terça-feira, 1 de agosto de 2023

ERVIDEIRO, ANT. - OS ROSTOS DA IGUALDADE



    
           792 - OS ROSTOS DA IGUALDADE  

O nome soava-me levemente a uma marca de vinhos afamados daí a minha curiosidade. Depois vinha o título da exposição, ROSTOS DA IGUALDADE, não que eu seja contra ela, que não sou, simplesmente é coisa em que não acredito, Deus fez-nos todos diferentes, todos diferentes e todos iguais, portanto alinhavava-se segundo e forte motivo para ir até à igreja de S. Vicente* ver a mostra de desenhos de António José Ervedeiro. Estão lá desde 8 de Julho e ficarão até 19 de Agosto. Vale a pena a visita.

 

Quem será o crente que nos dias d’hoje ainda acredita no “todos iguais” ia eu pensando, e perguntando-me, céptico, enquanto rumava à exposição.  Não era nome que eu conhecesse, nem tão pouco o ouvira alguma vez antes, e depois, cinquenta anos após Abril alguém volta novamente a invocar a igualdade, em cada rosto igualdade e tal e coiso, Grândola Vila Morena, rostos, esquinas, amigos, fraternidade, povo, solidariedade, azinheiras, sombras. Quem seria o tolinho que ainda ia atrás destas patranhas ?

 

Tirei-me de cuidados e fui indagar, uma volta pela Net e logo à primeira o tolinho tolheu-me a simpatia por completo. Tem obra feita, obra bonita e bela, uma delas uma exposição sobre a minha terrinha, Monsaraz, que nem sei como perdi (depois conferi as datas e bateram certo com os dois meses que passei nos Cárpatos em 2017), uma outra sobre os faróis da nossa costa, bela e bonita, talvez melhor ainda que a anterior. Repentinamente senti-me conquistado, arrebatado, empolgado e, quando percebi que afinal ali o tolinho era eu resolutamente me tirei de cuidados, como vos dissera, e fui ver a obra do mestre com os meus próprios olhos. 

 

Já vira anteriormente um cartaz de papel, ou vira na Net algo alusivo à exposição em causa, não me recordo bem, e pelo que vira embirrara até com o tipo como embirramos com uma qualquer garrafa sempre que ela chega ao fim. Voltei à Net e dei com ele, fotos e tudo, muitas pinturas, cartazes das muitas exposições que carrega no espinhaço, digo curriculum, um portfólio de encantar e, sobretudo uma fácies de pasmar. O homem deve ser um tipo feliz, tem uma cara que mo diz, secalhando até será um tipo agradável, daqueles com quem acabamos por gostar de estar à fala, e eu, só porque vira meia dúzia de pequenas reproduções desta exposição na igreja de S. Vicente, ROSTOS DA IGUALDADE, só por não crer na igualdade e por não ter ido à bola com o pouco que vira alimentei um preconceito contra o mestre sorrisinhos, preconceitozinho que me custou a engolir e a derribar.

 

À primeira apreciação noto-lhe um traço muito definido muito próprio quase como uma impressão digital, como acontece com o nosso Marcelino Bravo. Bastará olhar para os quadros destes dois marmelos para sabermos que são deles, cores e traço denunciam-nos, são fortes, são firmes, são muito próprios, são os seus BI’s, ou mais hodiernamente os seus CC.

 

Passei em revista vagarosa e cautelosamente toda a exposição e cada quadro, não queria estatelar-me de novo como acontecera com a primeira e superficial impressão que colhera, já vos confessei que me custara a levantar do chão, motivo mais que suficiente para agora estar atento e firme nas canetas. Atentamente vi, li, uma ou outra critica, umas escritas por gente famosa, outras por gente que assim se julga e, mais uma vez julguei apressadamente pois

 

Não ! 

Não não, como se pode dizer isto duma mostra destas ?

Impossível !

