quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

479 - EU SÓ QUERIA VER-LHE A AURA, A ALMA

                                                  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora


Tenho uma amiga Maria que estudou sociologia mas detesta socializar, e outra mui popular a quem pura e simplesmente aborrece conversar, mas também tenho uma outra que por aqui costuma entrar  atrelada a dois rebentos, a quem vivamente aviso p’ra não pisarem o risco.

Quando isto se me depara ergo o copo até aos olhos, observo bem o soluto e, ensaiando adivinhá-lo, reparti-lo, analisá-lo, tento encontrar as respostas p’ra muitas interrogações que cogito mas não esbulho. 

Como o fiz, como o faço ou como o devo fazer ?

simplicíssimo, espraio numa caixa de Petri um pouquito, coloco no microscópio e experimento ver-lhe a aura. São tentativas seguidas, só desejava olhar-lhe a alma, a essência, valência intrínseca cuja interpretação implícita se obtém mantendo a pressão, a temperatura, a energia, os ácidos e as bases, catalisador e solvente, não descurando a cinética, tudo em perfeito equilíbrio porque as interrogações são muitas e a solução um mistério a contragosto, porque até ser decomposto tal soluto não mostrou mais que, afinal, ser uma bola de cristal coberta de múltiplos espelhos reflexo do que vai no seu olhar, ou seja, do essencial.

E mesmo após tanta análise que foi que eu vi afinal ? Espelhos, milhares de imagens, não tangenciais, transversais ou esbatidas, antes surpreendentemente invertidas e em quantidades tais que animavam dois arraiais e a mim, que nem sou fotografista, antes entomologista, mais pareceram borboletas, variegadas, coloridas, não guardadas em gavetas mas em dois sites* catitas numa tal arrumação, quantidade e profusão que abismado fiquei quando todas elas mirei, produto do seu olhar, produto do seu canhão, alvos de prémios e honras, todavia banhadas em tamanho eclectismo, tão profundo e aleatório que me impediu de ajuizar por ser tão grande o reportório.

Sinto-me ali meio perdido cada vez que por lá me perco, como em procissão onde, não suportando a triste cruz, arraste vera questão. Há uma série de dias e mirando essas imagens tento entender, tento ver, quão se vê nelas mostrado e sobretudo perceber a subtil unidade entre si, digo entre elas, ou até por quê aquelas e não outras, também belas. Imagino-me tentando espreitar p’lo canudo do canhão, almejando ver eu também quanto ela vê, ouvir as imagens falando p'lo seu olhar, contando por si as histórias que ela desse peculiar modo se proporia contar.  


            Debalde, mesmo munido de rede caço eu a custo borboletas, mas apreendo as pessoas como tendo elas etiquetas, apanho-as pelo perfume ou aftershave, p’lo que lêem, calçam, vestem, pelos modos, p’las atitudes e acções, até p’lo arrumar do carro, pelo pegar no cigarro, p’lo telemóvel, p’la gravata, unhas, corte de cabelo, pela dor de cotovelo, pelo que dizem e escondem, pelas palavras que soltam e inda melhor pelas que calam. A linguagem é um mapa e quer gritem quer se calem, tudo serve e dispensa a lupa, desnudam-se perante mim, mas este mistério falado e quiçá tão premiado, p'lo contrário não tira nem os botins.

E foi por isso, ou foi assim que fui parar a pessoal página numa rede social** onde sim, existe unidade entre imagens, uma difusa coerência, uma opção ou preferência que me permitiu espreitar e ver o fundo ao seu olhar, mas então mais confuso inda fiquei pois contra tudo que eu esperava dessa panóplia de imagens, contra tudo que eu previra, conjecturara, imaginara, essas imagens tão lindas voltaram a acordar-me, a trazer-me a este país donde em sonhos me pisgara.
  
