Nunca soube o que vem de dentro e transborda para fora das palavras, a não ser
o que ficou por dizer e portanto não foi dito, por isso às vezes o digo, o
impensável, o inaudito, o inusitado inesperado. Tendo sido o que fiz ao olhar na direcção certa e me deparar com
o quadro número 5, que me não arrepiou a penugem dos braços mas provocou em mim indizível gesto de pálpebras.
Recuei uns passos para o olhar e focar
com maior acuidade e, ao fazê-lo recuei igualmente umas décadas nas minhas
memórias, amparei-me na cadeira junto à mesa sobre o dito quadro e ali
fiquei contemplando-o, a lembrança sorrindo
e a esperança a boiar no brilho dos meus olhos, galvanizados pelo ritmo
africano e dissonante a duas batidas com que há cinquenta anos acompanhava a cançoneta
que toda a maralha soletrava cada vez que surgia uma vedeta ou uma lambreta;
- Eu
vi a B.B. na estrada marginal / montada numa Lambretta e mostrando o material…
cançoneta
que não sendo nada de especial se propagava entre a rapaziada como fogo em pasto
seco, deixando-nos na alma um aconchego e
ponto final parágrafo, não vá a Margarida outra fotógrafa com tendências para
gramática lixar-me o juízo ao ler isto. Ponto final parágrafo. Passemos pois aos
parágrafosinhos pequeninos, mais facilmente tragáveis e digeríveis, diria por sua
vez a Rebeca que pontifica na cozinha de um restaurante onde vou muito.
MULHERES ANTES DE NÓS, uma exposição
fotográfica de Filipa Guerreiro em mostra no New Concept Coffee & Shop, seduziu-me
ou empolgou-me o suficiente para me prostrar ante o quadro 5 e depois percorrer
com atenção todos os quadros restantes, anteriores e posteriores, debruçando-me
sobre cada um e cada uma das mulheres neles retratadas, muitas delas minhas
conhecidas, nossas conhecidas, nossas velhas conhecidas, de outras eras, de
outras cenas, d’outras vidas.
Só não sei quem seja a Filipa, cuja ternura é bem vinda e se encontra
plasmada em muitos daqueles quadros, em especial naqueles onde as rendas e
rendinhas têm uma palavra a dizer, sabido como é sucumbir eu a esse artifício
de filigrana de que a sensualidade se serve para nos cooptar, quando não
arrastar ou prender por um fio, por uma guita, qual balão inflado de erotismo e
vogando nos céus de um materialismo imagético cujo portefólio eu e todos
arrastamos com maior ou menor discrição.
Pois saibam vossas excelências que foram
nem mais nem menos essas rendas e rendinhas quem me levou numa viagem absurda a
um passado que inda hoje recordo, Paris, loucura, anos vinte, “Casa Phundada em
1927”, Kermesse de France, Phragrancias de Europa para a mulher ideal, assim
mesmo, com ph, montra em vidro negro biselado a dourado, decerto da mesma idade,
Paris, loucura, anos vinte, Casa Phundada em 1927, ta explicada a coisa, a
coisa e o estilizado novecentista de uns lábios e de umas pernas no vidro da
montra, cujo significado demorei séculos a entender, os lábios retintos de
vermelho da velhinha, teria sido bailarina ? Aprumada, arranjada, linda, já não
há velhinhas assim, um dia plof e a loja para trespasse, mais uma que se foi… *
Ta explicada a coisa, a coisa e o
estilizado novecentista desses lábios, os lábios retintos de vermelho da
velhinha e de umas pernas no vidro da montra, cujo significado demorei séculos
a entender ou seja, tudo isso e a mulher ideal que nunca conheci se me gravou
na mente quando do meu exame de acesso à escola preparatória, e nunca mais eu ou somente mais tarde eu ... *
Casei mais tarde com uma santa mulher, mas a
mulher ideal nunca, ainda hoje sonho conhecê-la, não passa de um sonho, já
nessa época a Europa só sonhos e a única verdade que lembro é a mesma senhorita
linda que desde esse exame segurava o leme ao balcão da loja, magra como um
fuso e elegante que nem bailarina de can-can, teria sido bailarina ? *
Rejubilei ante o quadro 5 e tantos
outros, e as rendinhas, e os remates, e quando acordei mirei tudo com redobrada
atenção, já que assisti in vivo à ressurreição de um passado agora sem os
limos nem as cores esverdeadas que os náufragos e os mortos invariavelmente
arrastam ou trazem agarrados a si quando com uma fateixa os puxamos para
quaisquer margens. * *
Dito e feito num ai, propositadamente me depeniquei p’ra me confirmar acordado, pois se tratava novamente de caso
único nos anais do esoterismo, cujo karma decerto atrevidamente me convocara
para testemunhar a aura e espalhar a palavra, o conhecimento e a luz emanadas
por mais esta exposição. Saibam portanto os eborenses e outros habitantes deste
mundo que nem a “Kermesse de France” morreu, está viva, vivinha da Silva, ou da
Costa, mais linda que nunca e recomenda-se, nem o New Concept Coffee & Shop
deixou a sua veia ou vertente cultural por mãos alheias tendo voltado a
surpreender-nos e a brindar-nos com mais esta peculiar, linda, aparatosa, rara e insólita exposição. * *
Portanto passai palavra ou copiai e
partilhai este edital e fazei saber a toda a gente que no New Concept Coffee & Shop vos espera uma inaudita e espectacular exposição e uma bica, e que a Kermesse de France,
Phragrancias de Europa para a mulher ideal embora não tenha já a singeleza dos antigos
dizeres, ou biselados dourados, mantém contudo as prateleiras preenchidas de aromas
de encantar, filhos dos mais famosos narizes do mundo segundo tive há tempos
ocasião de constatar embora não tendo logrado rever a tal velhinha guardada nas
minhas ainda mais velhinhas memórias, precisamente quando eu um catraio e ela
velhinha coisa nenhuma…
Ainda hoje recordo tudo menos a mulher ideal e a única
verdade que lembro é a mesma senhorinha linda que desde um meu exame segurava o
leme ao balcão da loja, magra como um fuso e elegante que nem bailarina de
can-can, uma mulher esbelta e linda gravada, biselada a dourado nesta minha retorcida
mente… * *
* https://mentcapto.blogspot.com/2015/07/255-fragrancias-de-ontem-e-de-hoje.html
** https://mentcapto.blogspot.com/2012/12/135-evora-era-mais.html