Recanto e antigo mictório à entrada da vila de Monsaraz.
Ficavam
ali tagarelando olhando os poucos turistas, em especial as turistas, olhando,
cuscando e cascando com vagar, sem pressas, cada frase maturada antes de ser
dita, de tal modo que uma dúzia delas poderia ocupar-lhes uma manhã, uma tarde
ou um serão. Eu ouvia-os, mais das vezes sem os entender completamente, mas
entendia-lhes os trejeitos, o sibilino de uma ou outra frase, o riso contido e
o desatado, a brejeirice e a malícia. Mais de uma década depois ouviria falar em
etnocentrismo e egocentrismo, só então tendo percebido que a visão que dali se
abarcava não ia tão longe quanto sempre pensara.
Os
homens reuniam-se ali não para ver quanto a vista alcançasse ou para sonhar,
antes para observarem sem questionarem tudo quanto por perto lhes fosse dado
ver, e então viam, não analisavam, viam com os seus olhos de ver ao perto,
buscando a sombra da manhã, da tarde, ou o fresco do serão, sentados sobre o murete
existente no exterior da porta da vila, à sombra da torre da direita
cujo arredondado consentia um recanto, vindo a jeito no espaço aberto daquele
areópago sem nada atrás de que os homens pudessem aliviar-se, murete onde se
sentavam como quem se senta nos degraus da porta de casa, nem pensando na vida,
simplesmente distendendo as pernas, descomprimindo o corpo, largando umas larachas.
Évora, partida para a praia de Monsaraz. |
Alguns por comodismo faziam-no, indo à vez aliviar-se naquele recanto, certos de não haver quem os visse e,
mal fosse um iriam logo de seguida dois ou três. Também eu fui algumas vezes,
abrindo bem as pernas como via fazer aos homens, um braço encostado à muralha, a
testa encostada ao braço, o xisto absorvendo o liquido vaporoso quase como uma
esponja, a muralha naquele sitio permanentemente humedecida, o fedor fétido que
nada ficava devendo ao exalado pelo urinol público (sistema ainda em funções em S.
Miguel de Machede, para onde eu havia de me mudar) o olho sempre focado no
liquido escorrendo parede abaixo não fosse molhar-me as sandálias, sacudindo no
final, tal qual via fazer aos homens, guardando somente depois de bem sacudido.
Tenho a certeza embora o não relembre, que algumas vezes como eles terei assobiado
ou feito hum hum enquanto … embora o catarro não me incomodasse como ainda
não incomoda, inda que a próstata me ande atormentando como se calhar os
atormentaria a eles.
Jurar-vos-ia
ter sido a partir daqui que embirrei com calções e sandálias, nunca vi homem
nenhum de calções e sandálias encostado pensativo a essa muralha. Nem depois na
Tv quando de vez em quando os mostravam junto ao muro das lamentações. Decididamente não era a mesma coisa, aqui ninguém se lamentava, antes se
aliviava, logo voltando para o murete, para a conversa, para a cusquice ou para
o jogo de Alquerque, gravado nas lajes do próprio muro, enfim para o que desse
e viesse, tudo menos lamentações, não me recordando de ter visto alguma vez alguém
lamentando-se do que quer que fosse, quando muito da força do fogo preso das
festas. Nem eu que decidira abandonar os calções e as sandálias me queixei, nem
tão pouco me lamentei, eu ali só ouvia e via, não piava, somente à avó Inácia
Ferrador o confessara, começava a sentir-me um homem e aquela farpela
envergonhava-me, afinal já mijava onde eles mijavam e nunca nenhum me dissera:
-
Raspa-te daqui rapaz !
Na praia de Monsaraz.
Voltei
lá ontem, 15 de Junho e dia do Corpo de Deus, largámos a meio da tarde a praia
recém inaugurada do Alqueva, uma vitima do próprio sucesso, e quando chegados
ao Ferragudo o grupo seguiu pelo Telheiro e S. Pedro do Corval enquanto eu apontei
a mota à vila. Antes de parar na entrada deitei o olho a quem estava, observando
se donde estivesse me veria vertendo águas no recanto da muralha. Há bem cinquenta
anos que não o fazia ali e ia preparado, não o fizera dentro de água nem no bem
preparado recinto da novel praia, estava a guardar-me para uma fenomenal e
cinquentenária mijadela mas, ainda não tinha parado a mota e já apanhara uma
desilusão, o espaço fora empedrado já não existia nem recanto nem acesso a ele,
e agora ? Fazer como fiz tantas vezes ? Mijar da muralha abaixo ? Ter cuidado
para que por mor do vento não mijasse as pernas ? Curiosamente cinquenta anos depois
voltei a usar calções, verdade que já sou homem, mas também já não me quero
comparar com eles, a minha busca agora é pela diferenciação.
Na praia de Monsaraz.
Um
guarda num jipe avisou-me não poder estar ali parado tendo despoletado em mim a
vontade de lhe mijar para cima, dele e do jipe, mas um homem em calções não faz
isso, porta-se bem, montei a mota, desci em surdina até à rotunda logo ali a
cem metros e, ao abrigo de uma escultura em ferro que para lá está exaltando o
cante aliviei-me, até cantei, e pelo sim pelo não deixei a minha imagem de
marca, mijei os pés aos cantadores todos. Ó la ri ló lé, onde mija um português
mijam logo dois ou três, vá lá, um dó li tá, é a vossa vez amigos, mas não, não
se mexeram e eu voltei a montar a mota, rumei à ponte de Mourão a fim de galgar dali a apanhá-los nos Reguengos, por isso arremeti aos esses chapada abaixo, segunda, terceira, segunda, terceira, quarta, segunda, primeira e travões a fundo, foda-se que a ladeira tem curvas apertadas como o caraças, um homem apanha com cada susto,
quase se mija…
Estacionado na praia de Monsaraz e vista de Monsaraz
Monsaraz, escultura evocativa do cante alentejano. |