                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

       E lá estava novamente retratado o abandono, abandono como desígnio, a renúncia a fazer mais e melhor, a alienação de tudo a estranhos, a desistência da luta, a negligência cultivada, o desprezo p’la competência, tudo retratado a preceito e a que nem faltava ar bucólico. Era o perfil singelo e puro, quasi diria ingénuo, dos ignorantes inocentes que povoam este reino, reino nostálgico e triste, saudoso do que abomina, afastado da verdade, banhado em melancolia, tudo isso eu via, e doía, um país em estado caótico, uma sociedade informe, povo confuso e indolente. Tudo presente nessas fotos tão marcantes, a irresponsabilidade latente, o respeito desregrado, o território desordenado, o dissoluto poder, a depravação como doutrina e mestra da corrupção, sim eu vi com estes olhos, a depredação dum país e só não vi, coragem de navegante ou valentia de antanho. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Pesaroso saí de mim e, como náufrago agarrado a tabua de salvação, me agarrei eu aos mestres  sábios em busca de explicação, por nem saber já o que via e duvidar do que sentia pois não ficara indiferente, sentira mesmo um arrepio. Nem sei se toda a gente sente, eu senti e estranhei, e recolhi-me, melhor seria dizer refugiei-me no meu próprio pensamento, meditando e comparando os mestres e a mestria, interrogações e respostas que aqui e ali ouvia e lia, abraçando as que intuía ou, se olhando de novo atentamente cada nova fotografia a resumia ao que encantada ou deslumbrada a mente dela inferia.

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Será um estranho encantamento ou mero truque de magia, quem sabe se dualismo resultante da introspecção ou inspecção do que se observa, a verdade é que nos podem causar estranheza e ela, estranheza, por sua vez induzir-nos p’los seus efeitos milagrosos a ver num qualquer objecto o que mais ninguém nele vê, isto é a interpretar, ou a consentir-nos sobre eles a ajustar e reajustar aspectos inexprimíveis da privacidade e intimidade dos ditos que não pretendamos mostrar mas simultaneamente procuramos, todos possam observar.

Walter Pater e Matthew Arnold garantiriam haver ali aparente desinteresse que contudo se isolado, circunscrito ao que nele é estranho, a estranheza e, catapultando-a do seu genérico para um patamar superior, capaz de suscitar espanto, e portanto vir a ser ponto de partida e génese dum feliz acto criativo. Encontrada a novidade, haveria móbil p'ra disparar, através do enquadramento, do isolamento e exaltação do pormenor, do conceito enquadrado ou demarcado do contexto.

Não duvido existir associada àquele olho espreitando a objectiva, uma mente progressiva cuja arrumação de neurónios, conexões, axónios e sinapses seja estruturalmente diferente de todos nós vulgares mortais, embora nunca possa ou possamos saber ou perceber como acontece o fenómeno, por isso alguns têm “olho” mas não o têm os demais.

Isto é coisa que o tal Matthew Arnold o “olhista”, sabe existir para além do prazer dum clic, dum flash, o prazer advindo da capacidade de ver mais, ver de outro modo. Como saberá Northop Frye, o mundo conceptual assim criado interage com outros universos conceptuais ligados à mesma imagem num universo que a todos se mostra mas onde nem todos são bafejados com a capacidade de perceber ou percepcionar na totalidade. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

A realidade é um prisma multifacetado, um caleidoscópio ante o qual agitando a mente, esta desperta e veremos a perspectiva mudando radicalmente. Será por essa causa, esse motivo ou juízo que, dando razão a Oscar Wilde, não devemos encerrar o significado do exposto, observado ou mostrado, nem tentar perceber a intenção do “olhista” a fim de que o objecto exposto não mumifique numa única ideia de apreensão ou percepção, mas se mantenha aberto a mil interpretações/concepções, pois somente assim um qualquer objecto de arte pertencerá a todos quantos nele se revejam ou com ele se identifiquem. Tal qual como cada cabeça sua sentença, também aqui cada olhar cada resolução, ou revelação, sendo embora o objecto semente e fruto da mesma diversidade, único, total.

                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Hugo Von Hofmannsthal como bom “olhista” que foi, atribuía a tudo que existe uma realidade própria, imanente, afirmando-se rodeado de um mundo de reacções deliciosas e infindável, merecedor das suas atenções. Afirmava-o ainda muito antes da vulgarização da fotografia, Hofmannsthal (1874-1929) que foi fotógrafo e retratista, um olhista, sabia bem o que dizia. Lembro que o “Calótipo, ou Talbótipo” o primeiro processo aceitável de fotografia, fora inventado por William Fox Talbot em 1836 e registado na Royal Society de Londres em1841, poucos anos antes do nascimento de Hofmannsthal.

Talvez tudo isto explique por que Oscar Wilde, poeta e dramaturgo, homem de rara sensibilidade, tivesse sido fascinado sobretudo p'la atitude contemplativa do observador, do retratista, do fotógrafo, da sua luta pelo melhor ângulo, a melhor luz, e, uma vez atingido o vício, p’lo estado de excitação atingido inda que imperceptível para nós, em linguagem clara absorvido p'lo êxtase vivido. Quem ama a fotografia por ela dará ou se sujeitará a tudo.

