

Daí a que surjissem os intermediários junto do divino foi um passo, o homem é místico, emergem os sacerdotes, os oradores e outras classes que a evolução conturbada do homem no planeta foi tornando necessária, os feiticeiros, os físicos e os boticários para nos tratarem da saúde, os barbeiros e os sangradores, os escribas e os mestres, os servos, os escravos, todos fazendo parte ou construindo uma estrutura ou organização piramidal, daí a frase “piramiza filho piramiza” que é como quem diz vai-te foder, desaparece daqui, pirâmide essa sobrecarregando as bases e terminando no pico com um só, que se arrogara e encarregara do direito de estar aí por vontade divina, fosse o divino quem fosse, para a circunstância qualquer um serviria e além de servir convinha…

No vértice o mais poderoso, o mais forte, o invencível, o que reinará sobre tudo e todos, o que tudo e todos possuía, inclusive o direito à vida dos seus inferiores. Ainda hoje assim é, ou é assim, daí enviarem mancebos para a guerra em defesa de interesses duvidosos, quando não próprios, de um grupo ou classe superior e possidente. 

Enviar jovens como carne para canhão em defesa duma pátria inventada para que melhor reinem não é dispor do direito à vida dos outros ? Possuir a vida dos outros ? Possuir os outros ?


A tomada de posse evoluiu naturalmente, da unção com uma lança ou uma caveira passou-se à unção com um ceptro ou uma espada. Nos dias de hoje é usado um recurso muito mais afiado e de maior amplitude, o discurso. Atestar o direito divino ao poder tornou-se crucial mas indispensável em especial nos casos de dinastias nascidas ou interrompidas. 

Vejam-se os casos de D. Afonso Henriques que a ele mesmo se armou cavaleiro com apenas 13 anos, em Zamora, 1125 pois já nesta altura só reis poderiam escolher e armar cavaleiros, ainda que apenas viesse a usar o título de rei somente em 1140 após aclamação na batalha de Ourique, prestando vassalagem ao Papa em 1143. O mesmo Papa que em 1179 através da bula Manifestis problematum reconhece finalmente o reino de Portugal, isto é deu posse a Portugal. 

Alguns anos mais tarde, por volta de 1305 oficial ou legal e unicamente aos reis seria permitido armar cavaleiros, o poder centralizava-se. No caso de D. João IV que sucedeu a D. Sebastião, morto em Alcácer-Quibir e pôs termo à dinastia filipina em 1640 não tomou posse, foi simplesmente aclamado como rei pelo povo e em cortes a 15 de Dezembro desse ano de 1640.

 Quem não for ungido em cerimonial será desvalorizado, ou nem se considerará empossado. Esta coisa da posse tem muito que se lhe diga e mais derivações ainda, o tomar posse, a posse em si, o possuir pode envolver ou abranger casos e situações surpreendentes, possuir a mulher por exemplo, é coisa que não estará completa sem o ámen dum sacerdote, ou do regedor, do notário, sem que ela seja ungida com o ceptro, a espada, a lança, o talo, daí dizer-se não estar o casamento consumado sem que a mulher seja atravessada pela espada, pela lança, possuída, penetrada, fodida. 

É um ritual machista e mundial este da posse da mulher de que nem as feministas se queixam nem a ele se subtraem, e pode como disse atrás revestir-se de derivações aberrantes ou absurdas, como por vezes acontece com o “ó filha não serás nunca inteiramente minha sem me dares esse rabinho redondinho e formosinho”… e a tomada de posse pela penetração meiga ou forçada ficará ao critério do macho possuidor, que o fará com mais ou menos dor ou meiguice e de acordo com a ideia muito própria que tenha da tomada de uma fortaleza ou de uma tomada de posse.


Portanto minhas meninas, quanto à história do “amor sou toda tua faz de mim o que quiseres” seria melhor que ficassem caladinhas no que à dádiva desses miminhos concerne, pois muitas enrabadelas acabam no hospital com dois ou três pontos de costura pelo menos, se não mais, dependendo do bacamarte do guerreiro ou do ceptro do rei. 

A penetração anal, longe de ser um acto de amor, é um brutal primevo e irracional acto de posse e submissão da mulher enquanto mero objecto da satisfação animalesca do homem, não diria do homem das cavernas mas diria do homem do talo, do homem das couves. Contudo tende em conta que este texto não tem por finalidade debruçar-se sobre a tentação, o pecado, a proibição ou o prazer, nem tão pouco atentar sobre fantasias, taras, manias ou desvios, cousas do âmbito da psiquiatria, da psicologia e da religião, as quais a pedido poderão ser exaustiva e sacramente abordadas noutra ocasião.

Ainda a propósito da sacralidade do poder, das cerimónias de tomada de posse ou de investidura acrescentaria que se em 1971 no Uganda tivessem investido um macaco em vez de Idi Amin Dada, (1920-2003) * toda a África teria beneficiado. 

E chegámos onde pretendo chegar, à compreensão das atitudes do PR Marcelo Rebelo de Sousa, que diariamente desmistifica e dessacraliza o poder e fá-lo cada vez que dá um abraço, um mergulho, pendura uma medalha, atribui uma honraria, distribui uma comenda ou espeta uma condecoração no peito de alguém. Essas homenagens mais não significam que tomadas de posse, é como se alguém dissesse és cá dos nossos, doravante pertences-nos. Idem para os caricatos rituais académicos ou os deveras anedóticos protocolos das confrarias do vinho, da cerveja, do porco, etc etc etc … 

O poder e a honra andam de mãos dadas é verdade, e os nobres homenageiam-se uns aos outros, mas também se arrastam pelo chão mor do descrédito que com tanta prebenda sobre eles teimam fazer cair. É verificar o rol de homenageados e as malfeitorias perpetradas contra este país. Desde Oliveira e Costa a Bava, Granadeiro, José Socrates há para todos os gostos.

Cada vez menos serão as cerimónias e o lugar a fazer o “homem”, o estadista, cada vez mais será o homem a fazer o “lugar”. O anterior PR, uma figura hierática que todas as fotos atestam estadista, observado na sua dinâmica nada seria sem a majestade do lugar que ocupou e do cargo que lhe puseram nos ombros. Por dentro estava vazio, como soa dizer-se brincando, saiu de Boliqueime mas Boliqueime não saiu dele. 

Perdeu o BdP um bom economista de trabalhos em equipa ou de grupo, pois demonstrou à saciedade que deixado sozinho somente fez merda. Aquela cabecinha não tem nadinha por dentro, nada, nem couves, talvez a Maria tenha apreciado o talo.  


* Major-General do exército ugandense, ditador militar e o terceiro presidente de Uganda entre 1971 e 1979 que se autopromoveu a Marechal de Campo e cujo governo ficou caracterizado por violações dos direitos humanos, repressão política, perseguição étnica, assassinatos, nepotismo, corrupção e má gestão económica. O número de mortos durante seu regime ditatorial é estimado por observadores internacionais e grupos de direitos humanos como situando-se entre cem mil e quinhentos mil.