quinta-feira, 28 de junho de 2018

513 - O TRIUNPHO DA VONTADE, primeira parte ...

 

De modo quase automático a sociedade sempre se ajustou, com maiores ou menores flutuações, a um equilíbrio que nos cabe interpretar, e até sobre ele agir. Desde que Malthus nos surpreendeu com as suas primeiras impressões, ou leis, as quais ainda hoje chocam os mais desprevenidos, incautos ou desconhecedores de tais teorias. De tal modo que podemos dizer da demografia o que se diz da física, ou do universo, há um horror ao vazio que, de uma forma ou de outra acaba sendo preenchido. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, como se existisse nela, demografia, o mesmo tipo de harmonia que observamos entre as leis da oferta e da procura, que, como sabeis se influenciam mutuamente.

Desde 1798 que Thomas Malthus e o seu horroroso malthusianismo que o problema é conhecido com cariz científico, e a par dele os modos de sobre o mesmo agir, o que deve ser feito atempadamente já que a resposta pretendida demorará certamente a ser cumprida. A sociedade por si mesma evita uns problemas mas cria outros e os pratos da balança, balançam deveras até que o pretendido ou natural equilíbrio seja atingido ou encontrado.

A brutalidade das palavras do poeta Jonathan Swift, por volta de 1729 e propondo aos pais que vendessem os filhos para que degustando-os as famílias ricas fizessem frente à fome que devastava a Irlanda, ou que os próprios pais os comessem, tendo ficado conhecida na história como a Modesta Proposta deve ser vista como ironia sobre as teorias de Malthus, ironia que o poeta bem sabia corresponderem à realidade, o mundo, o equilíbrio natural do mundo é autofágico, a história o prova e comprova, não assistimos ao longo dela somente a grandes e macro migrações, mas também a epidemias, fomes, guerras, tragédias, cataclismos, que separadamente ou em conjunto repõem esse equilíbrio entre recursos e consumidores dos mesmos, nós os habitantes do planeta.

A uma outra escala, a uma escala micro o modo de viver das sociedades também repara ou causa danos no tecido demográfico, veja-se como a GB, França e RDA foram procuradas após a II GG e como actualmente e por idênticos mas inversos motivos os portugueses fogem de Portugal, é caso para dizer termos por cá acordado tarde e a más horas para um problema que a demografia apontava há duas três ou quatro décadas atrás, não a ter levado a sério está e irá custar-nos os olhos da cara. Manter a estabilidade ou o crescimento de uma população obedece a factores tão diversos como a economia, o bem-estar, o pleno emprego, a felicidade ou capacidade, diria oportunidade de realização pessoal, aspectos de que Portugal não cuidou, estando agora a importar estrangeiros para colmatar o déficit demográfico, ou seja trocando a solução de um problema actual por uma carrada de problemas futuros, diria estarmos saindo da lama para nos metermos no atasqueiro.

A falta de conhecimento dos nossos governantes e deputados, uns e outros de uma ignorância atroz somente com paralelo na vaidade e prosápia (prosápia enquanto jactância e bazófia) que pavoneiam, aqui nos tem conduzido, valha-nos o facto de muitos desses migrantes acabarem por ir-se embora mal se apercebam do labirinto onde se meteram, sendo pouquíssimos os que acabam por aqui fixar raízes.

Mas estamos a desviar-nos da vaca fria e a vaca fria hoje é a demografia, o patronato tanto esticou a corda para baixo que hoje não tem mão-de-obra que lhe acuda, os tugas emigraram, fugiram da sua egoísta e patronal ambição, esses patrões que trabalhem para eles mesmos, os tugas foram fazer vida e procurar a felicidade noutras paragens. Por outro lado, não detendo já o país a posse das grandes empresas fulcrais no sustento de qualquer economia, como sabemos foram vendidas aos estrangeiros por dois patacos, sucede sermos escravos dos outros na nossa própria pátria e como tal resultar compensador procurar em terra alheia não sofrer os dissabores a que nos condenaram na nossa terra, na nossa pátria.