Tudo tem uma explicação. Isto anda tudo ligado…






Bibliografia consultada para apoio a este texto:

Pedreira, Frederico; Uma Aproximação à Estranheza, Imprensa Nacional, Lx 2017.

Hugo Von Hofmannsthal,  “A Carta de Lord Chandos”  (trad de João Barrento) Belo Horizonte Edições Chão da Feira 2012.

Matthew Arnold,  The Function of Criticism at the Present Time by Matthew Arnold (reprinted from ”Essays in criticism”)  and An Essay on style, by Walter Pater (reprinted from “Appreciations”), New York: Macmillan and Company  1895, pag 39. trad. Frederico Pedreira.

Northop Frye, Anatomy of Criticism: Four Essays, Princeton  (New Jersey), Princeton Universsity Press, 1973, pp 17-18. Trad.  Frederico Pedreira.

Oscar Wilde,  Intenções;  Quatro  Ensaios sobre Estética (trad.  António M. Feijó),  L isboa Edições Cotovia, 1992, pp. 79-171.

Walter Pater, The Renaissance: Studies in Art and Poetry, New York, Dover Publications, 2005. Trad.  Frederico Pedreira.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

....................... ROSÁCEA LILIÁCEA ........................

Liliaceae - lírio


   Liliácea
ROSÁCEA LILIÁCEA

Vi-a como vislumbre ou ilusão
c’o vestido decotado até aos pés
mão deslizando surda p'lo corrimão.

No carrilhão terna valsa soava
resguardei-me, matreiro, no vão das escadas
mirando-lhe o vão das pernas nacaradas
era uma escada curva, em mármore perlino.

Espanto foi o peito oleoso, o olor de amêndoas
e no cerne dele o vale paraíso, Valparaíso ?
amparando um pendente, dois cílios protusos
aureolados, de ébano sensível,  num peito cheio, íntimo.

Íntimo do tronco mãe, da árvore genealógica
assente em duas colunas marmóreas, firmes
robustas como aço e, no regaço rosas,
rosas senhor, rosas do jardim de Fernão Pó.

E ao vê-la descer altiva e só,
balançando o pendente, o peito arfando-lhe,
revi a minha escala de valores, o meu biótipo,
travei nefando propósito e pior demanda.

Contive-me sonhando-a
de maçãs ao peito,
rosas no regaço, rosas,
o vértice um lírio...

Flower of Georgia O'Keeffe 

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

478 - JÁ A GAIVOTA CAGOU NA BÓIA * ................


O primeiro a cair foi um graduado, não que viesse na frente da coluna mas porque por alguma inexplicável razão não retirara as divisas dos ombros tendo o dourado funcionado como um chamariz, é sabido que quando avistamos uma cobra a cabeça é a parte que lhe devemos cortar primeiro. Tombou ao primeiro tiro embora tenha sido impossível dizer com exactidão de quantos fora alvo, quando os enterrámos parecia um passador e, naquelas circunstâncias Deus só exige que se enterrem os mortos a fim dos seus cadáveres não serem profanados pelos animais.

A operação correra bem, será caso para dizer que o Senhor esteve connosco, connosco ou do nosso lado, desconhecerem o terreno foi-lhes fatal, de outro modo uma desproporção de um para três a desfavor teria ditado a nossa má sorte, mas não desta vez. Havia dois dias que os víramos e controlávamos, persegui-los e emboscá-los foi uma consequência lógica, afinal também eles nos procuravam para nos abater, havia largos meses que as aldeias do sul, uma das nossas bases e dois ou três acampamentos tinham sido objecto da sua inclemência, o assunto não ficara por agora totalmente resolvido, mas travar-lhes-ia o ímpeto antes de pensarem em nova incursão fronteiras adentro. Desta vez apanhámo-los a leste de Ruacana, vilazita onde as àguas do Cunene guinam para oeste fazendo fronteira entre a Namíbia e Angola, uma zona quente, o triângulo que fazia com Outapi e Ondangwa era um inferno e perto desta última localidade desconfiávamos haver um aquartelamento base dos sul-africanos, base de hélis e de artilharia de campanha. 

