Eu caminhava
na frente como deve caminhar todo o homem que se preza sobretudo quem deva dar
o exemplo. Fui por isso o primeiro a vê-lo, vi-o mas calei-me bem caladinho
esperando que a coluna o visse, ou pelo menos alguém naquela fila de pobres diabos famintos,
sedentos e cansados serpenteando p’la savana desse o alarme.
Vi-o
e ao vê-lo todos os meus sentidos ficaram alerta, arrebitei as orelhas e foquei
os olhos ao longe em varredura. Como um radar varre os céus eu varria a picada,
o horizonte, o capim baixo, as escassas árvores e alguns afloramentos rochosos dispostos
à direita e à esquerda do rumo que palmilhávamos.
É difícil
imaginar quanto uma coisa tão pequena mexeu connosco, nos sobressaltou e
colocou em sentido, melhor, em estado de sentinela alerta. Como difícil é
imaginar quão tal coisa nos pode dizer apesar de tão diminuta mas a verdade é
que disse e muito, porém só fala se a interrogarmos, se nos interrogarmos. Quem
porfia mata caça, e se tal é verdade o inverso também o é, quem não porfia é
caçado.
Cem
metros adiante estaquei, a coluna estacou atrás de mim e só então alguns acordaram
do torpor que seis horas de marcha tinham incutido nos homens, neles e nelas,
tendo havido quem pensasse irmos parar ali, descansar, limpar as armas, até o
sol ir já bem alto e o perigo de desidratação elevar-se com ele.
Fiz
um sinal e toda a coluna se agachou curiosa e repentinamente desperta, rostos
tensos, olhos bem abertos, um joelho no chão, o dedo no gatilho. Não, aquele
sinal não fora para descansar, bem pelo contrário e a pulsação acelerou em todos,
alguns escorrendo suor pela testa, patilhas, cara, pescoço e p'la coluna
vertebral causando arrepios nos homens, suor frio não incomoda, enerva, convoca
o medo, deixa todos tensos, os nervos uma catapulta pronta a soltar a energia
armazenada, dentes rangendo, mais que uma vez mordi a língua.
-
Alguém mais o viu ? Passem palavra baixinho.
e a minha pergunta percorreu
num sussurro toda a coluna como um boomerang, três minutos depois chegava a
resposta, Rosa, a penúltima da fileira vira-o mas não julgara ter a importância
que eu parecia atribuir-lhe,
- Vêm
todos a dormir ? Querem ficar deitados aqui eternamente ?
praguejei entre os dentes
enquanto a outro sinal a coluna abandonou a formação em fila e, rastejando ou
agachados, silenciosamente adoptaram uma
postura em linha, uma linha curva em meia-lua que melhor nos protegesse alargasse a amplitude do espaço por nós
abarcado e sob observação pois nunca era demais prevenir uma emboscada ao invés
de a remediar.
E tu Rosa ? Viste-o e calaste-te ? Nada disseste,
vinhas a dormir na forma ? Vinham todos dormindo na forma ?
e depois destas palavras
agrestes formulei uma crítica geral que aliviasse a pressão sobre Rosa, afinal todos se
tinham calado e nem sequer o tinham visto, num registo marcial cochichei de
modo a que fosse bem ouvido:
-
Será que querem ficar dormindo aqui para sempre ? Será que querem deixar este
lugar marcado com uma cruz por cada um ? E quem as colocará ? Esquecem estarmos
em campo aberto e que não o terem visto poderia ter feito com que estivéssemos
já todos despachados ?
E
logo de seguida para agradar a Rosa, uma negra que estimava, me estimava
e nos estimávamos sempre que possível naquele ambiente de inferno e loucura em
que os dias se repetiam e as noites nos assustavam. Virei-me para ela e:
-
Rosa tu que o viste poderás dizer sobre ele alguma coisa ? Que nos poderá ele
dizer ?
Eu
não perdia uma oportunidade para treinar e consciencializar os meus homens, nem
me limitava à cartilha teórica, saía com eles para o mato, encabeçava e levava
a cabo as operações mais díspares, sobretudo nunca abandonava a postura
exemplar nem o lugar da frente mal a coluna se punha em marcha numa longa fila
indiana.
-
Então Rosa ? Um leão comeu-te a língua ?
- Nã,
nã nada disso. Bem, era preto, pousava descontração na beira do carreiro ali
sobre a erva nem tocando o chão, nã estava todo queimado ainda, parecia se
deitara havia tempo nenhum, eu dizer que um outro alguém distraidamente ali o
deixara no caminhar e que não anda longe de nós esse alguém.
-
Muito bem Rosa, e já que foste a única a vê-lo volta atrás e vai buscá-lo para
lhe arrancarmos tudo o que pudermos, ele ainda tem muito para contar, vai sem
receio, nós cobrimos-te.
No regresso
Rosa encontrou-nos em círculo, uma sentinela em cada extremo do diâmetro dessa circunferência, embora atentos ao que se passasse em redor não perdiam pitada do nosso
instrutivo debate e, mal Rosa mo entregou fi-lo passar de mão em mão para ser bem
observado por todos e p'ra que entendessem como arrancar-lhe preciosas informações.