Como se está vendo uma pátria madrasta, capaz de salvar os bancos mas que não acode aos portugueses, aos seus lídimos filhos, o que diz bem para onde está virada a nossa política e o nosso futuro. Aos bancos acodem com milhões, aos tugas tiram a casa por dois tostões, esta é a política que tem sido exercida pelo centrão, e nem a extrema-direita nem a extrema-esquerda pegam numa bandeira que deviam erguer bem alto, a defesa dos filhos desta nação.

Por outro lado ao tuga não é ensinado, e ele sozinho não chega lá, é incapaz de sózinho pensar como combater todas estas iniquidades e arbitrariedades que lhe atiram acima. O tuga não aprende sozinho, nem acompanhado, nem sequer com os erros dos outros, não o digo eu, dizia-o Eça de Queiroz, e mais recentemente José Gil o nosso filósofo que o tuga é ignorante, vaidoso, estupido por natureza, não faz nada por si mesmo, abomina a franqueza e, a menos que surja um outro Fontes Pereira de Melo, um Marquês de Pombal, um Infante D. Henrique ou um outro Salazar que o conduza, não passará de ovelha no rebanho caminhando ordenadamente para o cadafalso.

Deus concedeu-nos o livre arbítrio, mas o tuga na generalidade nem o usa nem sabe sequer o que seja, ou do que se trata. Já me alonguei demasiado neste ensaio de hoje, amanhã lhe darei continuidade, veremos como a vontade é tudo, querer é poder, vejam o filme de Leni Riefenstahl “ O Triunfo Da Vontade “ o filme proibido de Leni Riefenstahl e aprendam com ele, uma obra-prima cinematográfica mas também da mestria com que os nazis usaram para o mal mas uma fórmula que naturalmente pode e deve ser usada, usado, a vontade, o livre arbítrio, para que consigamos chegar onde queremos, obter o que desejamos.

Amanhã haverá mais, passem bem, tomorrow falaremos dos dez mandamentos, do casamento, de porcas parideiras, de carne pra canhão, de mão-de-obra e níveis de produção, etc etc etc …







512 - UM PEQUENO ENSAIO SOBRE A MINÚCIA*


Serão casos tanto para admirar quão louvar, exemplifico com a minúcia que existe e exigem as coisas frágeis, como a quimera e o pormenor genealógico das obras de arte que Darwin nos desvendou nas asas das borboletas que o sol doira.

Coisas que nos tocam e comovem, tal qual a simplicidade do belo, ou a beleza da simples e aparente minudência do olhar contemplativo de quem observa os iridescentes reflexos do mar no final de uma tarde de verão.

Também contemplo a coerência que nos devia animar, dela dou como exemplo a firme minúcia do bisturi no rasgar das carnes e movido pela virtude do cirurgião. Ou o detalhe, a circunstância aflita das mulheres de negro vestidas que no areal deserto esperam pelo regresso das barcaças quando o mar é táureo e se rebela.

Não olvido coisas a que devemos estar atentos e ter à mão, tal como a sagaz argúcia minuciosa de Armstrong ao poisar o pé na lua, ou a particular minúcia do actor quando expectante no palco actua e, nunca menor que a manual perístase ou minúcia com que o artesão fragmenta o diamante de que resulta um lapidado multicolor, irisado e brilhante como uma exposição de mestre.

Maestrina e perita minuciosa é a lagarta, qual perífrase que com mil fios de seda tece e veste o trabalhado capote do diestro, qual bagatela fadada duma sofisticada metamorfose quando e se o toiro citado investe.

O instante, a metamórfica fénix, o raio, o milagre, o inverso da paciente minúcia com que as abelhas constroem os favos de mel, metamorfose e aposta que com minuciosa minúcia a mulher busca alcançar, e ganhar, ao perfumar o corpo de oloroso gel.

