“Tomei um banho e perfumei-me, até porque o
velhote é segurança num hipermercado e já fica feliz com o meu cumprimento e
sorriso, com um cheiro a lavado e um toque de perfume até vai ao céu. Arrumei
a casa para estar limpa quando as meninas chegarem. Depois já sei que vai andar
toda fodida. Gosto de arrumações e de asseio. Agora arranjar-me toda, bem
produzida e perfumada e sair para um bar ver divorciados isso não... Foi coisa
que não fiz, que nunca fiz, nem me mexeria para ir ver divorciados”. Isto
ouvi eu na mesa atrás de mim enquanto de pé tomava a bica ao balcão. Queria
apressar-me e ter tempo e vagar de admirar e ver uma expo que há muito me
suscitava a curiosidade e que o dia de sol, convidativo, compelira a tirar a
mota da garagem e a fim de fazer caretas ao estacionamento.
Há cerca de
quinze dias, mais precisamente no dia 15 de Dezembro, visitei na Biblioteca
Pública de Évora e disso dei conta, uma desejada exposição do pintor Marcelino
Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e admiramos, sobretudo a sua
particular visão do Alentejo e temáticas afins, cousa que este eborense
magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e inconfundíveis. *
Mas deparei
com um Marcelino Bravo fora dos carris** quero dizer descarrilando dos temas a
que eu estava habituado e esperava ir encontrar, quer dizer, eu vou explicar.
Digamos que metade da instalação era ocupada por temas normais, habituais nele,
Alentejo & Cª, o busílis é que a metade restante apresentava telas
inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de uma corrente
anormal ou inusual nele o que me confundiu.
Nem sei se
ele conhece os novos caminhos que está a trilhar, pensando bem, retiro o que
disse, claro que conhecerá e saberá o que está a fazer, eu é que o não sei, nem
lhe conheço os planos, nem tão pouco estou por dentro da sua mente e digo mente
porque os novos quadros apresentados são uma coisa da psico, um abstraccionismo
psicadélico que esteve em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de
mentes provocadas, excitadas, estados mentais alterados, coisa que não me
pareça ser o caso do nosso amigo Marcelino Bravo. Ele lá saberá das suas
razões, e eu confio num eborense que toda a vida conheci ponderado e circunspecto,
todavia só agora me pronuncio por ter primeiro querido averiguar a fundo essa
coisa dos abstraccionismos, em especial o psicadélico, e que para ser franco eu
tinha muito enterrado ou esquecido na memória.
É que a arte
abstracta por sua vez e para complicar ainda se divide em três tendências, o
vulgar abstraccionismo, há quem o designe por corrente lírica, expressiva ou
informal (Fig 1) e do qual para melhor vos situardes darei os exemplos de
Kandinsky, Matisse, Francis Bacon (o artista), Paul Klee, Antón Lamazares,
Requena Nozal, Pablo Picasso, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Amadeo Souza
Cardoso, José da Fonseca, Sandra Bravo e alguns outros mais. Mas deveremos
invocar igualmente a corrente mais facilmente identificável do abstraccionismo,
a geométrica, (Fig 2) cujo nome diz tudo, corrente de que poderíamos apresentar
como representantes, Mondrian, Victor Vasarely, Julio Pomar, Maria Keil, Manuel
Gargaleiro, José da Fonseca e Sandra Bravo. Para finalmente chegarmos ao tão,
não diria contestado mas inusitado abstraccionismo psicadélico (Fig 3) retratado
nas novas telas de Marcelino Bravo e cujos embaixadores chamo aqui, Alex Grey,
Pouyan Khosravi, Keerych Luminokaya, Cameron Gray, Michael Garfield, Randal Roberts,
Larry Carlson, Android Jones, Jonathan Solter, Matei Apostolescu, José da
Fonseca e Sandra Bravo.****
Não
esqueçamos jamais que o objectivo desta última corrente, a psicadélica, é
caracterizado pela nossa percepção nela de aspectos desconhecidos, inusitados e
duma criatividade que poderíamos considerar sem regras ou limites. Estudiosos
têm demonstrado que o uso de drogas psicotrópicas expande os limites da mente,
limites cujas expressões nos são dadas por essas experiências (alguns
chamam-lhes alucinações), que provocarão mudanças de percepção, sinestesia
(sentir várias sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a
pintura psicadélica. Decididamente e a menos que Marcelino Bravo ande a abusar
das pastilhas para a tensão arterial não me consta, nem acredito que seja o uso
ou abuso de drogas a origem do seu desvio ou desvario (sem sentido pejorativo).
É que isto da
arte tem muito que se lhe diga, Van Gogh não cortou uma orelha? Outros não
fizeram melhores ou piores figuras ?