 

e realmente desta vez eu tinha razão, as criticas eram sobre outras exposições. Ali, naquela, só atestariam ou testemunhariam o valor do mestre, a sua práxis.

 

Mas não gostei, não que o bonecos estivessem mal, ou fossem feios (um ou outro é mesmo), é que o António não tem grande queda para os detalhes, um olhar, uma boca, uma expressão, um trejeito, uma postura, são os pequenos pormenores que por vezes lhe falham, mas no geral estava tudo bem, apesar disso dei-lhe nota positiva, afastei-me meia dúzia de passos desses quadros e desses pormenores / detalhes et voilá ! Desapareceram !

 

Lá está, na exposição sobre Monsaraz ou sobre os faróis da nossa costa não há pormenores desses a sublinhar, não há detalhes de que cuidar, é só dar guita ao pincel. Mas o que mais me desagradou nem foram os bonecos as cores ou os traços, foi o Crono(s), esta exposição traz cinquenta anos de atraso, retrata gentes e figuras do antigamente, retratando um cenário, propondo uma imagética do passado, denunciando umas vezes, apostrofando outras, criticando bastante algumas, aplaudindo poucas. 

 

Foi então que me interroguei pois todas as cenas retratadas terão mais de meio século e, embora sendo verdade que muito nos contam e nos dizem sobre esses tempos que já ninguém lembra, nem quer lembrar, tempos que muitos só conhecem de ouvir, habituados que estão a emprenhar pelos ouvidos sempre que alguém lhes fala desses antigos tempos.

 

Muito haveria a dizer sobre os tempos actuais (os que mais interessam directamente ao nosso bem estar e futuro), muito haveria a dizer sobre esta democracia, mas nem eles nem ela estão aqui representados nesta mostra. Vontade e opção do autor que eu respeito, e gabo-lhe a arte, não a intenção, mas sim, antigamente talvez houvesse mais fraternidade, mais igualdade, mais solidariedade, mais coesão, todos por um e um por todos, Salazar catalisava em si e contra si toda a oposição, tudo e todos. Agora é o que se vê …. Cada um por si, adeus coesão, adeus solidariedade, adeus igualdade, adeus fraternidade.

 

Muitas mais criticas haveria a pintar agora, que se faz menos e fala mais, ou demais. Não por acaso o nosso insuspeito INE dá como o período áureo da economia portuguesa as décadas d 1954 a 1974, + ou – as retratadas nos ROSTOS DA IGUALDADE, porque agora não há crescimento económico, há atraso, regressão, crescimento só da dívida.

 

Humorística, trágica, polémica, triste ou satírica, certamente uma exposição alusiva às décadas actuais seria deveras interessante, não lhe faltando motivos ou prismas sob os quais a abordar. Se situarmos esta exposição entre os anos 30 e 60/70 do seculo passado sim, retrata-os bem, quer a nação quer os nacionais estavam ainda na idade da pedra mas, não esqueçamos, em 1928, quando Salazar entrou na caverna trouxe-nos a luz, trouxe o fogo, com ele acabou-se a nossa pré-história. O resto são histórias que se contam às criancinhas ou aos tontinhos…

 

Aqueles tempos nunca me envergonharam, mas esta democracia sim, deixa muito a desejar e já carrega um estigma, o facto de não envergonhar ninguém …..

 

ALGUMAS FOTOS SAIRAM COM REFLEXO DO FLASH. AS MINHS DESCULPAS. OBRIGADO.


* UMA NOTA NEGATIVA: É mais que óbvio que António Ervedeiro não merecia a desconsideração a que foi votado, e naturalmente nem foi o próprio a ter montado a exposição ou teria dado pelo óbice. A igreja de S. Vicente, lugar de culto no que à cultura em Évora concerne carece de quem trate dela a preceito. Capital Europeia da Cultura, aquele lugar da nossa cidade fede a mijo e cheira a merda. Entrem lá e constatem o facto com os vossos narizes. Uma vergonha para quem expõe, para quaisquer visitantes e em especial para a cidade e para os eborenses.