Sabia-se
ser preto, ter sido encontrado deitado na erva sem tocar o chão, só perdera a
cabeça tendo o resto incólume o que garantia a sua idade e tempo de exposição, seria
novo e estaria ali há bem pouco tempo.
- Nõ
ser dos nossos, nossa gente não é assim, não usa. Balbuciou Nhuma.
- Nã
ser nã, e de quem será pertença, quem saber de quem ser o descuidado ?
- Não
temos a carteira mas foi arrancado de uma, é preto, de papel e cera, não está
deformado pelo sol nem sujo pelo chão portanto terá poucas horas de queimado.
Quem o acendeu atirou-o descuidadamente fora e agora está a cantar e a
contar-nos o que sabe. E que mais poderá ele contar-nos Hermenegildo ?
-
Bem meu tenente, como o senhor sempre diz não passa tudo de suposições mas é o
que temos e por vezes essas suposições tornam-se grandes verdades por isso
afirmo que esse matéria é usado pelo sul-africanos, será pois natural não
andarem longe, passaram por aqui é sabido, está aí a prova.
-
Muito bem, passaram por aqui e já agora, avançavam para lá ou para cá nesta
mesma picada em que nos encontramos ? Pergunta para o Xavier.
- Tenente,
se ele estava à direita eles avançarem no nosso sentido, estando à esquerda
eles avançarem em contrário a nós, daí estarem avançados ou esperando nós, eles
se encontrarem um par de horas ou duas no nossa frente. Nós ter que nos cuidar de má surpresas.
.- Correctíssimo,
tens razão mas, e se quem o atirou fora fosse canhoto ou o tivessem ali deixado propositadamente para nos ludibriar ?
-
Sendo canhoto ficaria no esquerda, meu tenente tá me baralhando, haver pouco
canhoto, mais certo ter sido destro, há mais destros e menos canhotos por tal é
mais acertado confiar no direita e eu fico no meu dito, eles estar na nossa
frente nos esperando e o mais stá para se ver creditem.
-
Muito bem, bom raciocínio, resumamos, fosforo recente, preto, de papel e cera
como o pessoal do exército sul-africano costuma usar, caminharão no mesmo
sentido que nós, estarão ou não na nossa frente, esperando-nos ou não, as
probabilidades apontam para isso, portanto é mantermos os olhos bem abertos,
caminharemos em meia-lua e nem um pio quero ouvir.
Não
desejávamos ser apanhados em campo aberto nem pelo sol erguendo-se bem depressa
e bem quente. Caminhámos para alcançar a mata dispersa assinalada no mapa, ideal
para descansar, dormir e efectuar a manutenção do armamento até a noite cair
pois caminhar na noite castigar-nos-ia menos, a orla do Calaári era um inferno.
Faltando somente duas a três milhas para atingir a mata assinalada e mantendo a
formação em linha por ser mais indicada como defensiva, percorremos contudo
esse percurso descrevendo um largo arco de modo a quando entrássemos na mata
tivéssemos o sol por trás dando-nos uma vantagem nada despicienda já que a haver encandeamento caíria sobre o inimigo.
Agimos
bem, mal nos aproximámos da beira da mata fomos baptizados com fogo cerrado,
havia quem não nos quisesse deixar sair de campo aberto mas a nossa estratégia
fora bem delineada, a um sinal meu os homens abriram mais o leque em meia-lua e à
vez entraram na mata. Antes disso tinham fixado os pontos de origem do fogo do
inimigo e, conhecendo as posições dos seus atiradores, embrenhámo-nos na mata. O nosso leque enfrentou galhardamente a situação ripostando contra esse inimigo que nos esperava emboscado cercando-o e fustigando-o com metódica e calculada precisão, porém havia que poupar
munições pois o tiroteio poderia vir a tornar-se demorado até alguém poder
cantar vitória.
Eu
recomendara um cerco deixando-lhes aberta uma saída na retaguarda, uma
escapatória, nada pior que um animal enjaulado e essa medida pode ter ditado a
nossa sorte. Menos de uma hora antes de anoitecer dois enormes helicópteros do
SAA aproximaram-se, um fazendo fogo de barragem sobre nós enquanto um outro se
ouvia descendo para recolher o pessoal e talvez mortos e feridos. Abrigámo-nos
da metralha vinda do céu o melhor possível e, depois deles partirem vasculhámos
a zona. Pelos rastos visíveis abalaram com seis ou sete feridos ou mortos pois
algum armamento fora abandonado na urgência da retirada.
Nós
contabilizámos quatro feridos ligeiros um de maior gravidade, o homem do rádio,
rádio que contudo lhe salvou a vida. O rádio ficara desfeito mas o ombro do
nosso homem mantinha-se inteiro, apenas uma boa ferida pouco maior que uma mão
aberta. Houve até quem brincasse com isso, “não há dúvida que o rádio salva
vidas” e àquela salvara-a, o problema doravante era se sem ele salvaríamos as
nossas. Em dois dias alcançámos a nossa base, a tempo do homem do rádio evitar
uma gangrena pois a ferida, nunca medicada, estava ficando uma lástima.
E
ainda há quem diga que a vida não vale um fósforo. Aquele salvou-nos a todos de
cair num grande buraco …
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