Em redor tudo “ardia”, arder é modo de dizer, a norte e a nordeste o antigo Congo Belga e a leste e sudeste a antiga Rodézia estavam em erupção, surgira o Zaire ou Republica Democrática do Congo, a Zâmbia, o Zimbabwe ("Zimbábue ou Zimbabué" em português), a sul a Namíbia onde a SWAPO era um tampão pronto a saltar sob pressão, mas Angola contava com o braço armado do ANC (African National Congress), Umkhonto we Sizwe a lança da Nação Zulu e o braço armado do Congresso Nacional Africano fundado a 16 de Dezembro de 1961 pelo ANC de Nelson Mandela e pelo Partido Comunista Sul-Africano (SACP), como resposta à opressão política, social e económica movida contra a população negra e mestiça, por sua vez neste barril de pólvora cabia ainda a citada SWAPO (South West Africa People's Organization), que por aqueles dias alinhava ao lado da UNITA, esta por seu lado e curiosamente apresentando como seu mais importante aliado, precisamente o exército sul-africano que combatíamos.

Aviões e tanques cubanos e russos aqueciam esta guerra fria, a África do Sul temia que toda a África austral se incendiasse e, sub-repticiamente apoiava os peões em jogo ou retirava-lhes apoio com a mesma rapidez de um drible em campo, aproveitando-lhes as forças e as fraquezas de acordo com interesses momentâneos. Alianças e divergências emergiam condicionando tudo e todos a todo o momento e de um dia para o outro vimo-nos acossados pela SWAPO, então unida à UNITA e esta por sua vez alvo de ricos apoios económicos e logístico/militares por parte da Africa do Sul, ciosa da manutenção do seu estatuto de apartheid, uma coisa obscena que os tempos condenavam mas a todo o custo a maioria branca tentava manter. 

O oficial sul-africano recuou com o impacto do tiro e parecia ter sido atirado para trás quando se lhe dobraram os joelhos, caindo curvado sobre eles como se fosse rezar. Antes de beijar o chão mais quatro ou cinco elementos da coluna tinham sido atirados por terra e sucumbido, os restantes surpreendidos, deitaram-se no capim baixo procurando abrigo, reduzindo o corpo oferecido às balas e a descoberto. Fizeram-no talvez no intuito de, ganhando tempo, se reorganizarem ou pensarem na retirada. Melhor abrigo que cosidos ao chão não encontrariam duzentos metros em redor e no entretanto o Pereira, um pexito de Sesimbra e especialista com a metralhadora pesada, fazendo-a crepitar e saltitar no tripé obrigava-os a manter as cabeças baixas enquanto lhes gritava:

- Não mexe ! A gaivota tá cagando na bóia seus cabrões !  *

O que quer que fizessem seria inútil, estavam condenados, o erro custar-lhes-ia caro, não se caminha em fila por campo aberto pois cercados cairão todos na mesma ratoeira, em campo aberto caminha-se em linha, uns ao lado dos outros, intervalos de vinte metros, pouco menos, poderá cair um ou dois mas não cairá a linha, dificilmente cairá, será muito improvável abarcá-la e tombá-la toda.


Dispusera os meus homens em V, com o vértice a jusante da projecção do rumo seguido pela fila de tropas da SADF (South African Defence Force), cada lado desse V não ficaria com o outro lado, onde metera todas as mulheres do grupo, na linha de mira, na linha de fogo e cobriria qualquer tentativa do inimigo, estavam cobertos, estavam encurralados, estavam fodidos.

Havia que ser rápido e fomo-lo, rápidos e eficientes, aquela coluna não trazer um transmissor nem um homem das transmissões só poderia significar estar por perto outra força mais numerosa. Esta seria composta somente por batedores, portanto tinhamos que apressar-nos, por isso nem os enterrámos muito fundo, no fim lançámos-lhes umas pedras em cima, rezou-se uma oração e estava a coisa feita, acabada, numa das sepulturas deixámos o molho de chapas de identificação, alguém as procuraria e apressámo-nos a sair dali. A qualquer momento um helicóptero poderia surgir vindo do nada, apesar da rapidez a tarefa ocupára-nos quase a tarde inteira, era muita gente mas a consciência ficar-nos ia pesando se os não enterrássemos.

Sim era a guerra, mas até a guerra tem leis, e há a ética, a moral e o caracter, há princípios, a vida não pode ser vivida numa selva.