Parece que o recepcionista ou o cuidador da exposição, ou os dois segundo me foi dito por empregada da pastelaria em frente, a Zoca, terão dado uma pequena lavagem na igreja sem que para isso tivessem obrigação. Imagino que também eles se terão sentido envergonhados e tentaram antecipar-se aos serviços de limpeza (que deveriam ser no mínimo semanais) serviços de limpeza que além da obrigação têm os produtos aconselhados em casos tais.

Os experts da cultura da CME que lá dêem um pulo, tirem o cu das secretárias e secretarias e percorram o burgo, é para isso que lhes pagamos. Até parece que quanto mais bem pagos são menos fazem. 
























































quinta-feira, 13 de julho de 2023

791 - PASSADOS PASSADIÇOS PASSADEIRAS ...

 

 

 Quarta-feira 12 de Julho, quando nos sentámos à mesa d’O CHANA na Aldeia da Serra, estávamos mais desidratados que estourados. Não, não tinham sido os 1732 degraus dos passadiços da Serra d’Ossa que tinham atirado connosco para o estaleiro, foi antes a esturrina maldita que caiu sobre nós quer na subida quer na descida do abençoado calvário.

  

A paisagem é sublime, o ar que respiramos idem, carregado duma inaudita sensação de frescura e d’um vero cheiro a pinho. Ao almoço concluímos ser um trilho lindo para uma caminhada feita na Primavera ou no início do Outono, mas eu fora operado há menos de 2 semanas e forçosamente queria colocar as minhas forças e energias à prova, e provaram.

 

 Provaram elas e provámos nós a boa cozinha serrana d’O CHANA, 18 em 20, perdeu pontos para a melancia que estava meio choca e nã tinha doce, e para a conta, mais apropriada para a baía de Cascais. De resto as uvas, da zona, eram belíssimas, e emparceiraram com a simpatia extrema com que fomos atendidos fazendo jus ao restaurante, bem decorado, super asseado, e fresco !! Imaginem só com que prazer ali assentámos arraiais e a pena com que dali saímos...

  

Mas chega de lamechices e de publicidade à borliú ao CHANA, aquele dia fora dedicado aos passadiços e às nossas forças e foi nisso que nos concentrámos. O site está bem elaborado e é não somente explicito como culturalmente informativo, deu gosto apercebermo-nos da história daqueles cabeços, dos monges, eremitas, anacoretas e outros homens das cavernas que por ali andaram e construíram hortas, noras, açudes, moinhos, levadas e uns banquinhos que para lá estavam e que deram um jeitão na hora de puxar das garrafas d’água e dar um pouco de descanso e paz ao corpo e ao espírito.

  Em plena serra, no meio de nenhures, noutros tempos eu teria ouvido

  - Berto, atenção à esquerda que eu fico de olho na direita

 enquanto embevecida ante o ambiente sagrado do lugar ajoelharia em penitência e com devoção, eu renovaria aquele tipo de fé que move montanhas, juraria pela enésima vez quanto a amava e desenharia no seus cabelos o sinal da cruz que sagraria a minha bênção no justo momento em que abraçados nos elevássemos aos céus e nenhuma objecção permitisse duvidar encontrarmo-nos no paraíso.  

  

Exercício, ar puro, a vingança p’lo esforço e calor levada à prática à mesa do CHANA, não posso negar ser preferível às meias horas diárias passadas em cima da bucólica e nada emocionante passadeira onde em casa faço a maior parte das minhas caminhadas. A vida não pode resumir-se ao fazer a tempo e horas os trabalhos de casa, como quando na escola andávamos, ou os chatos mas inadiáveis afazeres domésticos que tanto e tão precioso tempo nos consomem.