Agora observem, vejam, atentem na minúcia com que a ave edifica o ninho, qual minúcia da velha senhora ao bordar o linho e nada diferente da minúcia do lenhador ao cortar a lenha com que alimenta na lareira acesa o tição que arde, a fagulha que crepita, aquece e conforta, que hipnotiza e se fita.

A mim comove-me a doçura, coisa nada mínima inda se fugaz minúcia, o carinho amor e dedicação posto no amanho da vinha, gesto de simples grandiosidade, grandiosidade complexa donde nascem os néctares com que se faz a festa.

Festa, baco, bacantes, a minúcia da fecundação, o crescer do embrião, a dolorosa e perita minúcia do parir, a extremosa ternura duma mãe amamentando o filho, amamentando o devir e o departir trigo e joio pois a vida nos exige minúcia afim de, se vivida, se viver, sendo ser.

  
* Ensaio desenvolvido como homenagem e a partir do poema “A Minúcia” do meu amigo Orlando Redondeiro e publicado in:


 * Orlando Redondeiro

12 de junho de 2018  ·

...........................A Minúcia................................

A minúcia que existe nas coisas frágeis

A minúcia das obras de arte que Darwin desvendou

Nas asas das borboletas que o sol doira.

A simplicidade do belo

A beleza do simples

A minúcia do olhar contemplativo

De quem observa o mar

No final de uma tarde de verão.

A minúcia do bisturi

No rasgar das carnes

Movido pela virtude do cirurgião.

A minúcia aflita das mulheres

De negro vestidas

Que no areal deserto

Esperam pelo regresso das barcaças

Quando o mar é táureo e se rebela.

A minúcia de Armstrong ao poisar o pé na lua

A minúcia do actor quando expectante no palco actua.

A minúcia com que o artesão fragmenta o diamante

Lapidado multicolor irisado brilhante.

A minúcia da lagarta

Que com mil fios de seda se veste

A minúcia do capote do diestro

Quando o toiro citado investe.

A minúcia com que as abelhas

Constroem os favos de mel

A minúcia com que a  mulher

O corpo perfuma de oloroso gel.

A minúcia com que a ave edifica o ninho

A minúcia da velha senhora ao bordar o linho.

A minúcia do lenhador ao cortar a lenha

Na lareira acesa o tição que arde a fagulha crepita

Aquece conforta que hipnotiza se fita

A minúcia do carinho amor dedicação

Que é posto no amanho da vinha

Simples grandiosidade

Grandiosidade complexa

Nascem os néctares faz-se a festa

A minúcia da fecundação

O crescer do embrião.

A minúcia do parir

Da mãe que amamenta o filho

A minúcia da vida de se viver

De ser.

D'OR

OUT / 2016.


segunda-feira, 25 de junho de 2018

511 - " PARADA " by Maria Luísa Baião * ...................


Cansam-me os dias, porque a rotina se instala e ninguém vê neles brecha por onde a bruma se esfume e entre o luar da aurora. Cansam-me os dias, porque vivo em contramão sonhando a todo o momento erguer do chão o lamento que envolveu o pensamento de um povo que já foi capaz.

Olho o Céu, a quem amiúde rogo que se olhe para mais longe, para lá do universo, para lá de um véu que dilui o que de falso nos ilude. Olho em redor e confesso, que me apraz ver que ainda há gente com coragem para resolver o que é simples e urgente, gente que por palavras e actos escapa à vertigem voraz do que é imediato e fugaz, como um hiato.

Constroem-se teorias que ultrapassam Urano, mas olvidam-se soluções para o mais pequeno e profano dos males que nos afligem. Ventos solares nos fustigam, quer à esquerda ou à direita e enfunando toscas velas, caem por terra esquecidas, estrelas cadentes surgidas em momentos de quimera. Jazem por terra, inanes, ídolos idolatrados nos momentos em que, insanes os erguemos por engano muito acima dos telhados. E quando aparece alguém cuja visão apurada enxerga mais que o instante, logo lhe atiramos acima com o infame mais sonante.