Quase sem munições e com dois feridos ligeiros encetámos o regresso à base, seriam três a quatro dias de marcha penosa debaixo do sol arrasador do Planalto Central da Namíbia, quase tão hostil quanto o Calaári, ou então caminhávamos somente de noite, mais uma operação de busca e ataque e mais um sucesso, cumpríamos a Cartilha João de Deus, como dizia o Massumba, mostrando os dentes brancos que lhe enfeitavam a frente e na verdade tratava-se disso, cumprir a cartilha, cumprir os preceitos, aquela coluna não o fizera e agora estava toda enterrada e bem enterrada.

Isto da guerra também tem o seu quê, saber montar uma emboscada significa também saber o suficiente p’ra não cair nelas, é preciso saber, saber se há nevoeiro a levantar ou a manter-se, saber se o sol irá estar a nosso favor ou na nossa frente e encandeando-nos a nós ao invés do inimigo no momento de atacar, conhecer o terreno, saber se caminhamos na orla, no fundo de um vale ou se numa das encostas, aplicar a táctica ou a estratégia correcta se a ravina ao nosso lado sobe ou desce quando e se estamos sendo atacados ou somos os atacantes, nada disto é despiciendo numa emboscada, devemos escolher os lugares cimeiros, e nunca caminhar pelos vales mas sim no cimo das ravinas. É crucial saber dispor os homens em cada um destes cenários para que tenham vantagem sobre o inimigo e não se matem a eles mesmos, saber a cartilha é isso, saber a cartilha será a nossa única safa no meio do caos duma qualquer guerra. Naquela foi.

Saber significa ficar, resistir, durar, viver …  A ignorância mata ...


* " agora já é tarde " linguagem popular da população piscatória Sesimbrense.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

477 - O PLANO DE FINANCIAMENTO MALÓ ...


Hoje é um dia triste, não porque ao olhar pela montra do café ou pela janela de casa (onde estou é comigo, detesto que me controlem) o dia se apresente acabrunhado, escuro, bucólico, também ele tristonho. Contudo não me acomete a tristeza nem a inveja ao ver o meu amigo Azevedo dirigindo-se a mim de sorriso rasgado até às orelhas como se fosse dele o sorriso, ou o sorriso ou os dentes brancos e alvos, ou alvos e brancos, como se as duas coisas não fossem a mesma coisa, sabendo eu quanto os dentes ou o sorriso lhe custaram, os olhos da cara foi o que foi, neste caso mais os dentes pois poucos ou nenhuns serão dele mesmo que já estejam pagos, o que eu duvido conhecendo o Azevedo como conheço.

Mas em frente que atrás vem gente como diria uma amiga minha, torta que nem um garrote e a quem todas as infelicidades da vida caem em cima e atormentam. A pronto ou a crédito o Azevedo tem dentes novos, azar foi ter feito um seguro contra todos os riscos à mota, que afinal saiu daquilo sem um risquinho, tendo-se esquecido dele mesmo, a quem tiraram da valeta com a cara desfeita. Sei que fazem seguros de mãos a pianistas, e de outras coisas por exemplo a actores porno, desconheço é se haverá um seguro exclusivo para os dentes ou os joelhos dos motards, quem souber que me diga qualquer coisa porque eu só sei de ouvir dizer, que a clinica Maló financia até 72 suaves prestações dentes cuja garantia pode atingir os duzentos anos, dentes que, dizia um folheto que uma vez nem li, fariam a inveja de toda a gente. Os do Azevedo fazem.

O mundo anda virado do avesso e os valores éticos e morais, tal como as tradições, andam virados de patas para o ar. Antigamente “a gente” propunha uma obra a uma editora e das duas uma, ou ela nos respondia que sim que valeria a pena apostar na coisa, que teria pernas para andar e fazia por ela esperando ganhar ali algum dinheiro, ou nos mandaria de caras aprender a escrever aconselhando-nos a limpar o cu àquela merda. Simples e directo, resposta mais clara não poderia haver, assunto arrumado.