  

A vida é sonhar, amar, as obrigações não são devoções, uma obrigação é uma penitência, a devoção é uma entrega, uma dádiva, que nunca as confundamos por que um dia, um dia mais tarde, um dia que nunca saberemos quando chegará, não haverá ninguém para apurar o saldo, caber-nos-á a nós colher o sabor amargo ou adocicado dessas contas, independentemente de, ao longo da vida, termos ou não desfrutado do sabor dela, vida, termos ou não experimentado o bel-prazer do gosto que só o pecado encerra, ou de, como dizem nuestros hermanos, podermos olhar para trás e dar gracias a la vida

  

Por uma razão ou por outra voltarei lá, aos passadiços da Serra D’Ossa, aos banquinhos onde nos dessedentámos e nos dessedentaremos, voltarei a subir e descer os 1732 degraus do passadiço com o mesmo empenho, voltarei a provar a mim mesmo que estou capaz, voltarei a sonhar, voltarei a sentar-me à mesa do CHANA, porque a mim, todas as desculpas e todas as razões me sobrarão para lá voltar, e voltar a sentar-me naqueles banquinhos mágicos que me darão novamente descanso às pernas e asas à imaginação...

  

Carpe diem.

  

https://www.youtube.com/watch?v=DFZxBvUMlG0


 











terça-feira, 4 de julho de 2023

790 - PUDESSE EU PENDURAR UM NO PEITILHO

 



PUDESSE EU PENDURAR UM NO PEITILHO ...


Apetecia-me um queijinho,

de leite e iogurte ouvi-a dizer.

 

E a mim um brochezinho,

havia-os na feira,

lindos,

em arame fino fininho,

cavalinhos, golfinhos,

elefantes, macaquinhos.

 

Pudesse pendurar um no peitilho,

alfinetá-lo no quico ou no boné,

fazer dele um porta-chaves,

era de delirar só de neles pensar.

 

Eram giros os broches lá isso eram,

feitos c’um alicate pequenino,

e mão destra, manápula,

torcendo e retorcendo o fio,

filigrana de arame e sedução.

 

Também podia tratar-se duma imitação,

de esmeralda, feita à mão,

ou ostra, de preferência com pérola,

perlada, trincada entre os dentes.

 

Ela numa cama baixa, de avental,

no ar brochezinhos lindos,

esvoaçando,

em arame fino fininho,

cavalinhos, golfinhos,

elefantes, macaquinhos,

gatinhos e unicórnios.

 

Tudo pulando e saltando no seu colo,

entre rolos de araminho e

um alicate pequeno, pequenino,

as ideias esvoaçando,

a inspiração brotando,

e nas mãos delas cada broche arte,

handcraft, fait à la main, handgefertigt,

maravilha.

 

Eu olhando-a e sonhando,

perdido nos meus pensamentos,

handcraft, fait à la main, handgefertigt,

ela molhando os lábios,

torcendo a boca, babando-se,

mordendo a língua,

comprimindo o alicate,

manipulando-o, manuseando-o,

e repentinamente um clik !

 

Ponto final,

o araminho cortado,

o broche acabado,

ela desdobrando as pernas,

exausta,

esticando-se na cama baixa,

estirando-se,

admirando a sua obra,

a sua criação,

desta vez um lindo pavão.

 

Por isso eu vira cores,

sentimentos,

sensações,

nuvens,

trovões,

o arco-íris,

e no final um relâmpago.

 

Íris, Osíris,

a terra e o céu um só,

a vida irrompendo

sob a forma d’um pavão,

das suas mãos, da sua arte,

destarte, dessarte,

não é para todas…

  

                      




 

 


terça-feira, 27 de junho de 2023

789 - BERTINHO, O COWBOY DA MEIA-NOITE !!!

 

 

Dia de sorte, a fila para entrada no híper teria umas três pessoas, pelo que mais de uma hora antes do que eu pensara estava aviado e de novo cá fora curtindo o sol. Telefonei-lhe,


- Mas Berto, porra pá, mesmo agora acabei de me sentar e de levar a primeira tesourada, não me irrites amor, não há por aí táxis a jeito querido ?