Ergueram-se em tempos idos os cristãos das catacumbas. Conforta saber que agora, quando horas e promessas não cumpridas nos ameaçam com penumbras há muitos anos não vividas, as suas palavras certeiras buscam arrancar-nos novamente do fundo de existências brejeiras a que muitas consciências se acossaram receosas das carteiras, temerosas dum lampejo de partilha.

E não será maravilha que caladas há bem meio século, venham agora em arrulho mais próprio de asas de anjos, com palavras calculadas emendar os desarranjos, que é o mesmo que dizer que condenam os desmandos dos que, na embriaguez do calor que lhes fustiga a soleira, esquecem todo e qualquer um que, sem eira nem beira errando, de enganos e intrigas vitima, seja também português.

Nem ser soez é forçoso, basta apenas ser bondoso, caridoso, consciente do mal que aflige a gente para quem é mais urgente apontar, dizer que chegou a vez, a oportunidade ansiada de trilhar, auspicioso, o caminho que tardava. Desvendamos, pródigos e ufanos os mistérios do universo, incapazes de, de humanos, dar provas num simples verso. Não são velhos do Restelo quem por aí prega de novo, são a consciência acordada de um povo que avidamente, espera que alguém com coragem, solde a esta carruagem o elo que está quebrado.

Vivemos só uma vida, e nada, nada aconselha que a vivamos separada por uma antepara erguida com as nossas próprias mãos, pois quebrada a coesão, nem ministro ou sabichão carreará de novo para os trilhos um povo que desse nome, só tenha esquecidos os brilhos. Olho em redor e não sei se sou eu que estou parada, ou se em todo o meu redor tudo roda tão inerte que por tal rodar não dou. A velocidade empunhada como flama de um progresso que na esteira inflama e queima os deserdados da sorte (?) só tem parelha à altura da insensibilidade e rudez, com malvadez cultivada, como destino apregoada e apontando caminhos estreitos, caminhos de um só sentido, sem regresso nem apelo que conduzem ao cutelo, e a morte mais que certa.

Que apareça um homem, precisamos dum só homem, carregando as dores do rebanho, diferenciando o que é diferente e, indiferente ao clamor dos igualitários de serviço, calma e pausadamente trace com rigor um caminho mais suave para os viventes nesta dor que abomino. Será tarefa ciclópica, emendar, remediar, males por si não gerados, mas, se pecados tiver, o que em verdade duvido, certo é que em sua honra lhe sejam todos perdoados.

Lembrando um livro mirado donde meus olhos roubaram parágrafo sublinhado, inda lembro bem o lido;

para o autor, infeliz, “ a vida era como se lhe batessem com ela”…

Oremos. 



INTERVALO DOLOROSO

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.

Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque da quinta, com um docel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço e quem é triste não pode esforçar-se.

Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o da alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o accionante [?] daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me posticia [?] de alheia!

Eu não teria o horror à vida como a uma Cousa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.

Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-1as durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.

A (minha) vida é como se me batessem com ela.

* in Bernardo Soares - Livro do Desassossego

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 344.

"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.


domingo, 24 de junho de 2018

510 - OS REFUGIADOS, ESSES CONTRAPESOS …

Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Tudo isto me faz lembrar Angola em 75, o Rossio em 76, o cais de Alcântara em 77. Mas estávamos em 2003 e ele devia ter aparecido por volta do meio-dia, o sol já zurzia a pique fazendo daquele lugar e avenidas em redor um verdadeiro braseiro como nem no Alentejo eu alguma vez sofrera. 

        Vinha afobado disse um brasileiro, vinha afogueado, na verdade parecia assustado e talvez estivesse desesperado. Galgou de uma só vez os três degraus frente à entradado Hotel Palestina, guturalmente terá pedido escusa, licença, desculpa ou perdão, e nem só perdeu a embalagem que trazia como afastou todos com os braços, qual nadador olímpico de mariposa, deixando ondulando um mar de protestos e murmúrios em cuja ondulação entendi vogarem sede e fome.