Agora não, agora por maior merda que a obra seja a editora gaba-a, gaba-nos a nós por arrastamento, glorifica a coisa, afirmará ser uma pena perder-se a sua edição e distribuição, avisando-nos que na segunda página se encontram as condições gerais do contrato e aconselhando-nos a aquisição de um número mínimo de exemplares entre os 100 e os 200. Claro que ficamos sem saber se aquela merda vale ou não vale alguma coisa, os modernos meios e processos de impressão, ON DEMAND, assim se designam, permitem imprimir de um a um cento, um milhar ou um milhão com o mesmo custo unitário e como tal tudo que venha à rede é peixe, será ganho, e jogando com as emoções, as vaidades e o ego de cada um teremos edições cujo número de exemplares irá de um cento ao infinito, e seja como for que vieres a pagar os cem ou duzentos ou mil da praxe o lucro da editora estará sempre assegurado mesmo que tu meu papalvo fiques com 99 ou 999 ou 9999 livros na mão, que ninguém quererá nem saberás como prender na casa de banho, se com um cordel ou um arame pendendo da canalização do autoclismo, ou empilhados a um canto a fim de lhes ires arrancando folha a folha para ...

Há umas semanas propus a várias editoras uma belissíma obra que alinhavara, contactos por correio electrónico em que nalguns casos esqueci enviar ou anexar o ficheiro PDF com a dita obra, porém nada a recear, duas ou três responderam-me, daquelas respostas automáticas que o hotmail permite, que sim que se estava perante uma obra bem estruturada valendo a pena editá-la e bla bla bla, ao que lhes respondi que sim que aceitaria as condições e que poderiam portanto começar já a imprimi-la bla bla bla, pois quero ver o que me dirão quando se aperceberem terem-se pronunciado sobre uma obra que nem receberam e muito menos leram.

Pelo menos uma editora foi honesta, temos trocado mensagens, a obra proposta tem potencial, a ver vamos como diria um cego, a ver vamos se chegaremos a acordo ou se serei comido ou não pois as condições são leoninas, o leão tem a faca e o queijo na mão, a mim resta-me espernear, ou não, não ir na conversa, não aceitar, afinal não sou o Lobo Antunes, não tenho força negocial, estou nas mãos dos editores, vai ser um jogo de paciência, um jogo do empurra, porque ao fim e ao cabo eles também precisam dos escritores e se bem me parece nem serei dos piores, tenho para mim ser até bastante bom, ouvirão falar do Baião, talvez esteja na calha para o Nobel e ainda não saiba, o futuro a Deus pertence, modéstia é coisa que não partilho e a humildade nem sequer é a minha cena, o Nobel sim é a minha onda, e embora por enquanto tenha que me contentar com a minha Suzuki ou com uma Honda, essa é a realidade e não há realidade mais enganadora que a virtual. Editores e filhos da puta são pares iguais, entre os dois venha o diabo e escolha.

Como tal meus amigos e minhas amigas ou minhas amigas e meus amigos, as senhoras primeiro, só não é escritor e não tem livros editados quem não quer, o problema é ter leitores e compradores para eles, seguidores, admiradores, apreciadores, apoiantes, porque o resto é tão falacioso quanto as boas práticas e intenções da Fundação EDP, da Coração Delta, da BPI Capacitar ou BPI Solidariedade, da Frota Solidária da Fundação Montepio, e outros projectos de solidariedade e responsabilidade social que tais, quanto a mim tudo mecenato ou patrocínios destinados a baixar lucros e evitar que se paguem impostos ao fisco, quantas vezes se beneficia mais do que se dá eu nem sei, sei apenas que há comendas e doutoramentos honoris causa dados que custaram milhões a quem foi agraciado, ou milhões dados a quem agraciou alguém mas que não mereceria um chavo… 



terça-feira, 21 de novembro de 2017

476 - CARTEIRO EM BICICLETA by Luísa Baião


Acabou de passar o carteiro na minha rua e, uma vez mais, não me trouxe uma carta tua, não que a esperasse, embora muito a desejasse e tu, sabido, nunca ma tivesses prometido.

Mas neste momento seria uma carta tua a única coisa a fazer-me sair à rua, recolhida que estou, inda que amante de guarida nunca tenha sido, nem sou. Mas aborrecem-me os pixéis, os posts, os tweets e os instagrams, confundem-me os neurónios e sempre preferi o cara a cara com os Sertórios ou outras abéculas que essas ao menos não me enleiam a molécula.

Gosto de ver-te, de sentir-te, de tocar-te, ouvir-te sorrir, gargalhar, consigo até gostar das caneladas atiradas quando rindo te estiras, quase caindo da cadeira c’a bebedeira de riso. Às vezes basta-me isso, um sorriso e pouco mais pois até os animais, e a minha Mimi que o diga, apreciam coisas tais e também ela, mal soa o carteiro corre à varanda primeiro e corre depois os quintais, saltitando pelos ares apanhando borboletas, gafanhotos e lagartixas, ou aventais nos estendais e, esquecendo completamente o que a levara à varanda, o barulho do carteiro numa bicicleta a pedais.

