Anote
aí menino, é da discussão que nasce a luz, antes dela as trevas, o caos, e não
atingir a luz ou não ver é como sendo cego, você passa ao lado e não vê. Tudo
isto me ia ela dizendo calma, serena e maternalmente. Ela a Ana H., dona dum olhar
aguçado, enquanto deambulávamos distraídos pelo calçadão.
Era
domingo e aquele era seu modo de dar aprovação e concordância a um curso de
formação que ali me levara, nada mais que um mestrado dedicado ao tema da observação,
isto é dedicado a olhar, a ver, à visão, no sentido de construir perfis e
teorias baseadas em factos observáveis, mensuráveis e palpáveis, os quais sem
um apurado treino escapariam ou passariam despercebidos ao mais atento que ao
lado deles passasse ou os pisasse.
Ana
H. tinha olho de milhafre, ela que era escritora e pintora, tendo um pé na
fotografia e outro no cinema, não podia dar-se ao luxo de ver mal, via bem
melhor que um falcão ter-lhe-ei dito uma ou outra vez gabando-a e reconhecendo
em simultâneo quanto com ela também aprendera por aqueles dias, aprendizagem
extra formação, isto é fora da formação oficial que tão longe me levara e em
que o destino quisera, talvez como partida colocar-me no colo dela, capaz de
ser minha mãe.
Estaríamos,
se a memória me não falha por volta de 78, e enquanto a academia carioca me
habilitava na difícil arte de ver, me preparava ou capacitava para transformar
a informação colhida em conhecimento, me ensinava onde a procurar e a colher
para seguidamente a transformar, Ana H. nas horas vagas fazia com que eu
chegasse mais longe e transformasse por sua vez, ou por minha vez esse
conhecimento em sabedoria.
Como
ela bem dizia e não se cansava de o dizer, “a realidade só se mostra a quem
esteja preparado para a ver” o que não deixava de ser uma grande verdade, a
informação estava acessível mas almas haveria que nem a saberiam ver,
seleccionar ou colher, repetia. É preciso ter olho de falcão, ou de milhafre, e
foi por ela que fiquei sabendo e conhecendo uma curiosa teoria que em Portugal
sempre foi desconhecida ou ignorada, os aborígenes australianos conhecem-na há
quarenta mil anos. Ana H. devia andar pelos quarenta e cinco, portanto não
teria tido conhecimento dela há mais tempo que isso e, segundo ela, existem
três espécies de aves cujo modo de espantar a caça e caçar no mínimo nos
espantará.
São
elas o milhafre de assobio, o falcão castanho e o milhafre negro, esta última
uma espécie migratória que pode ser encontrada em Portugal e aqui faz ninho. Carregam
no bico tições ardendo, sobem às alturas e largam-nos, incendiando florestas e
savanas, espantando a caça e caçando-a com extrema e facilitada facilidade,
redundância de Ana H. que com elas gostava de brincar. Claro que a teoria tem o
seu quê de rebuscada em demasia para as nossas mentes dizia ela rindo. Os
indígenas australianos conheceram-na e confirmaram-na há quarenta mil anos, é
só um aparte, quem vai acreditar em selvagens ? Mas eles sabem, eles viram,
eles tiraram-se de dúvidas, tiveram tempo para isso, adiante, quem não tem olho
é como quem não vê, para os tugas toda esta psicologia é uncanny, fazes muito bem em treinar o olhar filho, quem não vê é
como quem não sabe.
Naturalmente
esta sua aprovação tácita tinha o condão de me deixar mais atento nas aulas
frequentadas de segunda a sexta, em que treinava o olhar, apurava teoricamente
o treino de ver, onde encontrar o que deveria olhar e observar, o extrapolar do
observado ou visto, quem, quando, quantos, como, para onde, em que direcção,
carregados, leves, descalços, calçados, mirar, apalpar os restos duma fogueira,
analisar uma beata, um maço de tabaco amassado e atirado fora por descuido, uma
carteira de fósforos inadvertidamente perdida, excrementos humanos, seu aspecto
e dureza, o factor tempo, um botão caído, um fósforo queimado, o reflexo dum
relógio, cheiro a tabaco no ar, pegadas, rodados, terra remexida, o nada, o
silêncio das aves, o piar dos pássaros, brilhos na noite, fumaça no horizonte,
a marca duma mijadela, os vários níveis de rastos sobrepostos, o sentido em que
aponta um galho partido, ou a erva pisada, tudo isto nós estudávamos a semana
inteira p’ra depois num breve fim de semana Ana H. me explicar que pela
inclinação das pinceladas num quadro se poderia adivinhar quem o pintara, ou
que há quarenta mil anos o homem pré-histórico já pintava paredes nas cavernas,
deixando pistas, rastos, círculos principalmente, por serem fáceis e serem
simbólicos, símbolos aos quais os tolinhos de hoje e dos discos voadores atribuem a classificação de testemunhos de aliens aterrissando e visitando a Terra.
E quem sabe se não seriam mesmo discos voadores ?
Mais
tarde, enquanto estendíamos os pés e fumávamos um baseado saltava para a Alta
Idade Média e para o Renascimento, época onde ou em que, jurava ela,
continuámos com os círculos, mas mais aprimorados, renascidos da cultura da Grécia
clássica e da romana antiga, dizia ela que pelas alturas em que Portugal
nascia, séculos XII e XIII apareceram as rosáceas, círculos enriquecendo a
arquitectura, primeiro na romana depois com vitral na gótica, posteriormente os
vitrais em paredes inteiras, a Banda Desenhada desse tempo e o modo de
transmissão do conhecimento. Lá está dizia ela entusiasmada, a banda desenhada
do vitral transmitia informação era o catecismo dessa era, ninguém sabia ler
mas todos tinham dois olhos, viam, a visualização antecedeu em milénios a
escrita filho, e pintar é mostrar algo, por isso eu pinto, mas a escrita não me
chega, não me enche, não me preenche, escrevo, pinto, fotografo, faço cinema,
levar as pessoas à sabedoria dá trabalho, o conhecimento é matéria densa,
pesada, consistente, não é para todos sabias ?
Ela
regressou ao país antes de mim, acompanhei-a até ao Galeão, fez o check-in e despedimo-nos
com lágrimas nos olhos, nunca mais nos vimos, falámo-nos uma ou duas vezes pelo
telefone e com intervalos de três ou quatro anos entre cada chamada, eu aprendi
a ver, aprender a ver manteve-me vivo, Ana H. pintou, escreveu, fotografou e
filmou o que queria que víssemos, ela que tinha um olhar de falcão, incisivo,
penetrante, penetrou-me a alma, ficou-me no coração, jamais a esquecerei, nunca
a esqueci, nem nos piores dias daquela terra sem grei.
O meu destacamento, mau grado o risco acrescido p'lo tipo de terreno que pisávamos e o perigo derivado da natureza das operações desenvolvidas, registou sempre pouquíssimas baixas, e nisso foi único. Obrigado Ana
H., porque também tu me ensinaste a ver. E a olhar e a ver os outros, ver como caminham, como falam,
gesticulam, as pausas que fazem, as contradições, atitudes, maneirismos,
pancas, tiques, taras, vestimentas, modas, manias, hábitos, disposições,
humores, cultura, conhecimentos, escrita, caligrafia, estrutura das frases,
incoerências, inconstâncias, contradições, polaridades, reticências, repetições, silêncios, as pessoas são um livro
aberto, há que saber olhar e ver, há que saber lê-las...