 Desapareceu com a mesma velocidade com que surgira arrastando atrás de si um pequeno grupo de gente preocupada, entre as quais eu, vindo a deparar com ele nas casas de banho, torso torcido, boca sedenta aparando o fio de água duma torneira como se dela pingasse a salvação. Dessedentado foi envolvido pela turba, consolando-o e ouvindo-o com atenção, tendo-o conduzido às cozinhas para alguém lhe mitigar a fome e o desespero.

Foi este o primeiro a ser visto e no qual reparei, com maior ou menor aparato haveria, nos dias seguintes, de me aperceber de outras idênticas presenças e desesperos. Este primeiro caso, calças de camuflado duras de sujas, o cinto nitidamente no último furo, uma camisola de alças anteriormente branca e agora castanha de suja, uma barba de muitos dias por escanhoar, olhos saltando das órbitas, era claramente a imagem da desesperança.

Foto roubada da net

Fazia parte do exército de 800 mil homens de Saddam Hussein e que o comando da coligação desmobilizara após vencida a guerra contra o Iraque em 2003. Repentinamente quase um milhão de homens vivendo do pré para se sustentarem e às suas famílias viram-se despojados desse pequeno rendimento e sem esperanças de verem o futuro alterado a médio ou a longo prazo, isto é encontrarem outro modo honrado de subsistirem, eles e os seus.

Centro do mundo por aqueles dias o hall, o bar, o restaurante, as escadarias exteriores de acesso e o jardim rodeando o Hotel Palestina andavam nas bocas do mundo abrindo noticiários. Toda aquela área era ponto de encontro dos habitantes da cidade e frequentado por gente de mais cem ou duzentos países diferentes deixando no ar uma babel de línguas, aquele soldado desmobilizado caíra aqui, ou ali, lá, como um insecto numa teia de aranha, por puro acaso, desprevenido, cegado pela fome e pela sede. Mais calmo, alimentado e apoiado pela turba de curiosos que o tomara a seu cuidado seria a vez dele a alimentar a ela, matando-lhe a curiosidade, coisa que a turba agradeceu com atenção, atenção que retribuiu ao atirar para o lago de cisnes em que a cena se desenrolara o que ia sabendo, provocando uma miríade de círculos concêntricos que se espalhavam até atingirem as margens da mole babélica habitando o Palestina.

Foto roubada da net

Assim chegaram até mim os ressaltos desse tsunami, fiapos da história desse homem cujo desespero até hoje não esqueci. Ainda eu não regressara a este nosso torrãozinho desorganizado à beira-mar plantado e já se esboçava em Bagdad e noutras cidades iraquianas a organização duma milícia pronta a combater o ocupante, um parêntesis aqui para vos esclarecer não terem os soldados da coligação sido vistos como libertadores, ao contrário do que nos fizeram crer e fora propalado por toda a nossa comunicação social, a mesma que sempre escondeu as imagens das centenas de cadáveres que essa libertação largava pelo caminho, caminho a que pomposamente baptizaram de “Operação Choque e Terror”, portanto sem rodeios, sem pejo, sem qualquer tipo de contenção ou pudor a “sua libertação” assumia, sem o assumir, o terror avassalador que os conduzira ao caminho da vitória.

Ocupante, usurpador, invasor, eram estes os pomposos e simpáticos epítetos com que os membros da coligação eram apodados e em redor dos quais se organizaram de modo quase mágico e espontâneo os iraquianos. Qual lamparina de Aladino, todos os miseráveis desmobilizados pela coligação vencedora ora condenados a vidas de pedintes, de pobreza, de gente sem esperança ou desesperançada se encontraram repentinamente unidos em redor dum móbil de coesão. Foi fácil para mim adivinhar que dessa desesperança nasceria contudo uma força que alimentaria uma nova esperança e, um pouco por toda a parte, por todas as cidades do Iraque vieram efectivamente a surgir focos de resistência, logo apelidados pelos “do nosso lado” de insurgentes, focos que progressiva e paulatinamente se transformaram em exércitos que viriam a gizar as raízes do ISIS e do DAESH e de tantos outros que há pouco tempo pululavam pelas arábias deixando um rasto de sangue, morte e destruição.