Bem demais sabia ela que havia táxis a dois metros, fiz sinal a um, carregámos os sacos e ala para a Cartuxa. Não estou certo de ter sido o seu instinto de sobrevivência ou o meu espírito de provincianismo parolo o culpado, por isso é difícil dizer quem foi o ingénuo e o matreiro, o predador e a vítima. Ele fora o primeiro táxi que me aparecera a rodar livre, ele, a raposa desta história e, montado ao volante dum carro mais que aceitável entabulámos conversa directos à Cartuxa. Depressa p’lo discurso nos identificámos como apoiantes ou não de diversos assuntos e personalidades da nossa atribulada e desgraçada vida politica até que, chegados, me apressei a pagar-lhe a corrida e puxei duma nota de dez euros para pagar seis e meio. Até que não fora cara a corrida, teria ido a pé caso estivesse em compras, de fato de treino e com vagar para uma marchazinha de trote a galope. Eu dissera-lhe que lhe daria um euro e meio em moedas para lhe facilitar o troco e ele, já de nota de cinco na mão estendida para me devolver aguardava que eu pescasse as ditas moedas no meu esquisito porta-moedas.


Demorei algum tempo mas por fim lá as separei e lhas passei para a mão, missão cumprida, agradeci e desci com pressa pois ainda havia que descarregar o carro, depois, arrumar convenientemente todas as compras na despensa, garagem e garrafeira iria ocupar-me parte considerável do dia pelo que somente passada uma hora ou mais recordei que a mão estendendo-me a nota de 5 euros já lá não estava quando lhe passara as moedas. Nem a mão nem a nota. Nesse entretanto, toma troco, toma moedas, toma nota, devolve outra nota, algo mais próprio de um ilusionista batido se passou, já repararam no que foi ou qual terá sido a manobra ou estarão tão distraídos quanto eu estava ? E será que ele contava já com essa distração ? Terá sido golpada ou meramente cabeça no ar, parvoíce minha ? Sinceramente não sei. Pensando bem na coisa, e se a golpada se repetir dez vezes ao dia, e o dia tem oito horas ou mais de trabalho, portanto muitas oportunidades para a repetição da gracinha, o ilusionista tirará mais uma boa renda mensal.


Mas estou a delirar, não passou de provincianismo meu certamente, e acabei por nem lhe levar a mal a palmada que me deu ou que lhe consenti. O mundo não pertence a quem anda a dormir na forma, pertence a quem tem olho… Naturalmente e depois desta manobra de que fui involuntariamente vítima colaborante veio-me à memória um velhinho filme visto por nós há muitos muitos anos, O COWBOY DA MEIA-NOITE, cujo personagem principal, Dustin Hoffman, interpretando a figura de Rato Ratso tornou esse filme inesquecível, aliás inolvidável até pela banda sonora, e recheado de personagens com os quais rapidamente simpatizei. Como levar-lhe então a mal a golpada ou a minha distração ? Tinha o nome numa chapa no tablier, lembrei-o e sorri.


O futuro ficou, e mercê do vírus, do confinamento, das restrições sociais e do medo fiquei eu repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir nem reagir violentamente à percepção paranóica das coisas e das pessoas, todas elas agora me parecendo perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias poderão ser as razões para essas sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos.


Não é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão ou recuso a temida morte. Quantas noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão terei capacidade para suportar veremos, quanto martírio me torturará ainda nunca saberei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e atribulação colocarei na conta do deve e haver desta catarse que abnegada ou resignadamente aceito mas contra a qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação e aspiração à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser condenado e por ficar livre. A maçã comida no Paraíso saiu-nos cara. Era agreste este mundo, pior ficou assim repentinamente virado de pernas para o ar, cresta-nos toda uma vida, todo um futuro. Nem é mundo que queiramos, nem vida que desejemos, sabemo-lo.