Talvez tenham reparado ter eu ali atrás alguns nomes repetidos, não foi
erro nem engano, é que raramente um pintor, ainda que exímio numa tendência,
não tentou por desfastio, motivos económicos ou capricho meter uma perninha numa
outra qualquer corrente ou tendência… há milhares de casos desses, daí que
Marcelino Bravo tenha todo o direito de fazer uma incursão fora do seu habitat
natural.*** Na realidade eu fui lá há quinze dias e, chocado como fiquei,
decididamente não estava preparado, reneguei as novas telas, a que nem dei
atenção e nem sequer fotografei, tendo preferido deliciar-me com as restantes.
Contudo a consciência levou-me a reconsiderar e anteontem, dia 28, voltei lá
para as olhar com atenção a essas novas telas e temas, nova corrente e
tendência, e devo dizer que felizmente essas mesmas telas denunciam desde logo
o autor, pois continua a observar-se o mesmo cuidado exímio na pintura,
mantem-se inegavelmente o mesmo traço, é inequivocamente o mesmo ambiente e decididamente
M.B. socorreu-se das mesmas cores a que nos habituara sem fugir um milímetro da
sua matriz habitual. Contudo, a haver heresia, e quanto a mim houve,
circunscreveu-a à temática de cada tela e aí confesso a minha inabilidade,
incapacidade e sobretudo falta de autoridade para sobre essas manifestações
altamente subjectivas me pronunciar.
Para mim nada
como o velhinho dois e dois são quatro e a arte abstracta ou abstraccionismo é entendida
como um modo que não representa objectos próprios da realidade concreta, como
uma flor, um pássaro ou uma paisagem, mas ao invés disso compõe com traços e
cores uma realidade que faz surgir a partir das experiências estéticas vividas.
Também há quem a designe por arte moderna em oposição aos movimentos
anteriormente vividos na pintura, dou o exemplo de oposição ao impressionismo
inicial ou primitivo e às amorfas naturezas mortas. No inicio do século XX,
escolas como o cubismo e o futurismo mais não foram que perseguições duma
abstracção absoluta e buscaram sintetizar os elementos da realidade natural, transmutando-a
em obras que estilizavam e projectavam a ideia e o conceito do mundo concreto
fugindo à mera imitação desse mesmo "concreto observado".
Porém quanto
ao psicadélico por onde M.B. enveredou dizem os entendidos serem os aspectos
artísticos projecções de mentes (afectadas ou não) e na bibliografia
especializada expressões como arte psicadélica ou lisérgica (oriunda de
alucinações, como por exemplo ver ou criar na mente algo irreal, como um
elefante cor de rosa com pintinhas) referem-se em concreto ao movimento hippie
de contracultura dos anos sessenta e ao recurso a drogas psicotrópicas (entre
as quais o LSD estava então muito em voga) capazes de alterar os estados de
consciência. Ou isso ou uma psicose ou transe originado por êxtase religioso,
ora simplesmente não acredito em nada disso, nem tão pouco que M.B. ande a
sonhar ou abusando das pastilhas Rennie. Entrou numa de experimentalismo foi o
que foi, com todo o direito de o fazer e quem não gostar que meta na borda do
prato. E já agora Bom Ano Novo a todos nós.
Fig 1 Abstracionismo informal, Henri
Matisse , fim de dança
Fig 2 Abstraccionismo geométrico,
Piet Mondrian, rectângulos
Fig 3 Abstraccionismo psicadélico,
Alex Grey, cabeça luminosa
Para que melhor me possais entender deixo-vos algumas telas
de M.B. e testemunho do seu peculiar estilo, em cima telas estilo antigo e em simultâneo e em baixo exemplares da nova tendência,
a fim de que possais avaliar e comparar a diferença a que aludi e me chocou.
**** Por três vezes aludi aos artistas Sandra Bravo e José da Fonseca,
eu explico, em primeiro lugar não existir parentesco algum entre eles e M.B. em
segundo lugar tratar-se de jovens artistas eborenses a quem a dimensão do meio
em que orbitam e do universo de apreciadores que os rodeiam jamais lhes possibilitar atingir a dimensão que as suas potencialidades deixam antever, o que lamento.
Recomendar-lhes-ia uma mudança temporária para um dos bairros de Paris a fim de
ganharem o prestigio que jamais alcançarão cá dentro (santos da casa não fazem milagres
como todos sabemos), poderiam optar entre Montmartre, Ile de France, Marais, ou Saint-Germain-des-Prés,
nem precisariam de muito tempo, duas ou três décadas seriam mais que
suficientes.