Foto roubada da net

Do confronto entre libertadores, ou invasores, ocupantes, usurpadores e a arraia-miúda ou a “canalha” dos insurgentes surgiria a guerra ou as guerras que têm assolado a região, com o consequente rasto de destruição, mortos e refugiados. Os refugiados que hoje hesitamos receber, ou recebemos contrariados, são o refugo dessa destruição que causámos, causámos nós, ocidentais, europeus e americanos bem instalados, bem empregados e por comodismo esquecidos que demos cabo da vida de países e cidades, demos cabo da vida dessa gente que atravessando com risco o Mediterrâneo busca encontrar em nós a esperança que nós mesmos lhes roubámos.

Os irresponsáveis incompetentes de então são os responsáveis que ninguém se atreve hoje a responsabilizar. Tivesse a coligação mantido sob controle o exército que desmobilizou e toda esta desgraça teria sido evitada,* mas quem pensa em consequências ? Em reflexos ? Não teria sido difícil, mais complicado é adivinhar a movimentação de peças numa partida de Xadrez, de Damas, de Alquerque ou de Qirkat

 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Refugiados oriundos do Mediterrâneo. Foto da net.

* Quatro ou cinco anos depois a coligação tentou repor normalidade na situação que criara, mas era demasiado tarde, a asneira estava feita, era já impossível travá-la. 






sábado, 23 de junho de 2018

509 - YOGA, PILATES E REIKI NA VARANDA ...

Foto roubada da net

A minha Mimi é de hábitos fixos, taras e manias, pelo que só parou com a brincadeira quando me levantei, como se tivesse obrigação de acordar com o acordar dela ou tendo acordado ela eu estivesse proibido de continuar dormindo. Às sete da matina em ponto é forçoso, acordada ela, que eu largue também a preguiça, mas as preocupações dela são outras, já a conheço como a palma da minha mão, quer dizer, de ginjeira.

Também tenho as minhas rotinas, uma delas enfiar os chinelos, enfiar-me na casa de banho, enfiar a escova no cabelo duas, três ou quatro vezes, enfiar o excesso da bexiga no buraco da sanita sem salpicar nem entornar, para o que me sento. Tudo é preferível a ouvir gritar, ralhar, mijar os sapatos novos ou ter que ajoelhar-me e lavar o chão da dita casa de banho. Seguidamente corro a casa toda levantando todos os estores e abrindo a última janela afim de entrar com o ar fresco da manhã a malvasia das rosas e das malvas do jardim, do quintal frente à casa ou melhor dos canteiros no jardim que ladeia a casa. E foi quando abri as ventas e inspirei, como se em contemplação e fruição desse nirvana matinal que dei com os olhos nela, lá estava ela como vai sendo habitual, na varanda do prédio fronteiro ao meu, estendida na toalha apanhando banhos de sol ou praticando yoga, ou pilates, reiki ou qualquer dessas merdas orientais agora muito em voga, as quais nunca me preocupei muito em entender, embora assuma que me prendem, que me chamam a atenção, que cativam, pelo que de imediato puxei a cortina, não fosse a nova vizinha julgar estar eu armado em mirone ou feito voyeur, espreitando-a, eu que coraria de vergonha se ela o pensasse, quanto mais se me visse.