Tão bem o sabemos que tudo fazemos por ignorar tanta parvoíce, tanta estupidez, precisamente o que não podemos fazer, precisamente o que de mais errado poderíamos fazer. Quanto mais nessa ignorância e alheamento teimarmos mais a coisa parecerá afundar-nos. Ilusão. Quão gritante e desesperante ilusão. Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas parecem recusar-nos até em sonhos. Medo, desconfiança e desesperança parecem unir-se pra que não nos realizemos p’ra que jamais se concretize a nossa mínima esperança.


Cerceia-nos o desânimo e, o desespero mais frustrante torna toda a vida social parada, vidas paradas, carreiras paradas, maternidades adiadas, maiores idades adiadas, o establishment instalado está fazendo dos homens crianças tontas, incapazes e irresponsáveis. Repentinamente a minha vida, a nossa vida tornou-se tão frustrante quanto o calor dum sol benfazejo sob o qual buscamos comprazer-nos em dia tímido de céu azul em que nos atrevamos a sair à rua, dar dois passos no jardim do bairro, respirar o ar puro, sem máscara, um ar saudoso onde nem pontilham flocos brancos, algodoados, antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e prenúncios exasperantes dos dias jamais cumpridos mas por cumprir por neles se alojarem as metas que almejamos atingir.


Não sonhes, não sonhemos, recusa sonhos, ilusões e devaneios, pois isso é tudo quanto o futuro tem para nos dar por estes dias. Para cada um de nós o futuro traçou um caminho a seguir, um silício, um suplicio imposto como via única, solução única, e força-nos a cumprir esse mandamento único debaixo da dureza dos dias que se vivem, no tempo e vida que nos resta, que o soframos na pele com a mesma abnegação, intimidade e segredo com que guardávamos para nós os sonhos de esperança outrora contemplados, pior que tudo o futuro espera de nós uma rendição incondicional. E onde o lugar para a coragem e a esperança ? Não, não podemos soçobrar nem desistir, nem nos pode ser consentido acreditar nem aceitar a pressão desta força invisível nem o caminho imposto, o mundo nunca foi isto, este negrume qual nevoeiro rasando o chão e envolvendo a plebe, o lumpemproletariado, a escumalha, a ralé, a classe, o mundo sempre foi e terá que voltar a ser a esperança pendendo da mesma frondosa árvore cuja sombra os nossos sonhos sempre acoitou e terá que continuar acoitando.


Não aceitemos este mundo bivalente e dual mais curto que extenso de agora, nem éden nem utopia oferecendo-se-nos como uma maçã no paraíso, ele nem foi feito para nós nem tem espaço para que nos cumpramos. Sim aceito, é ressentimento e dor também por não conseguir esquecer-te, é como um feitiço sobre mim caindo e revolvendo-me numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te ofendi por palavras e actos, nem quantas te relembro ouvindo e sorrindo nostálgica numa ternura impaciente tudo que eu dizia. Sonhemo-nos como quando enamorados e a tua respiração quente no rosto me enternecia, leva-me de novo a olhar-te no fundo dos olhos, a beijar-te terna, docemente, e, num longo e aconchegado abraço chega a mim o teu peito arfando no qual desejo de novo perder-me e afogar-me. Deixa que as mãos vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas, aperta-as como fazias, aperta-as agora com mais força, como quem prende o futuro e o desejo numa avidez não saciada que me faça esquecer o exasperante e sofrido passado que nos infligimos, solicita-me que avance e te descubra tal como quando eras para mim um oceano por desvendar e me perdia deslumbrado, extasiado na premência de ti e de mim, e te percorria suavemente as curvas dessa imagem que ainda me tolhe, que ainda me tolda os sentidos.