Carteiro em bicicleta é, deste modo e para nós duas, novelo bem enrolado que ela empurra brincando fazendo-o rebolar, mas para mim cheio de nós que me canso a desatar, porém, desde que a linha vá sobrando e eu com ela enquanto espero, novos laços vou atando... Desfaço nós enlaço laços, seja ou não seja Natal, porque os nós que desato são laços que irão ficar, são paixões que largo no ar, que qualquer um pode apanhar, juntá-los presos num nó e p'lo correio enviar a qualquer uma de vós a quem deseje enlaçar.

Depois é ver-vos felizes, e p’los cafés saltitando, as cadeiras derribando ou no quintal esvoaçando, as borboletas caçando, os gafanhotos temendo e das lagartixas fugindo em cada manhã de sol e até ao carteiro se ouvir a campainha tinindo, avisando sua excelência que tráz para vossa eminência uma cartinha perfumada e por abrir. Dizei-me então raparigas qual a cartada jogada no hotmail ou no gmail que vos deixe assim desvairadas ?

Tanto progresso anda a matar-nos e a deixar-nos frustradas, eu inda tenho guardadas cartas de cores bem rosadas que hei-de escrever um dia e enviarei às carradas a quem sei que as aprecia. Bastarão dúzia e meia de frases bem estruturadas, pozinhos de perlimpimpim feitos das caudas cortadas às lagartixas p’la Mimi, uns salpicos de perfume e a língua bem passada p’la cola do envelope para que, desde o carteiro a quem quer que seja carreteiro e a leve ao seu destino, a todos faça rejubilar, saltar, pular de contentes e, como uma amiga diria, subir correndo um escadote, ou, como o refrão duma canção cujo mote é a paixão, deixar-lhes o maravilhoso coração despedaçado.


Por isso caras amigas dai laços, apertai nós, pois o mundo anda desgraçado e mui pior sem nós andaria, nósinhas, nozesinhas onde o amor navegará por sobre mares e oceanos porque é para isso que cá estamos e, ao contrário do que afirma a ciência na sua infalível inocência, não são os musaranhos que sobreviverão à emergência, à inclemência, à impaciência, à hecatombe, à destruição, à bomba, ao apocalipse, ao armagedão, ao caos. 

Somos nós, nosinhas, avós, filhas e mãezinhas, somos nós qual casca de noz quem terá que, nos momentos fatais fazer de mães e de pais, levar a bom porto o barco, incutir esperança aos demais, espalhar o amor p'los quintais, dar trabalho a carteiros em bicicletas a pedais fazendo promessas aos demais.

Natal será pois quando e sempre que uma mulher quiser, e, visto entre o ser e o querer ir um passinho de pardal, irá ser o ser o ser ou não ser da questão, eu já tenho a minha parte, eu já tenho o meu Baião, cada uma fazei por si q’uisto nã é uma lição mas foi cousa que aprendi. 

E fico vendo-o passar, ao carteiro não há que enganar, pedalando sem parar, a campainha calada, e, embora mui desejasse não me trouxe uma carta tua, a tal carta que tu, marido, nunca juraste enviar-me por nunca te sentires perdido.

O sol brilha na varanda desta janela francesa onde me quedo recolhida esperando divisar-te mal apareças gingando ao fundo da avenida. Gosto de ver-te, de ouvir-te, de tocar-te, de sentir-te, de sorrir-te e dar-te umas caneladas p’ra te ver rindo atrapalhado a bandeiras despregadas e tentando o equilíbrio nessa mesmíssima cadeira donde em várias ocasiões já te estampaste. 

Gosto, gosto de ti já to disse bastas vezes, tanto tanto que o que mais gosto é mesmo sarrazinar-te a molécula e meter-te a mão nos neurónios. Amo-te Bertinho matreiro, mesmo que seja a Mimi quem ganha festinhas primeiro.

Era uma vez um cavalo,
que vivia num lindo carrossel,
tinha orelhas altivas,
e um lindo lacinho de papel !
A correr xá lá lá !
a saltar xá lá lá !
cavalinho não saía do lugar xá lá lá !
(canção da minha infância)

by Maria Luísa Baião, Évora, 21 de Novembro de 2017