Pelo sim pelo não repuxei as duas partes do cortinado, que se não fechou totalmente deixando uma nesga por onde se infiltravam os raios de sol da manhã e me obrigaram a ir à gaveta buscar os óculos espelhados ou jamais destrinçaria se ela estava fumando ou pintando as unhas, o que também se vai tornando habitual. Contudo tive o cuidado de não me encostar ao cortinado, recordo ter sido apanhado desprevenido, aquilo foi o acaso, eu a começar a lida diária da casa e ela ali em preparos, já se vai tornando vulgar, ela aflorar à varanda para fumar ou pintar as unhas ou tratá-las, umas vezes dos pés outras das mãos, ou ler, ou simplesmente telefonar, ali deve ter mais rede, a varanda tem uma grade e uma rede onde ela de vez em quando estende os fatos de treino, ou de banho ou uma colecção de roupa interior, a malha da rede é pequena, miúda, ideal para aquele fim, mais a mais sem estendedores onde enxugaria ela aquelas miudezas ?

Não estou sempre em casa mas dada a situação é impossível que não veja a varanda dela, ou a ela, comedido como sou evito olhar, ela havia de me julgar um parvónio, gosto de fazer jogo limpo e boa vizinhança, preocupo-me com os vizinhos, invariavelmente entro, fecho a cancela do quintal, curvo-me um nadinha para abrir a caixa do correio e é aqui, confesso, que inadvertida e involuntáriamente o canto do olho me foge para a varanda em frente, para o estendal, o cadeirão, a mesinha redonda, hoje não deve cá estar, nem vejo o carro estacionado por aqui, parece novinho, tem já meia dúzia de anos mas parece comprado ontem, de vez em quando lava-o com um balde de água e uma luva felpuda, frente ao vinte e nove que é onde ela mora e nem uma gota no chão, nem uma cagadela de pássaro na pintura, por vezes tenho vontade de brincando a desafiar a lavar o meu de seguida, a brincar claro não vá ela julgar-me um alarve, ou pensar que a estou observando, mirando, não havia de gostar, eu não gostaria, por isso evito qualquer aleivosia, é melhor assim, com esta história do assédio, do me too, dos piropos etc é preciso cuidado, quem sabe se foi por isso que a vizinha da rua de baixo, a professora de ginástica, a Vivi, deixou de passar aqui.

         Residia a meu lado um bancário, um desatino o homem, até binóculos tinha, trouxera-os do ultramar em 75 quando fora desmobilizado dizia ele, aldrabice pura, comprei há dias uns iguaizinhos na loja do chinês, belíssimos, anti-reflexo e tudo, não por acaso esta nova vizinha tem mais parecenças com a Vivi que possamos imaginar, a predilecção pelas mesmas cores, p’las mesmas marcas e números de sutiãs, p’la roupa interior igualmente de reduzíssimas dimensões, p’las rendinhas, a mesma estatura, já para não falar na pancada pelos ténis de marca ou pelos penteados, enfim, a gente sem querer nota e a Vivi fazia-se bem notada, era impossível não dar por ela, quem sabe quanto essa sua faceta teve a ver com o divórcio, a verdade é que depois disso nunca mais foi vista aqui no bairro, no Público duma destas manhãs vinha relatado um caso em Edimburgo, em que passados mais de dez anos as ossadas duma divorciada foram encontradas casualmente enterradas no quintal quando os bombeiros procediam ao desentupimento de uma fossa asséptica, mas que eu saiba a Vivi não tinha quintal e o passeio frente à casa onde vivia era empedrado, nem por aqui foram encontradas quaisquer ossadas.

Esta nova vizinha não tem que se preocupar com isso, ou é divorciada ou mãe solteira, tem dois miúdos mas hoje com essas coisas do género e dos casamentos transsexuais e bissexuais ou homogéneros quem liga a isso, ninguém

E agora desculpem-me, depois acabo este apontamento, a minha Mimi já me arranhou, tem fome e quer a gamela cheia de granulado, entretanto ela chegou com uma caneca numa mão e um livro na outra e assim à vista desarmada não consigo ver o que está lendo, é que não gosto nada de confusões e detesto induzir alguém em erro percebem ? 

Foto roubada da net