Sim amor, salvemo-nos enquanto é tempo querido, acaricia-me o peito, que a tua boca de novo me sugue num ímpeto que juro te devolverei, faz-me tremer novamente de emoção, afaga-me sofregamente os seios endurecidos cujo odor sempre adivinhaste e adoraste enquanto os teus dedos por mim passeavam colhendo o cheiro inebriante duma oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas jurámos e cumprimos, porque afinal, e não o neguemos, existem sonhos, desejos, ilusões, sentidos e emoções a partilhar.


- Berto, que jamais sejam por nós travadas as promessas, nem as esperanças, falam numa nova ordem social e embora sabendo contudo quanto de difícil, senão impossível se nos depara, recusemos todavia abdicar, reneguemos o momento, sonhemos a realidade, sacudamos do jugo as novas imposições com que montando o medo do vírus nos querem albardar. Cada um de nós tem um caminho a seguir, sigamo-lo sem nenhuma ilusória intimidade, antes concreta e assumida, partilhemos e cumpramos conscientes o pouco que de inolvidável possamos ainda viver e jamais esqueçamos tudo a quanto platonicamente aspirámos e viemos a cumprir. Querido aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos, porque ainda que confinados, condicionados, a verdade é que desde sempre nos pertencemos. Porque embora o não queiramos, aceitemos que afinal há longe e há distância mas também futuro e esperança, reconheçamos quanto de impossível nos separa e não deixemos que um vírus, um mero vírus nos vire um contra o outro e muito menos a vida. Bertinho amemo-nos. E vivamos sem tormentos e plenamente felizes vidas cheias, preenchidas, vidas ! Chegou a Primavera tempo de luz e de esperança, que seja como sempre foi, de criação e abastança, de planos, sonhos e quimeras.


Sim, também eu fiz planos, que planifiquei e organizei, pois saibam ter eu comprado também uma agenda p’ra apontar os sonhos, sonhos, desejos, tudo que planeei. Sim, ouvira na esplanada alguém, penso que um ilustre magistrado, dizendo que, desde que as partes o desejem, até em cima de uma agenda, ou deitados… Deitados, em pé, coitados de nós querido. Coitada de mim e do meu sonho, desejo inventado, sonho e desejo de gnomo. Fossem gnomos ou elfos, qual o interesse agora, depois de dar ouvidos a Delfos e por não querer vê-los a todos deitados borda fora.


 Tende juízo augurara a pitonisa, liga a bateria, os piscas, as luzes, dá corda aos sapatos, aos patins, piramiza, dedica-te à poesia, ironiza. Ironiza e brinca, esquece, distrai-te, nunca afies o dente que não trinca, vai para o café mandar bitaites. Apaga a luz, esquece a musa, não mates a cabeça, usa-a, entala o pescoço numa eclusa, exorta a vítima em ti, exorta-a. Castiga-te, bebe um café, sê masoquista, narcisista já és, e convencido, e egotista.


Berto tens muito por onde te entreter, a Primavera é grande, mortifica-te a valer e poupa-nos, sai desta land. Desopila, emigra, não atormentes, faz-te à vida, dá paz às gentes. Já se não vendem agendas meu querido parvalhão, só tablets, notebooks, vives ainda no tempo das gregas calendas, detestas o McDonald’s, o Starbucks.


Apesar da noite de breu que sobre nós se abateu, de toda a vida que nos mudaram, alteraram, do medo, do controlo, das imposições e explosões de fúria, amo-te ainda e ainda te sonho minha querida. Quantas vezes te sonho apertando-te egoisticamente contra mim, protegendo-te, defendendo-te desta sina ameaçadora pairando sobre nós, nuvem escura, polvo, monstro em fuga ante o meu grito, aqui neste mar de tristeza mando eu, eu e tu meu amor a quem cegamente amo, porque tu albergas no teu sorriso um mapa de viagem, o teu olhar perde-se em distâncias prometidas, na tua tez, beleza e coragem de jovem pajem, tua flor tomo por jazida de riquezas e mistérios mil.